"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/11/2021

Jurisprudência 2021 (70)


Arresto;
garantia patrimonial; justo receio


1. O sumário de RL 13/4/2021 (601/21.3T8LRS.L1-7) é o seguinte:

I. «O requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial envolve uma avaliação global dos factos e circunstâncias concretos relativos à situação objetiva e subjetiva do devedor, só podendo considerar-se preenchido quando, perante os elementos fácticos provados, o juiz adquira a convicção de que existe um perigo objetivo, real e concreto, de o crédito não venha a ser satisfeito em sede executiva por falta ou insuficiência de bens penhoráveis (ou sem que essa satisfação exija esforços consideráveis e desproporcionados por parte do credor).»

II. Constitui facto notório que o país atravessa, desde março de 2020, uma situação de pandemia que se reflete negativamente na atividade económica. Todavia, essa repercussão não é igual em todas as atividades, sendo que o setor da construção civil e obras públicas tem-se mostrado resiliente e com um crescimento positivo de 2,5% em 2020.

III. Deste modo, o facto provado nos termos do qual “Atravessamos um período de recessão económica que afeta a generalidade dos setores de atividade” nada de útil nos informa sobre a situação económica concreta e atual da requerida, empresa de construção civil.

IV. A previsão apontada de “risco médio alto de cessar a sua atividade com dívidas por liquidar num prazo de 12 meses”, constante de relatório de informações comerciais sobre a requerida, só colheria solidez se estribado nos concretos contratos que a requerida tenha em execução atualmente, sendo que o relatório em causa é omisso a esse respeito. O justo receio estriba-se, necessariamente, num perigo concreto e atual, e não em riscos estatísticos.

V. Do incumprimento da obrigação – de per si – não decorre o risco da incobrabilidade do crédito, sendo apenas um elemento a ponderar na avaliação, global e concreta, das circunstâncias de facto justificativas do receio objetivo de perda da garantia patrimonial.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O arresto consiste num meio de conservação da garantia patrimonial dos credores que se reconduz a uma apreensão judicial (preliminar) de bens destinada a assegurar o cumprimento de uma obrigação - Art. 391º do Código de Processo Civil e Art. 619º do Código Civil. É, assim, uma medida de carácter preventivo tendente a evitar a insatisfação do direito do credor, por se recear, fundadamente, a perda da garantia patrimonial do crédito.

Nos termos do Art. 391º do Código de Processo Civil, constituem requisitos de procedência do arresto preventivo:

a) provável existência do crédito segundo um juízo de probabilidade ou verosimilhança (é preciso que haja elementos para prever ou conjeturar que a decisão definitiva venha a ser favorável ao requerente), não se exigindo a certeza ou indiscutibilidade do mesmo;

b) perigo de insatisfação do direito de crédito do requerente segundo um juízo de certeza, isto é, o Tribunal deve certificar-se da existência de condições de facto capazes de tornar difícil ou impossível a satisfação do crédito aparente, ou seja, qualquer pessoa de são critério, em face do modo de agir do devedor, colocado no seu lugar, também temeria vir a perder o seu crédito não se impedindo imediatamente o devedor de continuar a dispor livremente do seu património. Conforme refere Ana Carolina dos Santos Sequeira, Do Arresto Como Meio de Conservação da Garantia Patrimonial, Almedina, 2020, pp. 261-262, «(…) o requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial envolve uma avaliação global dos factos e circunstâncias concretos relativos à situação objetiva e subjetiva do devedor, só podendo considerar-se preenchido quando, perante os elementos fácticos provados, o juiz adquira a convicção de que existe um perigo objetivo, real e concreto, de o crédito não venha a ser satisfeito em sede executiva por falta ou insuficiência de bens penhoráveis (ou sem que essa satisfação exija esforços consideráveis e desproporcionados por parte do credor).» Sendo que «(…) na apreciação dos factos que sustentam o justo receio, o juiz terá de formar um juízo de certeza acerca da sua verificação, e não de mera probabilidade, ainda que o grau de certeza possa ser reduzido, em função das limitações naturalmente decorrentes da urgência e tramitação do procedimento cautelar» (Op. Cit., p. 274).

