Reconvenção;
compensação judiciária; subsidiariedade*
1. Para enxertar no processo comum um pedido reconvencional a que corresponda o processo especial de prestação de contas tem que se encontrar ou interesse sério e de relevo que o justifique ou a sua indispensabilidade para obter uma decisão justa, nos termos do artigo 37º nº 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 266º nº 3 do mesmo diploma.
2. A compensação, que é um dos modos de operar a extinção de créditos, não opera automaticamente: tem que ser precedida da expressão da vontade nesse sentido de uma das partes à outra e essa declaração de vontade é ineficaz se for feita sob condição, como dispõe o artigo 848º, nºs 1 e 2 do Código Civil.
3. Por isso, é impossível invocar validamente a compensação sem se reconhecer o crédito que se quer ver compensado.
4. Em consequência, não é admissível a formulação de pedidos reconvencionais com fundamento na compensação do crédito do Autor se este é negado pelo reconvinte, mesmo que formulado subsidiariamente, para o caso do crédito exigido pelo Autor vir a demonstrar-se.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2- Da compensação
A compensação é uma forma de obter a extinção de uma obrigação, uma vez que se evita pagamentos recíprocos, tal como é uma forma de garantir o pagamento, prevenindo-se a insolvência da outra parte.
A questão do exercício da compensação em sede de reconvenção tem levantado, ao longo dos tempos e atualmente, um conjunto de questões doutrinais e jurisprudenciais muito amplo, que tem como pano de fundo o fundamento desta figura, a que se contrapõem as suas consequências processuais.
Pretende-se ao possibilitar a reconvenção com a invocação da compensação, igualar a posição dos demandados e demandantes, quando são entre si mutuamente credores, para verem as dívidas simultaneamente extintas, sem benefício do que a exigiu primeiro, nomeadamente quanto ao risco de insolvência da contraparte (embora na instância reconvencional o reconvindo não possa já deduzir reconvenção).
Quando duas pessoas estão obrigadas uma para com a outra, os dois débitos extinguem-se pela quantidade correspondente, pelo que pode operar a compensação. No entanto, como se verá a mesma não é, na nossa lei, de funcionamento automático, exige uma declaração de vontade nesse sentido.
A admissibilidade da livre invocação da compensação do crédito exigido, com outro, com causa de pedir totalmente distinta e que se pode até mostrar ilíquido, nem estar ainda determinado, em sede de reconvenção fundada em factos estranhos aos autos, traz, muitas vezes, demora e complexidade para os autos.
É sabido, que tal reconvenção, com uma segunda (ou mais) causas de pedir pode dificultar, muitas vezes sobremaneira e deliberadamente, o exercício do direito pelo Autor (por isso se discutindo também a sua admissibilidade e tratamento nos processos que na sua regulamentação apenas admitem dois articulados e a possibilidade de operar a compensação com a invocação de crédito não traduzido em título executivo na oposição à execução).
Têm, assim, sido colocados um conjunto de requisitos, ora formais, ora processuais (como a forma do processo supra verificada) que não permitem que o Réu traga aos autos a discussão de um qualquer crédito com fundamento num direito à compensação.
É sabido que a compensação é uma forma de extinção das obrigações. Como explica o nº 1 do art 847º do Código Civil aquele que for simultaneamente credor e devedor de outrem, pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificadas determinadas circunstâncias.
A compensação não opera automaticamente, tem que ser potestativa: depende de uma declaração de vontade do autor da compensação.
Para que a compensação poder operar têm que se verificar os seguintes pressupostos:
.a) a existência de uma declaração de compensação (artigo 848º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil);
.b) a reciprocidade dos créditos (artigo 851º do Código Civil);
.c) que o crédito seja judicialmente exigível (artigo 847º nº 1, alínea a ) do Código Civil);
.d) que as obrigações em causa sejam fungíveis e homogéneas (artigo 847º alínea b) do Código Civil)
.e) a não exclusão da compensação pela lei (artigo 853º do Código Civil)
Analisemos com um pouco mais de pormenor as mais relevantes.
.a) a declaração de vontade de compensar.
A compensação para operar tem que ser precedida da expressão da vontade nesse sentido de uma das partes à outra.
