"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/09/2021

Jurisprudência 2021 (34)


Arresto;
competência material


1. O sumário de RP 11/2/2021 (2709/20.3T8PRD.P1) é o seguinte:

I - A competência material nos procedimentos cautelares coincide, e depende, da competência para a acção principal.

II - Esta acção pressupõe uma conexão, ainda que parcial, com o pedido e causa de pedir do procedimento.

III - Entre um procedimento de arresto de bens para pagamento de tornas e um inventário existe essa conexão, e não com uma execução, pois, a possibilidade deste vir a ser objecto de execução é futura e eventual.

IV - O tribunal de família é, por isso, competente para a tramitação de um procedimento de arresto intentado durante a pendência de um inventário, pendente num cartório notarial, em virtude da dissolução do matrimónio das partes.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A decisão da questão dos autos é apenas a de determinar qual a acção principal da qual depende este procedimento cautelar.

Com efeito, a competência em razão da matéria para as providências cautelares, instauradas como incidente, como a generalidade das questões processuais que lhes digam respeito, não tem autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da acção principal nos termos dos art.º 91º, nº 1 e 364º, nº 3, do CPC.

Por isso, o tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção é também competente para conhecer dos seus incidentes, e procedimentos cautelares mesmo que sejam preliminares à propositura da acção de que dependam[...].

E essa acção terá de ter uma conexão com o pedido e causa de pedir do procedimento de arresto porque nos termos do art. 364º, do CPC “o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado”.

2. Caso essa causa seja uma execução (como pretende o tribunal a quo), o tribunal competente será o juízo de execução, conforme decisão, além do mais, deste mesmo coletivo por acórdão de 9.1.2019 in processo 812/05.9TBMCN-B., que decidiu que “O tribunal de família não é materialmente competente para executar uma sentença proferida num processo de inventário.

3. Mas, caso esse processo principal seja o processo de inventário intentado por causa da dissolução do casamento será, também, simples concluir que o tribunal competente é o tribunal de família[...].

Isto porque, após inúmeros conflitos de competência, é actualmente pacifico que compete ao tribunal de família, por força do disposto no artigo 81.º, alínea c) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) tramitar os inventários na sequência de divórcio, mesmo que requerido na Conservatória do Registo Civil.[...]

E, por isso, compete também aos juízos especializados de família e menores a competência material para preparar e julgar os procedimentos cautelares que sejam prévios ou incidentais dos processos de inventário instaurados em consequência de separação de divórcio (art. 122º, nº 2, da L.O.S.J.)[...].

*
4. Importa, por isso determinar qual é a acção principal em relação a este procedimento cautelar.

O principio da dependência dos procedimentos cautelares pressupõe a existência de uma acção já pendente ou de outra que possa vir a ser instaurada no prazo de caducidade previsto no art. 373º, do CPC.

Isso é o que decorre do principio da coincidência em matéria de competência do Tribunal, consagrado no art. 364º, do CPC, nos termos do qual a competência para o procedimento depende da acção principal[...].

Abrantes Geraldes [Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimento Cautelar Comum, Vol. III, pág. 120] (a propósito do art. 383º do CPC antigo e cuja redacção era idêntica à do nº 2 e 3 do actual art.º 364) afirma: “nestes casos, a competência por conexão sobrepõe-se aos restantes critérios”.

A ideia, subjacente a este regime, é a de se atribuir ao juiz da acção a competência para os termos da providência. Ou seja, fazer coincidir no mesmo juiz a competência para decidir quer a acção, quer o procedimento cautelar porque, em regra, entre o objecto da providência cautelar e da ação principal existe algum elemento de maior ou menor coincidência quanto ao direito que se pretende acautelar.

Ora, in casu essa coincidência existe entre o inventário e o arresto (este depende da existência e dimensão das tornas), mas não entre este e qualquer tipo de execução.

Na sua tese, o tribunal a quo, omitiu que, além de não existir qualquer execução pendente, a instauração da mesma não é certa (depende do incumprimento da obrigação de pagamento de tornas), nem é possível neste momento (a obrigação não é sequer exigível cf. art. 713.º CPC, nem está coberta com força executiva).

Logo, podemos concluir que além de ainda não existir qualquer acção de natureza executiva, esta nunca pode ser intentada no prazo de caducidade previsto na lei para o procedimento (art. 373º, do CPC), por falta de requisitos legais [Cfr. a análise de Miguel Teixeira de Sousa de 19.12.2016, in https://blogippc.blogspot.com sobre um caso semelhante, mas não idêntico, “O arresto post sententiam].

Ou seja, essa futura acção executiva é, não apenas isso (futura), mas também eventual e hipotética. Basta dizer que não é por existir titulo executivo que as execuções são intentadas, estas são intentadas por existir titulo e incumprimento de obrigações pelos executados. Ora, se assim é, fácil é concluir que a parte não pode apensar este arresto a nenhuma execução porque esta nem existe, nem sequer sabe se será ou não intentada.