O juízo acerca do preenchimento do pressuposto do justo receio de perda de garantia patrimonial é variável, dependendo de caso para caso, e é objetivamente tipificável, através de diversas circunstâncias suscetíveis de indiciar, com elevada probabilidade, uma situação potenciadora de dificuldade ou impossibilidade do credor obter a satisfação coerciva do seu direito de crédito (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1.4.2009, Olindo Geraldes, acessível em www.dgsi.pt/jtrl). «Porque o fundado receio de perda da garantia patrimonial é um juízo dirigido para o futuro, é necessariamente regido por critérios de probabilidade, pois o futuro é sempre uma mera possibilidade de ser, mais ou menos provável e só o presente é certo. A maior ou menor probabilidade de concretização desse futuro dependerá sempre de uma certa realidade objetiva presente que permita, com maior ou menor segurança e acerto, prognosticar esse futuro» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31.1.2012, Carlos Gil, 1530/11).

O critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos subjetivos do juiz ou do credor (em simples conjeturas), pelo contrário, deve basear-se em factos concretos que, de acordo com as regras da experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva – cf. jacinto bastos, Notas ao Código de Processo Civil, II Vol., p. 268; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.3.98, Silva Paixão, CJ 1998 – I, p. 116; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., p. 176. «O receio é justificado ou compreensível, se assentar em factos concretos suscetíveis de provocar num homem normal, medianamente sagaz e diligente, colocado na posição do credor, o receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito. (…) O justo receio de perda da garantia patrimonial pode definir-se, então, como o conjunto de circunstâncias de facto suscetíveis de, à luz de uma prudente apreciação, fazer prever a incobrabilidade do crédito» (Ana Carolina Sequeira, Op. Cit., p. 250).

No que tange aos factos indiciadores da perda da garantia patrimonial, Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 177, sustenta que o perigo de insolvência não deriva automaticamente da mera superioridade do passivo sobre o ativo do requerido mas da análise de outros fatores de que resulte objetivamente uma situação de incapacidade atual ou iminente para suportar os compromissos assumidos, nomeadamente: falta de cumprimento de obrigações que, pelo montante ou circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações; o abandono da empresa ou estabelecimento; a dissipação ou extravio de bens; a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir.

A jurisprudência vem enunciando também os seguintes critérios:

§ “A variedade das circunstâncias que legitimam a providência de arresto é bem visível quando se analisa a jurisprudência, de onde decorre, por exemplo, uma resposta positiva ao arresto quando se apura que o requerido pretende alienar os seus bens imóveis, procura vender o património conhecido, corre o risco de ficar em situação de insolvência, quando se mostra consideravelmente difícil a realização do crédito, quando se verifica um acentuado deficit entre o crédito exigido e o valor do património conhecido, quando se constata que o património do devedor se encontra onerado com hipotecas ou existem execuções e penhoras pendentes ou quando se verifica a descapitalização de empresas, através da transferência dos ativos.“ (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.11.2009, Bernardo Domingos, 288/09);

§ “O receio da perda da garantia patrimonial do credor não pode constituir uma simples hipótese ou conjetura; ao invés, terá forçosamente que radicar em factos concretos donde seja legítimo extrair a elevada probabilidade de não ser possível vir a executá-lo patrimonialmente, no que concerne ao crédito que se visa salvaguardar.

Neste sentido, haverá que atentar, principalmente:

1º - Na expressão pecuniária do crédito a proteger, em confronto com o valor do património que será chamado a responder por ele;

2º - Na natureza das responsabilidades do devedor perante terceiros, que poderá impedir o credor de chegar a tempo ao rateio do ativo em disputa;

3º - Na atividade concreta desenvolvida com vista a defraudar as expectativas de satisfação do crédito, de que constitui paradigma a dissipação ou ocultação de bens, a insolvência dolosa, o despojamento fictício em favor de familiares ou amigos de confiança, etc.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.1.2010, Luís Espírito Santo, 4020/09);

§ “Importante é que existam indícios reveladores do risco de insolvência, quer por razões imputáveis ao devedor, quer por quaisquer outros motivos, de tal modo que só a apreensão imediata de bens permita prevenir os riscos de insatisfação do direito de crédito, como acontece quando se verifica o abandono da empresa ou do estabelecimento, a dissipação ou o extravio de bens, a constituição fictícia de créditos ou a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir.