Tal declaração de vontade de compensar é ineficaz se for feita sob condição (nºs 1 e 2 do artigo 848º do Código Civil).
Assim, tem sido entendimento de alguma jurisprudência, que seguimos, que sem reconhecer o crédito que pretende ver compensado é impossível expressar a vontade de o compensar.
Esta conclusão, retirada dos preceitos substantivos quanto aos requisitos para operar a compensação, que não sofreu qualquer alteração, por se manter incólume o disposto no artigo 838º do Código Civil, teve reconhecimento no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 652/07.0TVPRT.P1.S1, de 09/09/2010 e nos acórdãos da 2ª instância, já no âmbito do novo Código de Processo Civil proferidos nos processos: 586/19.6T8VNG-A.P1, de 18/6/2020, 839/17.8T8PTM.E1 de 11/4/2019, 1537/16.5T8STR-B.E1, de 2/10/2018, 3942/15.5T8CSC-A.L1-4 de 16/11/2016,
95961/13.8YIPRT.P1, de 23/2/2015, 2361/10.4TBPVZ-A.P1, de 29/10/2012, todos disponíveis no portal dgsi.pt.
“Quem pretende liberar-se de uma obrigação com recurso à compensação tem necessariamente de admitir a preexistência de um crédito por parte daquele a quem se acha juridicamente vinculado e tornar essa compensação efetiva através de uma declaração deste último”. No recente e apelativo acórdão de 18/06/2020, no processo 586/19.6T8VNG-A.P1, explica-se de forma cristalina que o Réu tem necessariamente “de admitir a preexistência de um crédito por parte daquele a quem se acha juridicamente vinculado e que o demanda para tornar efetivo esse crédito, devendo o devedor, para tanto, efetuar declaração no sentido de que pretende operar a compensação com o crédito que também tem sobre aquele” fazendo o percurso histórico do preceito substantivo sobre a compensação aqui em apreço (o artigo 848º nº 2 do Código Civil).
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, 3ª ed., ao artigo 848º do Código Civil, pag. 141, pronunciam-se contra, mas citam, no sentido na necessidade do reconhecimento do crédito, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-2-1983, demonstrando como este entendimento já vem de há muito tempo.
É certo que a prática corrente não tem, amiúde, olhado de perto para este preceito e requisito substantivo, o que não quer dizer que deva desde já fazer-se do mesmo letra morta. O mesmo tem múltiplas vantagens, restringindo a invocação da compensação aos casos em que a mesma tem mesmo razão de ser (dificilmente se aceitaria que alguém negasse o débito, mas afirmasse tê-lo pago; da mesma forma não se entende possível que alguém negue a dívida, mas afirme que a pretendeu compensar com um crédito que tem sobre a outra parte).
.b) os dois créditos têm que ser recíprocos.
As partes têm que ser simultaneamente e na mesma qualidade credor e devedor, como explana o artigo 851º do Código Civil.
.c) a exigibilidade do crédito do autor da compensação (artigo 847º nº 1 do Código Civil).
Hoje parece já pacífico que a exigibilidade judicial do crédito nada tem a ver com o reconhecimento judicial dele. No entanto, ainda não é claro se o crédito pode decorrer de responsabilidade extracontratual e apresentar elevado grau de incerteza para que se possa considerar “exigível judicialmente” na aceção utilizada pelo artigo 847º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil.
No Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 3ª edição, 1986, pág. 136, Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao artigo 847º do Código Civil, quanto à imposição da exigibilidade do crédito (da sua certeza), escreverem: “a necessidade de a dívida ser exigível no momento em que a compensação é invocável afasta, por sua vez, a possibilidade de, em ação de condenação pendente, o demandado alegar como compensação o crédito de indemnização que se arrogue contra o demandante, com base em facto ilícito extracontratual a este imputado, enquanto não houver decisão ou declaração que reconheça a responsabilidade civil do arguido”. Percebe-se bem esta posição, face aos entraves que o Réu, com a invocação deste tipo de créditos, pode trazer à discussão do direito do Autor.
