Justificação notarial;
impugnação; ónus da prova
1. O sumário de RC 27/4/2021 (711/17.1T8CTB.C1) é o seguinte:
I- As ações populares, que vem sendo consideradas como uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, têm por objeto, antes de mais (embora não se esgotem neles), a defesa dos chamados interesses difusos, enquanto interesses de toda uma comunidade, que tanto podem ser de âmbito internacional, nacional, regional ou mesmo local.
II- Interesses esses que são da mais diversa índole, e que têm, nomeadamente, a ver com a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público.
III- Ações essas (para defesa desses bens) que tanto podem situar-se no âmbito da jurisdição administrativa, como no âmbito da jurisdição comum (civil ou criminal).
IV- Nas ações de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual o réu justificante afirmou a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinado imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhe ele a prova dos factos constitutivos desse seu aí alegado direito, sem que possa beneficiar da presunção do registo decorrente do artº. 7º do CRPed. .
V- O réu justificante (na prova da aquisição originária, por via da usucapião, do seu invocado direito de propriedade sobre o prédio justificado) pode juntar a sua posse à posse do anterior possuidor - desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão -, mesmo que naquela escritura não tenha alegado essa acessão da posse.
VI- A impossibilidade de os bens imóveis classificados (vg. nos termos do artº. 15º da Lei nº. 107/2001, de 08/09), ou em vias dessa classificação, poderem ser adquiridos por usucapião, não se estende àqueles que se encontram situados/inseridos nas suas zonas de proteção (vg. das zonas especiais).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2.1.1 Em defesa desse património, os AA. começaram por impugnar a escriturar a que se reporta o ponto 1. dos factos provados, através da qual foi justificada pela sociedade ré a aquisição originária por si, através do instituto da usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio urbano ali descrito e identificado, com o fundamento de que a declaração aí prestada não é verdadeira, pois que a ré justificante não é dona do aludido prédio, não tendo, ao contrário do que ali se afirma, adquirido sua propriedade por via de usucapião, e daí que tenha pedido, desde logo, que se declare que tal declaração não é verdadeira e que o dito prédio justificado nunca pertenceu à referida ré.
Em consequência dessa declaração pediram ainda ao tribunal que anule o contrato de compra e venda que posteriormente foi celebrado entre a sociedade Ré e o Réu J... formalizado escritura pública outorgada no dia 20 de Outubro de 2015 (a que se reporta agora o ponto 7. dos factos provados e que teve por objeto o aludido prédio), bem como de eventuais negócios jurídicos que tenham entretanto sido celebrados com terceiros por qualquer um dos réus, determinando-se ainda o cancelamento dos correspondente registos de aquisição.
Como bem se salientou o tribunal a quo, o primeiro daqueles pedidos é característico de uma típica ação de impugnação de escritura de justificação notarial.
A questão relacionada com tal pedido e que levou à improcedência da pretensão dos AA. foi, adiantamos já, a nosso ver, e de forma exaustiva, devida e acertadamente apreciada e decidida na sentença recorrida, com uma correta subsunção do direito aos factos apurados, e com a convocação para o efeito dos acertados normativos e institutos legais aplicáveis ao caso, socorrendo-se ainda dos contributos de autorizada jurisprudência e doutrina citadas, para ela, assim, nos remetendo.
Não obstante tal, passaremos a apreciar tal questão.
Nos termos do disposto no artigo 89º do Código do Notariado:
1 - A justificação, para os efeitos do nº. 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião. [...]
Como se sabe, a justificação notarial não constitui em si um ato translativo de propriedade, pressupondo sempre – atenta a invocada aquisição originária por usucapião – a prática de determinados atos anteriores tendentes a conferir à posse características suficientes para conduzir a tal aquisição, atos esses que podem ser impugnados por qualquer interessado (artigo 101º do Código do Notariado).
Como ressalta da referida escritura pública de justificação, e enfatizando, foi nela declarado, e naquilo que para aqui mais releva, ter a sociedade ré adquirido, por usucapião, o aí identificado prédio urbano, na sequência dos atos de posse ali descritos.
