"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/09/2021

Jurisprudência 2021 (40)


Sigilo bancário;
herdeiros


1. O sumário de RG 25/2/2021 (62/20.4T8VRL-B.G1) é o seguinte:

I- Para que haja necessidade de recorrer ao incidente de quebra de sigilo profissional necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar ou, por outras palavras, o referido incidente pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente;

II- “Se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente”;

III- O direito do titular de uma conta bancária à informação resulta diretamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta e, à morte daquele, deve considerar-se transmitido aos seus herdeiros;

IV- Estes, tendo sucedido na posição do titular ou do co-titular da conta, têm o “direito de partilhar o segredo”, como, mesmo no caso das contas co-tituladas, aquele o teria se vivo fosse, a tal “partilha de segredo” se tendo sujeitado quem aceitou proceder à abertura de uma conta com outrem, devendo, pois, a informação ser prestada não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros;

V- Inexistindo sigilo que aos herdeiros possa legitimamente ser oposto pela entidade bancária falha o pressuposto básico do incidente em causa.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na situação em apreço, da mera leitura da reclamação resulta que a Reclamante não pretende que seja julgado procedente o incidente de levantamento de sigilo suscitado pelo juiz do processo, apenas não concordando com os fundamentos da decisão singular proferida, requerendo por isso que sobre a questão suscitada recaia acórdão.

Não obstante, entende este coletivo que sobre o incidente em questão deverá efetivamente recair acórdão pela simples razão de que, nos termos do nº 3 do art. 652º do CPC, para que a parte possa requerê-lo basta que a mesma se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, não tendo, pois, ao contrário do que sucede com a questão de saber quem pode recorrer, que se verificar, para efeito da admissibilidade da reclamação, se a medida é ou não objetivamente desfavorável a quem reclama.

Passemos, então, a conhecer em coletivo do suscitado incidente de levantamento de sigilo.

O art. 417° do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade a que todos estão vinculados, sejam ou não partes no processo, visando a “realização da justiça material”, ou seja, uma composição do litígio que se mostre conforme aos factos tal qual os mesmos ocorreram.

De acordo com o art. 417º, nº 3, al. c), do CPC a recusa de colaboração para a descoberta da verdade é, porém, admitida se, para além do mais, aquela implicar violação do sigilo profissional.

O segredo bancário constitui uma das formas que pode revestir o “sigilo profissional”.

O n° 4 do aludido preceito prevê a hipótese da “dispensa do dever de sigilo”, mandando aplicar, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

E, a propósito do segredo profissional, estabelece o art. 135° do Código de Processo Penal:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos;
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento;
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

O “sigilo bancário”, tal como os demais casos de sigilo profissional, não constitui um valor absoluto, porquanto respeita a interesses privados, estando prevista a sua “dispensa” ou “quebra” quando estejam em causa valores de hierarquia superior, em consonância com o princípio da prevalência do interesse preponderante.

Mas, óbvio é que “os tribunais só intervêm quando existem conflitos de interesses a dirimir, ou quando, numa situação de ponderação de valores protegidos, haja necessidade de decidir qual o valor que deve prevalecer”. (Acórdão da Relação de Évora de 21.12.2013, Relatora – Isabel Silva)

Deste modo, para que haja necessidade de recorrer ao dito incidente necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar. Quando assim sucede, casuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo.

“O incidente de quebra de sigilo profissional (art. 135º, nº 3, do CPP, pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 492).

Ou seja, como se enfatiza no Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011 (Relator – António Beça Pereira), “a procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida está, de facto, protegida por sigilo, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se ele deve, ou não, ser levantado, a qual constitui o núcleo do incidente. Na verdade, se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente.” Em sentido idêntico, Acórdão desta Relação de 15.09.2014, do mesmo Relator.

Assim, “se a autoridade judiciária, após a necessária averiguação, concluir que não existe dever de segredo relativamente à informação em causa (v.g. verifica-se o consentimento do titular do segredo), considera a escusa ilegítima e ordena, ou requer ao tribunal que ordene, no caso em que a apreciação da legitimidade da escusa esteja a cargo do Ministério Público, a prestação da informação. Tendo a autoridade judiciária concluído pela ilegitimidade da escusa, e tendo sido ordenada a prestação da informação, caberá ao sujeito visado dar cumprimento a tal determinação judicial, prestando o depoimento ou entregando a documentação (cfr. o artigo 182.º do CPP).” (Joana Rodrigues, in “Segredo Bancário e Segredo de Supervisão” – artigo publicado no E-book de Direito Bancário de Fevereiro de 2015, da Coleção de Formação Contínua do CEJ, pág.´s 75 e 76).

Isso mesmo resulta do Acórdão do STJ de 2/2008 que fixou jurisprudência com o seguinte teor:

“1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;

 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;

 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.”

Como se explana na fundamentação do citado acórdão de fixação de jurisprudência, na situação de ilegitimidade da escusa, “não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem o mesmo teria qualquer sentido, porque não existe segredo”. “Não estamos, nessa situação, perante uma quebra de segredo, simplesmente porque o facto não está legalmente coberto pelo segredo bancário, ou houve autorização do titular da conta.”