Com a necessária apreciação casuística, a jurisprudência tem considerado a verificação de periculum in mora, para efeitos de decretamento do arresto, em situações em que existe a tentativa do devedor de alienar os bens imóveis, o risco de o devedor ficar em situação de insolvência por dissipação ou oneração do seu património, a prova de que o devedor se furta aos contactos e pretende vender o património conhecido, o acentuado deficit entre o crédito exigido e o valor do património conhecido do arrestado, juntamente com a circunstância de ser facilmente ocultável, a descapitalização de empresas, através da transferência dos ativos, ou a prática de atos de alienação gratuita a favor de terceiros ou atos simulados de alienação ou de oneração” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.8.2009, Abrantes Geraldes, 4362/09).

Ainda no que tange aos parâmetros definidores do justo receio de perda de garantia patrimonial, são pertinentes os seguintes ensinamentos de Ana Carolina dos Santos Sequeira:

«(…) o arresto pode ser justamente decretado quando os factos revelem uma maior dificuldade na cobrança coerciva do crédito (por existência de obstáculos ou complicações legais ou de facto). À impossibilidade deve ser, então, equiparada a dificuldade na execução dos bens do património do devedor, desde que seja considerável, em termos de exigir um grande esforço ao credor; essa dificuldade emerge de circunstâncias relativas aos bens que compõem a garantia patrimonial, por exemplo, se o devedor troca bens por outros de mais fácil ocultação (móveis não sujeitos a registo, dinheiro…) ou cuja alienação coativa é praticamente mais difícil (direitos e posições contratuais), ou se o devedor deslocaliza os seus bens para o estrangeiro (mesmo que parte certa, pois será muito mais difícil executar os bens noutro país), ou ainda se constitui ónus reais a favor de terceiro sobre os seus bens, incluindo garantias reais (fictícias ou não) para garantia de créditos de montante elevado» (Op. Cit., p. 244).

«O incumprimento da obrigação, só por si, não é motivo para sustentar o arresto de bens do devedor, nem mesmo quando o devedor interpelado se recusa expressamente a cumprir, pois não se pode depreender o perigo de incobrabilidade do crédito; todavia, é um elemento a ponderar, na avaliação global e concreta das circunstâncias de factos justificativas do receio objetivo de perda da garantia patrimonial, reveladora da sua personalidade e intenção de se furtar às consequências dos seus atos jurídicos.

Não se deve negar à conduta (processual e extraprocessual) de devedor uma certa relevância no apuramento da situação material justificativa do arresto, ainda que indicativa ou complementar. É certo que o comportamento do devedor, desprovido de quaisquer outros factos objetivos, não é fundamento bastante para o arresto, mas a personalidade do devedor (revelada através da sua atuação no comércio jurídico, em geral, e na relação obrigacional, em especial, e ainda na sua conduta em juízo), é suscetível de concorrer para a construção do cenário global de justo receio: são atendíveis, por exemplo, os factos que demonstram que o devedor já foi condenado em várias ações declarativas pelo incumprimento de obrigações, que já foi executado em vários processos executivos, que já foi declarado insolvente ou era administrador de entidades declaradas insolventes; e também factos que atestam que o devedor se furta propositadamente aos contactos do credor ou tem uma atitude hostil perante ele; e ainda factos integrativos de litigância de má-fé na causa principal (designadamente pelo uso de expedientes manifestamente dilatórios)» (Op. Cit., pp. 260-261). [...]

Quanto ao requisito do justo receio de perda de garantia patrimonial, passamos a analisar os factos pertinentes.

Há que interpretar o facto provado sob 15 (“Atravessamos um período de recessão económica que afeta a generalidade dos setores de atividade”) cum grano salis. Na verdade, constitui facto notório que o país atravessa, desde março de 2020, uma situação de pandemia que se reflete, em geral, negativamente na atividade económica. Todavia, essa repercussão não é igual em todas as atividades, sendo que o setor da construção civil e obras públicas tem-se mostrado resiliente e com um crescimento positivo. Tal indicação consta mesmo de informações oficiais, tais como o Banco de Portugal em cujos boletins económicos, de outubro e dezembro de 2020, foi assinalado que tal setor tem sido resiliente, com um crescimento de 4% no 2º trimestre de 2020 e um crescimento de 5,1% no 3º trimestre de 2020 (cf. Boletim de dezembro do Banco de Portugal, p. 21), sendo uniformemente apontado um crescimento global da construção civil em Portugal, em 2020, de 2,5%. [...]

Deste modo, o facto provado sob 15 nada de útil nos informa sobre a situação económica concreta e atual da requerida sendo que, em termos gerais, a atividade da construção civil mostra-se resiliente e com crescimento positivo em 2020.