Tendo tal escritura sido, como vimos, objeto de impugnação por parte dos AA. que contestam a ali declarada e justificada aquisição do direito de propriedade sobre o dito prédio, competirá então à ré justificante demonstrar, nesta ação, essa aquisição (por via da usucapião).
Na verdade, sendo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial (como é esta nessa parte) uma ação de simples apreciação negativa (cfr. artºs. 10º, nºs. 1, 2, e 3º, al. a), do nCPC) competirá aos RR., e sobretudo a ré justificante, nos termos do preceituado no artº. 343º, nº. 1, do CC, fazer a prova dessa alegada aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre prédio ali justificado.
Aliás, isso mesmo foi afirmado pelo STJ no seu acórdão uniformizador de jurisprudência nº. 1/2008, de 04/12/2007 (publicado no D.R., nº. 63, Série I. de 2008-03-31), ao fixar a seguinte doutrina “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial”. [...]
Posto isto, vejamos então se os RR., e particularmente ré (justificante), lograram demonstrar/provar que última adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio justificado em tal escritura.
Como é sabido, e tal como decorre dos artºs. 1287º e 1316º do CC, a usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se inclui e destaca o direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artºs. 1251º e ss., 1256º e ss. e 1294º e ss. do CC).
Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (artº. 1288º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artº. 1317º, al. c) do CC).
Como ressalta do atrás referido, constituindo a posse um dos elementos essenciais para aquisição do direito de direito propriedade (tal como para qualquer direito real de gozo), ela consubstancia-se em dois elementos: o corpus (os atos materiais praticados sobre a coisa) e o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos atos praticados).
Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico aderiu à conceção ou corrente (savignyana) subjetivista da posse (cfr. artºs. 1251º e 1253º do CC). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objeto, de modo contínuo e estável, e o animus que, como elemento interno, se traduz na vontade ou intenção do autor da prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados. Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos.
É que se só se verificar a presença daquele primeiro elemento (o corpus) a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insuscetível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cfr. artº. 1253º).
Porém, considerando a dificuldade que muitas vezes existe em demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cfr. artº. 1252º, nº. 2, e assento, hoje acórdão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96, e ainda acórdãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respetivamente, in “CJ/STJ, T5 – 37” e “CJ/STJ, T2 – 126”).
Pelo que, assim, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa (cfr. ainda artº. 1268º, nº. 1, do CC sobre a presunção da titularidade do direito de que goza o possuidor, desde que não existe a favor de outrem presunção fundada em registo anterior).
A posse, por seu turno, segundo o artº. 1258º do CC, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta.
Sendo a posse titulada quando e “fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” (artº. 1259º, nº. 1, do CC); de boa ou má fé consoante o possuidor ignorava ou não, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (artº. 1260º, nº. 1, do CC); pacífica quando foi adquirida sem violência – considerando-se violenta quando para obtê-la o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º - (artº. 1261º, nºs. 1 e 2, do CC), e pública quando é exercida de modo a poder se conhecida pelos interessados (artº. 1262º do CC).
Como já transparece do atrás referido, os carateres da boa ou má fé ou da titulação ou não da posse somente influem no prazo necessário à verificação da usucapião (sendo que a posse titulada faz presumir uma posse de boa fé e a não titulada de má fé – artº. 1260º, nº. 2, do CC).
Posse essa que o possuidor atual pode juntar à posse do seu antecessor, desde que nela tenha sucedido por título diverso da sucessão por morte (artº. 1256º, nº. 1, do CC)
Na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião de imóveis pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (artº. 1296º).
Diga-se, por fim, que, nos termos do artº. 1297º do CC, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde a cessação da violência ou desde que a posse se torne pública, daí que ela deva ser pacífica e pública.
