"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2021

Jurisprudência 2021 (25)


Consignação em depósito;
processo; âmbito de aplicação*


1. O sumário de RC 2/2/2021 (170/18.1T8PCV.C1) é o seguinte:

1. O devedor que tenha dúvidas quanto à existência da sua própria responsabilidade e que pretenda efetuar a consignação em depósito “para o caso de dever”, não se poderá socorrer do processo de consignação em depósito.

2. O pedido da seguradora de consignação em depósito do valor máximo do capital seguro, com fundamento em que, sendo vários lesados, não se encontra determinado o montante dos dados que cada um deles sofreu, desconhecendo o valor a pagar rateadamente a cada um, disponibilizando o capital aos lesados, envolverá um reconhecimento da sua responsabilidade pelo pagamento das indemnizações até ao valor do capital seguro.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O tribunal recorrido veio a negar à Requerente o direito à consignação em depósito do valor do capital máximo garantido, com fundamento em que, “para que seja admissível a consignação em depósito, necessário se torna que não haja qualquer dúvida quanto à existência da obrigação”, face à inexistência de uma assunção clara por parte da A. da sua qualidade de devedora:

“Ora, dos factos dados como provados resulta desde logo que as causas, circunstâncias e consequências do sinistro participado pela empresa tomadora do seguro à Demandante ainda não estão totalmente esclarecidas, sabendo-se apenas que, desse mesmo sinistro, resultaram uma morte e feridos graves e ligeiros, bem como prejuízos materiais de avultado montante em outros lesados. Outrossim, apesar de naturalmente não se ignorar a existência de possibilidade de sub-rogação, sendo, aliás, a mesma muito comum nos casos em que envolvam contratos de seguros, crê-se que essa incerteza na assumpção do débito em apreço resulta igualmente, não só da circunstância de resultar provado que no dito contrato de seguro estão previstas expressamente cláusulas de exclusão da responsabilidade, tal como decorre dos factos dados como provados no pontos 12, mas também e principalmente pelo facto de ser a própria demandante que, no seu articulado, concretamente no seu artigo 18º, faz menção à possibilidade do dito sinistro poder nem estar coberto pelo seguro em apreço. De facto, em momento algum da sua alegação vertida na petição inicial, a demandante alega que a empresa tomadora do seguro é inequivocamente responsável quanto à obrigação em apreço e, por conseguinte, e por força do contrato de seguro com aquela celebrado, é ou poderá ser a ora demandante também ela responsável por essa obrigação, factos estes que o Tribunal considera serem essenciais à apreciação da pretensão da demandante. Deste modo, pode suceder que no inquérito crime, que se encontra a correr termos no DIAP de Coimbra, se apure a eventual negligência do tomador de seguro em causa no contrato de seguro em apreço, mas também não se pode ignorar que pode ser apurada a inexistência de qualquer conduta dolosa ou negligente por parte do mesmo, o que inevitavelmente, neste último caso, levaria à inexistência de qualquer obrigação de indemnização por parte da ora Demandante. Acresce que o facto da seguradora em causa vir peticionar a admissibilidade de uma consignação em depósito não pode, sem mais, permitir que se conclua pela certeza e, concomitantemente, assumpção clara pela mesma dessa certeza do débito fundador da respectiva consignação, ou seja, pela confissão de dívida. Assim, no entendimento do Tribunal, do elenco de factos alegados e ora dados como provados não resulta, de forma alguma, muito pelo contrário, a certeza e consequentemente a exigibilidade do débito em apreço, sendo que ainda é, nesta data, duvidosa a sua existência, porquanto não foram ainda apuradas as causas do sinistro em apreço. Sabe-se apenas, ao invés, tal como resulta provado, que nas circunstâncias espácio-temporais descritas no ponto 8 dado como provado ocorreu um sinistro relacionado com a explosão de um lote de artefactos de pirotecnia, tendo resultado uma morte, feridos graves e ligeiros, e inúmeros danos materiais, estando ainda a serem investigadas as suas causas. Do exposto, crê-se que não é possível concluir pela existência de um dos pressupostos legalmente exigíveis para que se pudesse admitir a consignação em depósito em apreço, a saber a inequivocidade/certeza quanto ao débito que funda essa mesma consignação, a qual nem sequer foi alegada pela demandante, factualidade essa que se considera essencial à apreciação da pretensão deduzida nos presentes autos, razão pela qual, sem mais delongas, não se admite a mesma, por manifestamente inadmissível.”

Insurge-se a Apelante contra o decidido alegando que o tribunal interpretou erradamente os artigos 49º e 102º, nº2 da Lei do Contrato e Seguro, argumentando que ao colocar à disposição de todos os lesados o capital seguro, reconheceu o dever de indemnizar todos os lesados, proporcionalmente.

Desde já adiantamos ser de dar razão ao Apelante quando afirma que, ao colocar à disposição de todos os lesados o capital seguro, reconheceu o dever de indemnizar todos os lesados, proporcionalmente, uma vez que é precisamente esse o sentido ou o objetivo do processo de consignação em depósito.