Portanto, só por isso, é mais do que evidente que a tese do tribunal recorrido não pode ser aplicada, pois, imporia à parte uma exigência que esta nunca poderia cumprir, já que, não conseguiria propor “a ação da qual a providência depende dentro de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado”, art. 373º, nº1, al. A), do CPC.

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4.2. Mas, mais importante, importa ter em conta que o procedimento é apenso ou a uma acção existente (é o caso para todos os efeitos deste inventário, cuja tramitação e recurso cabe ao tribunal de família), ou a uma cuja instauração seja a consequência lógica e necessária do direito cujo exercício se procura salvaguardar.

Isto é, a dependência do procedimento face ao processo principal, visa precisamente proteger os efeitos do direito deste.

Os instrumentos cautelares são um instrumento (cautelar) de um instrumento (direito de acção). Por isso, terá de existir conexão, pelo menos parcial entre o procedimento requerido e a acção do qual depende. [Cfr. Marco GONÇALVES, Providências Cautelares, 2.ª edição, Almedina, 2016, e Rita de FARIA, A tutela cautelar antecipatória no processo civil português - Um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Universidade Católica Editora, Junho de 2016]

Nesta medida a formulação do art. 112º, do Código Procedimento Tribunais Administrativos é, mais esclarecedora, ao dispor que os procedimentos devem ser adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal.

Ora, o direito que a apelante pretende salvaguardar é o pagamento de tornas. A única acção imprescindível ao seu exercício é por isso o processo de inventário, já que a fase executiva só existe (tal como em todas as acções declarativas) caso o devedor não cumpra a obrigação constante do titulo executivo que é uma sentença.

Note-se que resulta do art. 364.º, n.º 1, CPC (aplicável ao arresto ex vi do estabelecido nos art. 376.º, n.º 1, CPC) que a causa da qual o arresto depende tem como fundamento o direito de crédito garantido [...].

Do mesmo modo, decorre do art. 373.º, n.º 1, al. a), CPC (aplicável ao arresto por força do estatuído nos art. 376.º, n.º 1, e 395.º CPC) que a caducidade do arresto depende de “o arrestante não propor a acção relativa ao crédito garantido dentro de 30 dias contados da data da notificação da decisão que o tenha ordenado”.

Ou seja, a acção instrumental terá de estar ligada por algum dos seus elementos objetivos (pedido e causa de pedir) e subjectivos (partes) ao direito que se visa exercer.

Deste modo, a única acção que é actualmente necessária e imprescindível para a tutela dos direitos da parte é o inventário, pelo que será essa que a acção relevante para efeitos de conexão processual, pois, é aquela que:

a) foi exposta pela parte ao abrigo do principio do dispositivo;
b) constituiu um dos elementos da causa de pedir exposta;
c) constitui um dos elementos a apreciar em temos de apreciação sumária (a existência de um crédito de tornas).

Por isso, é seguro concluir que o procedimento deveria ser apenso ao processo de inventário, que por se encontrar pendente no cartório notarial, terá de ser instaurado e tramitado no tribunal competente, isto é, o de família.

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3 [sic]. Por último, existe ainda um terceiro grupo de argumentos (em rigor) desnecessários, mas que podem ser uteis.

Mais do que um critério de decisão, por vezes, importa ter presente métodos operativos que, em caso de dúvida fundada reduzam a incerteza desse mesmo processo de decisão. Ora, um deles será sempre recorrer aos efeitos práticos da decisão e aos princípios gerais do procedimento em causa. O direito é suposto ser uma ciência social que visa reduzir e regular a conflitualidade social e, por isso, reduzir, mitigar ou eliminar problemas e não os fomentar. Depois, o processo civil é um ramo do direito instrumental que visa exercer a liberdade contratual, com o natural respeito pela vontade das partes. Por isso, em caso de dúvida sobre qual seria a acção principal, o tribunal deveria ter dado preponderância ao principio do dispositivo, nos termos do qual sempre caberia à parte optar pela concreta forma de tutela do seu direito. Ora, analisando o requerimento inicial nunca se faz menção a qualquer execução, mas pelo contrário descreve-se com precisão toda a tramitação do inventário que deu origem à alegada necessidade de instaurar o procedimento de arresto.

Acresce que, nos procedimentos cautelares existem factores de celeridade e efectividade no exercício de direitos, os quais, em regra não se compadecem com grandes demoras (arts 3 e 6.º do CPC). Logo, em caso de dúvida sobre a efectiva natureza da acção deveria ter sido cumprida a tramitação do art.º 364º, nº 2, do CPC, quando aí se estabelece que o procedimento (antecipado), «requerido antes de proposta a acção… é apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada e se a acção vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa»."