E bem assim se entende a posição seguida no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no processo 11148/12.9YIPRT-A.L1.S1, de 1/7/2014,disponível no portal dgsi.pt, exigindo para a compensação o recurso a “um direito de crédito, decorrente de uma obrigação civil, vencida, incumprida e ainda não extinta”, com o seguintes fundamentos “crédito passivo não pode ser obrigação natural, por ter de ser exigível judicialmente, o que só acontece nas obrigações civis (artigo 402.º do Código Civil) e não pode ser vincendo por ter de ser “exigível”, o que significa a possibilidade da sua realização coactiva (cfr., também, “Das Obrigações em Geral”, 7.ª ed., II, 204, do Prof. Antunes Varela), “situação em que se encontra a prestação já vencida”, como refere o Prof. Pessoa Jorge, in “Lições de Direito das Obrigações”, 1966-284, e que o Prof. Menezes Cordeiro apoda de “exigibilidade em sentido forte” (ob. vol. cit. 222). Sempre, porém, a existência do crédito compensável não pode ser só apurada (podendo, apenas, ser liquidada) no âmbito do juízo de compensação.” “Parece, assim, ser claro que a exigibilidade do crédito, não se confundindo com o seu reconhecimento (não se conhecem decisões do STJ no sentido da necessidade de reconhecimento do contra-crédito, fora do âmbito do processo executivo), também não implica a mera possibilidade de vir a ser declarado um contra-direito de crédito.”
No sentido que o crédito só é judicialmente exigível, para este efeito, se tiver as condições que permitem a realização coativa da prestação espraia-se muita jurisprudência e doutrina, salientando-se agora o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 19/01/2006, no processo 0536641 , disponível em www.dgsi.pt, que esclarece: “Ora, temos entendido que o legislador ao usar a expressão “exigível” se quis referir a um crédito certo, seguro, e não meramente hipotético ou eventual. Enquanto não estiver reconhecido o crédito, não pode o mesmo servir de sustento a uma compensação…de “créditos”. E parece claro que não é nesta demanda que tal reconhecimento do crédito pode ter lugar, mas, sim, em ação autónoma, pois o contracrédito já tem de estar definido—para poder ser “exigível” —no momento em que se alega a compensação...de créditos. É certo que a iliquidez do crédito não obsta à compensação. Mas isso não afasta a bondade da afirmação de que o crédito tem de existir efectivamente ou realmente no momento em que se invoca—“mediante declaração de uma das partes à outra” (artº 848º, 2, CC)—a compensação.
Liquidar o crédito é uma coisa; reconhecer a sua existência é outra bem diferente. E se o primeiro pode ter lugar no processo em que se invoca a compensação, já o segundo não pode aqui ter lugar, pois quando o contracrédito é invocado já tem de estar declarado, ou seja, deve ser “exigível”. Cita jurisprudência em seu abono, bem como doutrina, mencionando Menezes Cordeiro in Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, pág. 113 e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, 2002, Vol. II, pág. 196.
É certo que forte corrente jurisprudencial, também com apoio, e recente, no Supremo Tribunal de Justiça, defende uma interpretação menos exigente desta norma, concluindo que a referência a uma obrigação judicialmente exigível no âmbito do artigo 847º nº 1 alínea a) do Código Civil apenas remete para a sua exigibilidade em ação declarativa (cf o acórdão de 11/07/2019, no processo 1664/16.9T8OER-A.L1.S1). No rigor, essa é a posição que parece resultar do teor dos artigos 847º e 848º do Código Civil: a compensação para operar tem que ter sido declarada por uma parte à outra, mas o crédito passivo não tem que ser imediatamente exequível (mau grado os seus potenciais efeitos, nomeadamente se seguir o mesmo entendimento para a oposição à execução, prescindindo-se, quer da exequibilidade do crédito objeto da declaração de compensação, quer da sua superveniência, no caso desse ser o título da execução, sujeitando o credor que deduziu ação declarativa e obteve uma sentença favorável, ainda a segunda ação da mesma natureza, a oposição à execução, enxertada, para obter a eficácia da primeira que também teve que intentar).
d) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações.
As dívidas têm que ser da mesma natureza e género.
e) a não exclusão da compensação pela lei.