A tal respeito dispõe o artigo 841º do Código Civil (CC) sob a epígrafe “Consignação em depósito”:

1. O devedor pode livrar-se da obrigação mediante depósito da coisa devida, nos seguintes casos:
a) Quando, sem culpa sua, não puder efetuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor.
b) Quando o credor estiver em mora.
2- A consignação é facultativa.

O devedor pode encontrar-se em situação de querer cumprir a obrigação e não lhe ser possível fazê-lo, pelo que, então, dado o interesse em se libertar, concede-lhe a lei o meio da consignação em depósito, que lhe faculta a exoneração da dívida[Adriano Vaz Serra, “Consignação em Depósito, venda da coisa devida e exoneração do devedor por impossibilidade da prestação resultante de circunstancia atinente ao credor”, in BMJ nº40 – Janeiro 1954, p.5].

A consignação em depósito constitui o meio de que se pode servir o devedor, ou a qualquer credor a quem seja lícito cumprir a obrigação (artigo 842º), para forçar o credor a receber a prestação[Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed. Coimbra Editora, p.128]. [...]

Para o devedor apresenta a vantagem de que fica liberado desde a data do depósito e validando-se a consignação não se contam juros.

A instauração de um processo de consignação em depósito envolverá, em princípio, o reconhecimento por parte do requerente (se invoca uma obrigação própria) da sua qualidade de devedor, de tal modo que, se o mesmo for aceite pelo credor ou vier a ser julgada válida por sentença transitada em julgado, a obrigação se extingue sem possibilidade de posterior revogação (o artigo 845º, só permite que a coisa depositada possa ser retirada até ser aceite pelo credor ou julgada válida).

Discutindo-se no âmbito dos trabalhos preparatórios ao Código Civil sobre se o devedor poderia consignar para o caso de dever – considerando-se exonerado no caso de se vir a julgar que deve e podendo levantar a coisa na hipótese contrária –, Adriano Vaz Serra, reconhecendo que a consignação feita para o caso de a dívida existir não pareceria poder submeter-se inteiramente, quando aceite, ao regime geral da consignação, veio propor a seguinte norma: “Se houver, sem culpa do devedor, dúvidas acerca da existência da dívida, pode recorrer-se a uma consignação feita sob condição de a dívida existir, caso em que o credor só pode só pode receber o objeto consignado depois de, por acordo entre ele e o devedor ou por decisão judicial, se esclarecer que a dívida existe”.

Não tendo tal proposta sido adotada pelo legislador, torna-se claro que o devedor que tenha dúvidas quanto à existência da sua própria responsabilidade não se poderá socorrer deste mecanismo.

A consignação em depósito, enquanto causa de extinção de uma obrigação, só é admissível se quem a requer não tiver duvidas da existência da mesma, ou seja, se apresente como efetivo devedor[Cfr., Acórdão do TRP de 08-07-2002, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt].

Vejamos, assim, os termos em que a Requerente/Seguradora se apresenta a requerer a consignação em depósito do capital máximo da apólice respeitante ao seguro celebrado com a P..., na sequencia do sinistro ocorrido no dia 4 de abril de 2018.

A Requerente faz assentar o seu pedido de consignação em depósito na seguinte alegação:

“c) Cumprimento da obrigação de indemnizar

13 – Nos termos do artigo 102º do Decreto Lei nº 72/2008 de 16 de abril “o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida …”, sendo que, a “obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos” (artigo 104º do mesmo diploma legal) e, essa obrigação tem como limite o “capital seguro” (artigo 138º do mesmo diploma legal).

14 – Até à presente data, estão determinados o número de lesados como adiante se descreverá, mas não está determinado o montante de danos que cada lesado sofreu, sabendo-se, apenas, que o montante global das indemnizações, ultrapassa, em muito, o valor do capital seguro.

15 – Nos termos do artigo 142º do referido diploma legal “Se o segurado responder perante vários lesados e o valor total das indemnizações ultrapassar o capital seguro, as pretensões destes são proporcionalmente reduzidas até à concorrência desse capital” (vide artigo 49 nº 1).

16 – A Demandante está de boa-fé, e nessa medida, não pretende beneficiar uns lesados em prejuízo dos outros (vidé artigo 142º nº 2 do referido diploma legal).

17 – Do mesmo modo que não pretende, adiantar verbas aos lesados que sofreram menos danos, em prejuízo daqueles que, por força das circunstâncias, a determinação do montante em causa é mais morosa.

18 – Assim como, não pretende deixar de contemplar, na medida do possível, todos os lesados, independentemente de se saber se, na realidade, o evento que determinou tais prejuízos, está ou não coberto pelo seguro contratado.

