"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/09/2021

Jurisprudência 2021 (38)


Condomínio;
personalidade judiciária; legitimidade passiva*


1. O sumário de RL 23/2/2021 (2536/16.2T8LRS. L1-7) é, na parte relevante, o seguinte:

I – Não conferindo a lei personalidade jurídica ao condomínio, o certo é que o considera do ponto de vista da sua organicidade, conferindo a esta entidade capacidade para, dentro de determinado condicionalismo, representar o conjunto dos condóminos, através da figura do administrador, nos termos do artigo 1436º, alínea i), do Código Civil; agir em juízo, quer na posição activa, quer na posição passiva, isto é, actuando contra qualquer condómino ou terceiro, na execução das suas funções e autorizado pela Assembleia de Condóminos (artigo 1437º, nº 1, do Código Civil), e ser demandada nas acções respeitantes às partes comuns do edifício, nos termos do artigo 1437º, nº 2 e 1433º, nº 6, do Código Civil.

II - Sobre todos os condóminos tomados unitariamente, através da figura orgânica do condomínio, impende a obrigação imposta por lei de zelar pela conservação e manutenção das partes comuns do edifício, conforme liminarmente resulta do disposto nos artigos 1430º, nº 1, e 1420º, nº 1, do Código Civil, o que significa que, estando em causa as partes do edifícios referidas no artigo 1421º, do Código Civil, qualificadas como partes comuns, é sobre esta mesma entidade, representada pelo administrador e cuja vontade funcional se expressa através das decisões aprovadas em Assembleia de Condóminos, que impende a especial obrigação de, agindo proactivamente, impulsionar as obras necessárias, tecnicamente adequadas e idóneas a reparar vícios existentes nas partes comuns, designadamente se forem susceptíveis de afectar e prejudicar as fracções autónomas de cada condómino – partes próprias.

III - Existindo um vício relevante de ordem técnica numa parte imperativamente comum do edifício constituído em propriedade horizontal – como é o caso do solo, alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio (artigo 1421º, nº 1, alínea a), do Código Civil) – constitui obrigação do condomínio, corporizado na pessoa do respectivo administrador e sendo a sua vontade funcional determinada superiormente pelos decisões aprovadas em Assembleia de Condóminos, agir imediatamente (após a recolha da informação necessário e pertinente) no sentido da pronta e eficaz eliminação dos defeitos e na reparação dos estragos causados pelos mesmos, competindo outrossim ao condomínio suportar as despesas inerentes à realização dessas mesmas obras nas partes comuns e à reparação dos estragos provocados nas fracções autónomas dos condóminos afectados, nos termos gerais do artigo 1424º, nº 1, do Código Civil.

IV - Em termos da definição da responsabilidade do Réu condomínio, há que autonomizar o direito do condómino a exigir, nessa qualidade, ao Condomínio o cumprimento da obrigação de realizar nas partes comuns obras de reparação e eliminação das causas dos problemas surgidos na sua fracção autónoma – parte própria –, da obrigação de reparação/indemnização dos danos por si sofridos na sua fracção e bens aí existentes. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não conferindo a lei personalidade jurídica ao condomínio, o certo é que o considera do ponto de vista da sua organicidade, conferindo a esta entidade capacidade para, dentro de determinado condicionalismo, representar o conjunto dos condóminos, através da figura do administrador, nos termos do artigo 1436º, alínea i), do Código Civil; agir em juízo, quer na posição activa, quer na posição passiva, isto é, actuando contra qualquer condómino ou terceiro, na execução das suas funções e autorizado pela Assembleia de Condóminos (artigo 1437º, nº 1, do Código Civil), e ser demandada nas acções respeitantes às partes comuns do edifício, nos termos do artigo 1437º, nº 2 e 1433º, nº 6, do Código Civil.

No mesmo sentido, o artigo 12º, alínea e) do Código de Processo Civil, confere personalidade judiciária ao condomínio resultante da constituição do regime da propriedade horizontal, relativamente às acções em que se inserem os poderes do respectivo administrador.

Importa neste contexto considerar a obrigação legal que compete ao condomínio, através das funções legalmente atribuídas ao respectivo administrador, de realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns, nos termos do artigo 1436º, alínea f), do Código Civil.