Na hipótese da legitimidade da escusa, então sim, “a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto (…)”, sendo “precisamente esse juízo que o n.º 3 do mesmo artigo 135.º prevê que seja assumido em incidente específico - incidente de quebra de segredo profissional - a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido”.

Daí que, como se refere no primeiro dos citados acórdãos, “o tribunal da Relação, quando perante si for suscitado tal incidente, para o decidir não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na 1.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legitima por nele radicar. A não ser assim o tribunal da Relação podia ver-se obrigado a ter que levantar um sigilo que, contrariamente ao entendido na 1.ª instância, considera não existir, o que seria verdadeiramente absurdo.”

Vejamos, pois, se, in casu, efetivamente existe um segredo a proteger que legitime a exigência de levantamento do dever de sigilo.

O segredo relaciona-se com um dever de non facere: a conduta proibida é a de revelar ou utilizar a informação por aquele abrangida.

Todavia, como se enfatiza no citado artigo do E-Book sobre Direito Bancário, pág. 64, citando ALBERTO LUÍS, “O segredo bancário em Portugal”, ob. cit., p. 466 e JOSÉ MARIA PIRES, “O dever de segredo na actividade bancária”, Lisboa, Rei dos Livros, 1998, pp. 53 e ss., “a doutrina refere-se a determinadas pessoas que têm o “direito de partilhar o segredo” ou que estão numa “esfera de descrição”, traduzindo a insusceptibilidade, dentro de certos pressupostos, de a elas ser oposto o segredo; de uma outra perspetiva, o ato de revelação do segredo não será, em relação a tais pessoas, ilícito”.

Em causa está, pois, saber se os herdeiros estão na referida "esfera de discrição" e se, cada um deles, ainda que desacompanhado dos demais, pode, por si só, exigir de instituição onde o de cujus detinha conta bancária informação relativa a tal conta.

No que releva para o caso em apreço, na jurisprudência vários são os acórdãos que respondem favoravelmente à referida questão fulcral dos autos (e também à sub-questão a ela associada), afirmando perentoriamente a ilegitimidade da escusa das instituições bancárias relativamente a herdeiro de um titular ou co-titular de uma conta bancária, sendo exemplos paradigmáticos da referida posição os acórdãos do STJ de 28.06.1994 (Relator – Miranda Gusmão) e de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos), o último dos quais contém o seguinte esclarecedor sumário:

“I- O titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações.

 II- O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.

 III- Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.

 IV- Os herdeiros de um depositante bancário não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhes pode ser oposto o segredo bancário.

 V- Os bancos réus não têm qualquer fundamento legal para recusarem a apresentação dos extractos bancários solicitados, designadamente quanto ao período decorrido desde a abertura das contas até à data do óbito da mãe da autora, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo um direito de sua mãe, se transmitiu para a recorrente, sua herdeira, que assim legalmente o poderá exercer.

 VI- Por via hereditária, a autora ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente a sua mãe, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquela pertenciam, na medida do seu respectivo quinhão.”

No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 15.11.2011 (Relator - Fernando F. Freitas): “Não oferece dúvidas que o segredo bancário não é oponível aos herdeiros de pessoa falecida, já que sendo eles chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais desta – cfr. artº.s 2024º. e 2032º., ambos do Cód. Civil – passaram a dever ser considerados titulares da conta bancária”.

Acresce que o reconhecimento da inoponibilidade do sigilo bancário a herdeiros de um dos titulares de conta bancária deve efetuar-se não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 09/11/1999 C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo V, pág. 79; no mesmo sentido, Ac. da mesma Relação de 14/11/2000, in C. J., Ano XXV, Tomo V-2000, págs. 95 e 96, citados no referido acórdão desta Relação), conforme, aliás, indiretamente também resulta do já citado acórdão do STJ de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos).

Aqui chegados, cumpre apenas referir que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de dezembro de 2020, processo 20227/18.8YIPRT-A.P1, invocado pela Reclamante a pretexto do conflito entre o direito dos herdeiros e o direito dos co-titulares da conta bancária ou do direito à reserva do titular da informação, não trata de nenhuma questão com tal tema relacionado, certo que, como salientam os Requerentes do Inventário, na situação naquele acórdão tratado “não há herdeiros, nem sucessão hereditária, mas apenas uma relação jurídica de natureza comercial entre duas pessoas coletivas e em que se considera que o dever de sigilo sobre elementos da escrita comercial não deve ser dispensado quando os factos a apurar podem sê-lo por outro meio de prova”.

Face ao exposto, reafirma-se que deve “ter-se por pacífico que os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhes pode ser oposto o segredo bancário, pois, o direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta”, pelo que “tem a entidade bancária que lhes prestar todas as informações que prestaria a este se ele ainda fosse vivo, por, neste cenário, não existir sigilo bancário”. (citado Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011, Relator – António Beça Pereira)

Em conclusão, não podem as instituições bancárias em referência no caso em apreço escudar-se no sigilo bancário para não darem aos Requerentes do presente inventário, herdeiros do Inventariado, todas as informações que estes solicitarem, relativamente às contas que o falecido ali detinha, quer como único titular quer em co-titularidade com outros, inexistindo o segredo bancário que foi invocado."

[MTS]