São diversos os casos em que a lei afasta a compensação, previstos no artigo 853º do Código Civil, que determina que não podem extinguir-se por compensação: a). Os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos; b) Os créditos impenhoráveis, exceto se ambos forem da mesma natureza; c) Os créditos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, exceto quando a lei o autorize. como, agora no seu nº 2, estipula que não é admitida a compensação, se houver prejuízo de direitos de terceiro, constituídos antes de os créditos se tornarem compensáveis, ou se o devedor a ela tiver renunciado.
Concretizando
A decisão recorrida afasta a possibilidade de aqui se admitirem os pedidos reconvencional relativos aos (demais) créditos invocados pelas Rés por via do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 266º do Código de Processo Civil, porquanto as Rés nunca na contestação afirmaram pretender exercer a compensação.
Com efeito, as Rés só agora nas suas alegações de recurso vêm afirmar que pretendem exercer a compensação.
Somos da opinião que, em regra, se pode fazer uma leitura abrangente e teleológica dos articulados, percebendo as pretensões das partes, desde que resultem de forma clara e perfeitamente compreensível, embora expressas com algum vício técnico ou de forma menos direta que o desejável.
Neste caso, mesmo com enorme esforço, não é possível, de todo, alcançar ali tal pretensão, visto que as Rés de forma categórica negam o crédito contra o qual afirmam, agora, pretender exercer a compensação de créditos.
Assim, não tendo as Rés afirmado (sequer subsidiariamente, o que como se viu, para a corrente jurisprudencial que seguimos não seria suficiente) que pretendem exercer o direito à compensação do seu crédito com o (inexistente, no seu entender) crédito das Autoras, nunca por aqui se poderia recorrer a esta alínea para viabilizar a reconvenção.
Também por aqui há que dar razão à decisão recorrida."
3. a) A RG decidiu bem o caso concreto.
b) Não pode passar sem reparo o obiter dictum quanto à inadmissibilidade da compensação judiciária subsidiária.
Já houve a oportunidade de dissipar as dúvidas que -- de forma algo inesperada -- têm vindo a ser suscitadas quanto a essa figura centenária na recente jurisprudência portuguesa (clicar aqui). Nada há a retirar ao que então se disse.
Aproveita-se apenas para acrescentar, em complemento ao apontamento histórico que consta do referido post, as seguintes referências ainda mais antigas do que a dele constante:
-- Kohler, ZZP 24 (1898), 24, considera que uma das características da "compensação processual" (prozessuale Aufrechnung) consiste em que esta pode ser condicional, no sentido de que deduzida sob a condição da existência ou do reconhecimento em juízo do crédito do autor;
-- Stölzel, ZZP 24 (1898), 50 ss., analisa a compensação eventual (Eventualaufrechnung); o mesmo Stölzel, AcP 95 (1904), 1 ss., pergunta e responde: "Existe uma compensação eventual? A pergunta deve ser respondida afirmativamente".
Uma nota complementar: Stölzel era adepto da chamada Klageabweisungstheorie, segundo a qual, a partir do momento em que se encontra provado o contracrédito do réu, a acção deve ser julgada improcedente, porque, mesmo que o crédito do autor exista, ele é extinguido pela compensação. Quer dizer: o carácter eventual da compensação refere-se tanto à situação em que a compensação é deduzida para o caso de ser reconhecido o crédito do autor, como à situação em que, a partir do momento em que se encontra reconhecido o contracrédito do réu, se pode deixar em aberto o reconhecimento do crédito do autor, porque, em qualquer caso, a acção tem de terminar com uma decisão de absolvição.
Hoje segue-se a chamada Beweiserhebungstheorie, de acordo com a qual o contracrédito do réu só deve ser apreciado depois de estar provado o crédito do autor. Segundo esta orientação, a compensação é eventual, porque só pode operar depois de em juízo se encontrar reconhecido o crédito do autor.
c) Ainda que se entenda que a compensação subsidiária ou eventual é deduzida sob a condição da existência ou do reconhecimento do crédito do autor, importa referir que esta condição nada tem a ver com aquela a que se refere o art. 848.º, n.º 2, CC.
Um pedido subsidiário é -- pode dizer-se -- um pedido condicional. É claro, no entanto, que esta condição nada tem em comum com a condição a que se referem os art. 270.º ss. CC. O acórdão da RG padece desta confusão entre a condição "processual" e a condição "material".
MTS