Assim, é absolutamente incontroverso que sobre todos os condóminos tomados unitariamente, através da figura orgânica do condomínio, impende a obrigação imposta por lei de zelar pela conservação e manutenção das partes comuns do edifício, conforme liminarmente resulta do disposto nos artigos 1430º, nº 1, e 1420º, nº 1, do Código Civil.

O que significa que, estando em causa as partes do edifícios referidas no artigo 1421º, do Código Civil, qualificadas como partes comuns, é sobre esta mesma entidade, representada pelo administrador e cuja vontade funcional se expressa através das decisões discutidas e aprovadas em Assembleia de Condóminos, que impende a especial obrigação de, agindo proactivamente, impulsionar as obras necessárias, tecnicamente adequadas e idóneas, a reparar vícios existentes nessas partes comuns, designadamente se forem susceptíveis de afectar e prejudicar as fracções autónomas de cada condómino – partes próprias.

Concretamente, existindo um vício relevante de ordem técnica numa parte imperativamente comum do edifício constituído em regime de propriedade horizontal – como é o caso do solo, alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as restantes que constituem a estrutura do prédio (artigo 1421º, nº 1, alínea a), do Código Civil) – constitui obrigação do condomínio, corporizado na pessoa do respectivo administrador e sendo a sua vontade funcional determinada superiormente pelos decisões aprovadas em Assembleia de Condóminos, agir imediatamente (após a recolha da informação necessária e pertinente) no sentido da pronta e eficaz eliminação dos defeitos assinalados e na reparação dos estragos causados pelos mesmos nas partes próprias (com o acordo do condómino interessado, como é óbvio).

Competirá outrossim ao condomínio suportar as despesas inerentes à realização dessas mesmas obras nas partes comuns e à reparação dos estragos provocados nas fracções autónomas dos condóminos afectados, nos termos gerais do artigo 1424º, nº 1, do Código Civil.

Destas considerações resulta, com toda a clareza, a afirmação da legitimidade substantiva do condomínio Réu para ser demandado nos presentes autos, atendendo à estrutura factual e jurídica da causa de pedir apresentada e à configuração concreta dos pedidos com base nela deduzidos pelos demandantes, os ora AA. e condóminos.

Logo, não assiste razão ao apelante condomínio quando pretende esquivar-se à assunção dessa sua responsabilidade, sustentando, sem fundamento jurídico aceitável, a ilegitimidade para estar nos autos como Réu."


*3. [Comentário] a) Os equívocos sobre a personalidade e a legitimidade processual do condomínio são frequentes. Isto implica que esses equívocos se alimentam a si próprios, porque, atendendo à confusa orientação jurisprudencial na matéria, são propostas acções pelo condomínio, quando o deveriam ser pelo administrador do condomínio, e são instauradas acções contra o condomínio, quando o deveriam ser contra esse esse administrador.

b) O acórdão seguiu uma versão da costumada interpretação equivocada do disposto no art. 1437.º, n.º 1, CC, vendo nele a consagração de que a "entidade" que é constituída pelo condomínio considerado "sobre o ponto de vista da sua organicidade":

"[pode] agir em juízo, quer na posição activa, quer na posição passiva, isto é, actuando contra qualquer condómino ou terceiro, na execução das suas funções e autorizado pela Assembleia de Condóminos (artigo 1437º, nº 1, do Código Civil) [...]"

c) Não interessa proceder a uma análise pormenorizada desta conclusão, em nada condizente com o texto do art. 1437.º, n.º 1, CC. O que interessa é lembrar que o art. 1437.º, n.º 2, CC estabelece o seguinte:

"O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício."

Quando se diz que "o administrador pode também ser demandado" é porque o art. 1437.º, n.º 1, CC se refere ao caso em que o administrador pode demandar (claramente como substituto processual do condomínio) qualquer condómino ou um terceiro.

Ora, perante o disposto no art. 1437.º, n.º 2, CC quanto à legitimidade passiva do administrador do condomínio, o que se decidiu no acórdão? Decidiu-se isto:

"Destas considerações resulta, com toda a clareza, a afirmação da legitimidade substantiva do condomínio Réu para ser demandado nos presentes autos, atendendo à estrutura factual e jurídica da causa de pedir apresentada e à configuração concreta dos pedidos com base nela deduzidos pelos demandantes, os ora AA. e condóminos."

Salvo o devido respeito, esta conclusão -- se realmente reportada à legitimidade processual --contraria o disposto no art. 1437.º, n.º 2, CC.

MTS