No que tange aos factos provados sob 16 e 16-A, o que ressalta dos mesmos é o seguinte. A requerida tem um histórico limpo perante a Autoridade Tributária e a segurança social, não constando da lista pública de execuções. Em 2019, a requerida teve encargos com compras, fornecimentos e serviços externos de € 9.148.169,24 e, do lado ativo, vendas, serviços prestados e recebimentos de clientes no valor de € 10.660.890,60, apresentando um resultado líquido de exercício de € 28.624,32. Tinha 61 trabalhadores. Estes dados evidenciam que se trata de uma empresa já média e com um volume de negócios assinalável, sobretudo se comparado com o crédito do requerente, o qual representa menos de 1% dos réditos da requerida em 2019.

Em desabono da situação económico-financeira da requerida está provado que: «Segundo uma avaliação probabilística de base estatística elaborada pela Informa em 18.1.2021, a requerida, na escala de risco de failure, segundo o raiting Informa, apresenta um risco médio alto de cessar a sua atividade com dívidas por liquidar num prazo de 12 meses; apresenta um grau de solvabilidade relativamente baixo e, em média, 16 dias de atraso nos pagamentos. Na mesma avaliação foi-lhe atribuída pela dita entidade uma recomendação de limite de crédito mensal de € 27 700 e identificadas ações judiciais em que é judicialmente exigido à requerida o montante de € 354 193,37, quatro delas interpostas no ano de 2020, nas quais é reclamado um total de € 152 188,32.»

Este facto não um juízo concreto no sentido de que a requerida esteja: com redução do património; com insuficiência de património para suportar os passivos pendentes; para encerrar a atividade; em risco de insolvência ou a dissipar património; a sonegar património.

Dele apenas decorrem afirmações genéricas sobre um “grau de solvabilidade relativamente baixo”, o que é compatível com o histórico positivo de 2019, sendo que um atraso de pagamento de 16 dias não é significativo. Quanto ao indicado “risco médio alto de cessar a sua atividade com dívidas por liquidar num prazo de 12 meses”, não está explicitada a fundamentação de tal asserção nem as testemunhas se pronunciaram sobre a mesma. Esse tipo de previsão só colheria solidez se estribado nos concretos contratos que a requerida tenha em execução atualmente, sendo que o relatório em causa é omisso a esse respeito. O justo receio estriba-se, necessariamente, num perigo concreto e atual, e não em riscos estatísticos. Por outro lado, o relatório em causa nesse segmento é contraditório com outro segmento do mesmo (fls. 56), onde se afirma que «Com base nos últimos dados financeiros ponderados, observa-se uma evolução da situação financeira que é considerada favorável na avaliação do risco de failure».

Quanto às ações judiciais pendentes com a requerida (no “montante de € 354 193,37, quatro delas interpostas no ano de 2020, nas quais é reclamado um total de € 152 188,32”), mesmo a admitir-se que haja razões para terem provimento (o que se desconhece), certo é que se trata de um valor global não significativo nem desproporcional face ao último volume de negócios anual conhecido à requerida (menos de 4% dos réditos da requerida em 2019). A pendência de ações judiciais declarativas contra empresas de construção civil é uma ocorrência comum e frequente na medida em que a execução dos contratos de empreitada e de subempreitada gera dissídios quanto à integral execução do acordado. Anormal seria uma empresa de construção civil não ter qualquer ação declarativa pendente contra si. A pendência desse tipo de ações só assume um carácter sintomático se ficar indiciado a desproporção entre os valores reclamados e a atividade global da sociedade em causa, ou se tais ações se concentrarem/precipitarem num curto período de tempo.

Conforme foi explicitado supra, do incumprimento da obrigação – de per si – não decorre o risco da incobrabilidade do crédito, sendo apenas um elemento a ponderar na avaliação global e concreta das circunstâncias de factos justificativas do receio objetivo de perda da garantia patrimonial. Ora, essa avaliação global, estribada nos elementos objetivos apurados, é insuficientemente sedimentada quanto a esse risco de incobrabilidade, conforme acabámos de analisar.

Decorre de todo o exposto que não está demonstrado o justo receio de perda de garantia patrimonial porquanto não está evidenciado o perigo concreto e atual do esvaziamento do património da requerida, segundo um juízo prospetivo."

[MTS]