Posto isto, da conjugação dos pontos 3, 4, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34 e 35 dos factos provados (que neste recurso não foram objeto de impugnação) ressalta que o prédio urbano que foi objeto de justificação através da sobredito escritura notarial foi utilizado, ininterruptamente, pela R..., CRL, desde o final da década de 1980 até ao dia ao dia 13/08/2001, e desde altura pela Ré M..., Unipessoal, Lda. – data em que esta foi constituída e aquela transferiu para ela o seu património/atividade, no qual se incluía do dito prédio - até hoje (e mais concretamente até pelo menos o dia 20/10/2015, data em que por esta foi vendido ao seu legal representante, o 2º. R.), praticando sobre ele os mais diversos atos materiais de posse, à vista de todos, sem qualquer oposição (violência), e sempre na convicção de que o mesmo então lhes pertencia.
Ou seja, durante aqueles períodos de tempo consecutivos, cada uma das referidas entidades coletivas (primeiro a R..., CRL., e depois a sociedade ré) foi utilizando o dito prédio (que foi objeto justificação notarial), praticando sobre ele os correspondentes atos materiais de posse (corpus, e com animus possidendi, isto é, como se fossem então os seus verdadeiros donos), fazendo-o de forma pública (à luz do dia, ou seja, à vista de todos) e pacífica (sem qualquer oposição/violência).
Posses essas que, in casu, à luz do acima citado artº. 1256º, nº. 1, do CC podem ser juntas, ou seja, a ré justificante pode juntar a sua posse àquela imediatamente anterior exercida pela R..., CRL, pois que, como vimos, nela sucedeu por título diverso da sucessão por morte. Não sendo a posse exercida pela R..., CRL, titulada, e presumindo-se a mesma de má fé (pois que essa presunção não se mostra ilidida), essa acessão da posse pela ré justificante ter-se-á de dar dentro dos limites daquela exercida pela sua antecessora (nº. 2 do artº. 1256º do CC), o que significa que, in casu, e aquisição originária do direito de propriedade, pela via usucapião, só poderia dar-se no termo de 20 anos do exercício de posse (artº 1296º do CC). (Sobre esta problemática da acessão/sucessão da posse vide, para mais e melhor desenvolvimento, entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil, Vol. III, 2ª. ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 13/15”; José Oliveira Ascensão, in “Direito Reais, 4ª. ed. refundida, Coimbra Editora, págs. 118/119”, Dias Marques, in “Prescrição Aquisitiva, Vol. II, págs. 6 a 97”; Manuel Rodrigues, in “A Posse, nº. 55”, Menezes Cordeiro in “A Posse, Perspectivas, 1997, pág. 136”, e o Ac. do STJ de 05/02/2012, proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1, disponível em dgsi.pt).
Sendo assim, juntando aquelas duas posses facilmente se constata que na data em que foi celebrada a sobredita escritura de justificação notarial já se havia completado o prazo de vinte anos (a que alude o artº. 1296º do CC), o que permite à ré justificante a aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre o referido prédio nela justificado, pois que logrou provar, como lhe competia, todos os pressupostos legais exigidos para o efeito.
E não se diga, e salvo sempre o devido respeito, como defendem os apelantes, que a tal obsta o facto de a ré justificante não ter alegado/invocado na referida escritura a sucessão/acessão da sua posse à posse anterior que foi exercida pela R..., CRL, e nem mesmo que não tenha provado a aquisição derivada (por via de compra efetuada à ali identificada M...), pois o que tão só se lhe exige nesta ação é que prove/demonstre (como veio a fazer) ter - na altura da celebração da escritura e conforme o aí alegado - adquirido originariamente, por via da usucapião, o direito do propriedade sobre o prédio que ali justificou.
Em conclusão, estão, assim, à partida, preenchidos todos os pressupostos legais (que os RR. lograram provar) que permitiam à sociedade ré adquirir originariamente, por via da usucapião, o direito de propriedade que justificou ter sobre o prédio urbano a que se reporta a sobredita escritura de justificação notarial outorgada no dia 16/04/2010."
[MTS]
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