Pelo que,

19 – À semelhança ao regime geral da garantia das obrigações (artigo 601º do Código Civil) impõe-se, no caso presente, o rateio entre os lesados,

Ou seja,

20 - Sendo o capital da apólice insuficiente, os vários lesados com direito a serem indemnizados devem ser pagos rateadamente no respeito pelo princípio par conditio creditorum (Romano Martinez – Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp). (…)

Nestes termos e nos melhores de direito, verificada que está a situação descrita no artigo 841º nº 1 alínea a) do Código Civil, a Demandante requer a V. Exas. se digne considerar válida a Consignação (artigo 846º do Código Civil) e, por consequência, deferir o depósito de 45.000,00 euros, na Caixa Geral de Depósitos (artigo 916º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil), sendo que para feitos do disposto no artigo 917º do Código de Processo Civil, se identificam os lesados / credores conhecidos, para citação e consequente reclamação do seu crédito (artigo 604º do Código Civil), seguindo-se os ulteriores termos.”

Da leitura de tal alegação não se pode retirar que a Requerente pretenda fazer o depósito em termos condicionais e unicamente para a hipótese de se vir a reconhecer a sua responsabilidade em indemnizar baseada no contrato de seguro celebrado com a lesante. O motivo invocado para o pedido de consignação em depósito – como alternativa ao pagamento imediato aos lesados – é um só, a indeterminação do valor a pagar a cada um dos lesados, uma vez que o valor dos danos é consideravelmente superior ao valor máximo do capital segurado, sendo que, encontrando-se definida a obrigação da Requerente quanto ao respetivo montante – 45.000,00 € –, bem como a identificação dos lesados, é desconhecido o valor que caberá a cada um deles, uma vez que aqueles 45.000 € serão a ratear pelos lesados, proporcionalmente ao valor dos seus créditos.

Se é certo que no artigo 18º a Requerente refere que quer “contemplar, na medida do possível todos os lesados, independentemente de se saber se, na realidade, o evento que determinou tais prejuízos, está ou não coberto pelo seguro contratado”, não se pode daí retirar a vontade de um depósito condicional – que, de facto, não se enquadraria neste processo –, mas, tão só, que pretende, desde já – e sem esperar pelo apuramento de responsabilidades, nomeadamente no processo crime que está a decorrer – disponibilizar desde já aos lesados o valor máximo que lhe pode ser exigido em cumprimento do contrato de seguro em apreço.

Quanto à referência, na decisão recorrida de, no inquérito crime, “poder vir a ser apurada a inexistência de qualquer conduta dolosa ou negligente por parte do mesmo (tomador de seguro), o que inevitavelmente, neste ultimo caso, levaria à inexistência de qualquer obrigação de indemnização por parte da ora demandante”, tal não importaria a desresponsabilização da seguradora, assim como, a eventual verificação de alguma cláusula de exclusão da responsabilidade sempre se encontraria dependente da sua invocação pela própria seguradora.

A Seguradora/Requerente pode, desde já, assumir a satisfação da indemnização aos lesados, independentemente do eventual resultado do processo crime, sendo que, como resulta da apólice junta aos autos, tal seguro não garante o pagamento decorrente de indemnizações decorrentes de responsabilidade criminal, nomeadamente por atos ou omissões dolosos.

E o certo é que a Requerente veio peticionar a consignação em depósito invocando o disposto nos artigos 102º e 104º da Lei do Contrato de Seguro, determinando o primeiro que “O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstancias e consequências”, e o segundo que “a obrigação do segurador se vence decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º”.

Como tal, dá-se razão ao Apelante quando afirma nas suas alegações de recurso que:

“embora as circunstâncias do acidente não tenham sido concretamente apuradas, a recorrente, no cumprimento do seu dever contratual, colocou à disposição de todos os interessados o valor do Capital Seguro evitando que algum deles fosse beneficiado em relação a outros, respeitando, assim, a exigência de rateio previsto no já citado artigo 142º e evitando, deste modo, pagamentos para além do limite de Capital Seguro (artigo 142º nº 2 “à contrário”).
 
A recorrente – ao contrário do que muito se afirma – agiu de forma célere e de modo a que, no mais curto espaço de tempo, todos os beneficiários fossem, na medida do possível, ressarcidos à luz do contrato de seguro cuja eficácia era plena no momento do sinistro.

Reconheceu, portanto, sem margem para dúvidas de que o Capital Seguro deveria ser distribuído por todos os lesados, ao ter colocado à sua disposição o valor de 45.000,00 euros.”

Esta disponibilização do capital aos lesados envolve o reconhecimento, ainda que tácito, de que é “devedora” da quantia depositada.

De qualquer modo, se dúvidas restassem ao tribunal relativamente à questão de saber se, com o requerimento de consignação em depósito estava a Requerente, ou não, a assumir o dever de indemnizar os lesados, proporcionalmente, até ao valor máximo do capital seguro, poderia ter pedido esclarecimentos à parte.

Como tal, entende-se verificarem-se os pressupostos de que o artigo 841º, nº 1 do CC faz depender o direito do devedor a requerer a consignação em depósito da coisa devida, sendo de revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento do processo para apreciação das demais questões em aberto."


*3. [Comentário] A RC decidiu bem.

O sumário é que podia ser um pouco mais claro quanto ao sentido da decisão, que é afinal o de aceitar a utilização do processo de consignação em depósito (art. 916.º ss. CPC) pela seguradora.

MTS