"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/11/2021

Jurisprudência 2021 (73)


Caso julgado; âmbito objectivo;
prova; valor extraprocessual*


1. O sumário de STJ 3/3/2021 (11661/18.4T8PRT.P1-A.S1) é o seguinte:

I. A separação judicial de pessoas e bens sem consentimento do outro cônjuge, encerra uma das soluções que o direito substantivo civil apresenta para as relações conjugais que estão de tal modo deterioradas que legitimam e admitem o reconhecimento do afrouxamento dos vínculos matrimoniais, daí que os respetivos fundamentos são idênticos aos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, embora com as necessárias adaptações.

II. A Lei n.º 61/2008 de 31 Outubro eliminou a culpa como fundamento de divórcio e de separação de pessoas e bens sem consentimento de um dos cônjuges, estabelecendo na nossa ordem jurídica o designado modelo de “divórcio e separação de pessoas e bens constatação da ruptura conjugal”, inspirado na conceção de divórcio e separação de pessoas e bens, unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode pôr termo ao casamento ou obter o afrouxamento dos vínculos do mesmo resultantes, com fundamento em factualidade que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do matrimónio.

III. A separação judicial de pessoas e bens sem consentimento do outro cônjuge é reconhecida não apenas quando se provam as “causas determinadas” pela lei, verbi gratia, a separação de facto por um ano consecutivo, onde a demonstração da rutura definitiva do casamento está presumida, mas também noutras situações que não são especificadamente previstas (alínea d) do art.º 1781º do Código Civil), mas que, em todo o caso, revelem uma inexistência, de forma definitiva, da comunhão de vida, própria de um casamento.

IV. Os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão e não aos respetivos fundamentos, sendo que os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final.

V. Apesar do princípio da eficácia extraprocessual das provas consagrado no art.º 421º do Código de Processo Civil, a matéria de facto provada numa sentença não tem força de caso julgado noutra sentença intentada contra a mesma parte, na medida em que os fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Recorrente/Réu/BB ao sustentar que o Tribunal a quo ao operar a alteração da decisão de facto consignada no item 4. da Matéria de Facto, fê-lo em violação do caso julgado, na perspetiva da designada autoridade do caso julgado, por referência à decisão de facto proferida no Processo n.º 2225/17......., carece, salvo o devido respeito por opinião contrária, de válido apoio jurídico, porquanto a pretendida inclusão no acórdão recorrido da facticidade não demonstrada no Processo n.º 2225/17......., conforme decorre do item 3. Dos Factos Provados, importaria a violação do art.º 621º do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o alcance do caso julgado, determinando e fixando os respetivos efeitos “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)”.

Na verdade, do enunciado preceito adjetivo civil decorre que os efeitos do caso julgado, reportam-se à própria decisão e não aos respetivos fundamentos.

Como defende Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 1984, página 697 “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.

Outrossim, e no mesmo sentido, Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 577 “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”; defendendo, mais adiante, na página 579 “(…) justifica o disposto no artº 96.º, n.º 2 (do anterior Código de Processo Civil condizente ao actual art.º 91º.), sobre a apreciação incidental: pode inferir-se desse preceito que, se só a apreciação incidental possibilita que os fundamentos da decisão adquiram valor de caso julgado fora do processo respectivo, é porque tais fundamentos não possuem em si mesmos esse valor: ‑ “Portanto, pode afirmar-se que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado […]. Esses fundamentos não valem por si mesmos, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta.”

Tal como, Maria José Capelo, in A Sentença entre a Autoridade e a Prova, páginas 114 e seguintes “(…) perspectivando-se no âmbito do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados num processo não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento (dos actos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados. Daqui resulta, na esteira de Calamandrei, a rejeição de qualquer “eficácia probatória das premissas de uma decisão”.

E ainda, no mesmo sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, Almedina, página 636, depois de afirmar que a autoridade do caso julgado não é, em princípio, “extensível aos fundamentos, motivação ou arrazoado da sentença”, declara que “Os factos dados como assentes na fundamentação da sentença não devem, contudo, ser considerados (“uti singuli”, ou seja, enquanto autonomizados da decisão de que são pressuposto) como abrangidos pela força do caso julgado, isto é, como consequências exorbitantes do conteúdo da decisão final. Tais fundamentos não possuem valor “a se”, porquanto não vinculativos quando considerados isoladamente dessa decisão.”

Esta orientação, perfilhada pela Doutrina, é, de resto, secundada pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Assim:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2019 (Processo n.º 62/07.0TBCSC.L3.S1), desta 7ª Secção, in, www.dgsi.pt, relatado pelo mesmo relator do presente acórdão, em cujo sumário se enunciou: “9. Os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão e não aos respectivos fundamentos, sendo que os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final. 10. Apesar do princípio da eficácia extraprocessual das provas consagrado no art.º 421º do Código de Processo Civil, a matéria de facto provada numa sentença não tem força de caso julgado noutra sentença intentada contra a mesma parte, quer seja em distintas demandas, quer decorra da própria natureza do processo em causa (…)”

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 2018 (Processo n.º 826/14.8T8GRD.C1.S1), desta 7ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Hélder Almeida, e de que fomos 1º adjunto: “(…) não se pretende que os fundamentos de facto da decisão transitada, embora podendo ser eficazmente - permita-se-nos a expressão ‑ autonomizáveis da mesma, não são porém abrangidos pelo caso julgado dessa decisão. Bem ao invés, o que se defende é que uma vez que tais fundamentos não são passíveis dessa válida autonomização - o silogismo judiciário, no seu todo, abrange-os, não podendo os mesmos ser desse contexto dissociados ‑ daí que eles não possam ser “aproveitados”, não se imponham como imperativos, indiscutíveis, enquanto isoladamente considerados, em outra decisão.”;

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2010 (Processo n.º 690/09.9.YFLSB.L1.S1), in, www.dgsi.pt, relatado pelo Juiz Conselheiro Urbano Dias, onde se afirma: “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”;

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2005 (Processo n.º 05B691), in, www.dgsi.pt, relatado pelo Juiz Conselheiro Araújo de Barros, onde se consignou: “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”

Os factos objeto de julgamento e declarados provados numa sentença não podem ser reconhecidos e declarados provados numa outra sentença distinta, a par de que não podem ser valorados os meios de prova de que aqueles factos emanam, sem prejuízo das situações prevenidas no art.º 421º do Código de Processo Civil, e que, desde já adiantamos, não ocorrem no caso sub judice.

Textua o consignado preceito adjetivo civil - art.º 421º do Código de Processo Civil - ao estabelecer sobre o valor extraprocessual das provas: “Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 355º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova” (n.º 1).

Apesar do princípio da eficácia extraprocessual das provas consagrado no citado art.º 421º do Código de Processo Civil, a matéria de facto provada numa sentença não tem força de caso julgado noutra sentença intentada contra a mesma parte, quer seja em distintas demandas, quer decorra da própria natureza do processo em causa.

Inverificados estão, pois, os requisitos de procedibilidade de atendimento da prova extraprocessual, não merecendo acolhimento, por isso, a sustentação do Recorrente/Réu/BB de que a decisão em recurso deveria ter valorado e assumido como adquirida processualmente a facticidade não apurada no Processo n.º 2225/17....., conforme resulta do item 3. da Matéria de Facto.

Admitimos, ao invés, como decorre do vertido enquadramento normativo, doutrinal e jurisprudencial que esta facticidade não é vinculativa quando considerada isoladamente da decisão que determinou, apenas e só, a improcedência da reclamada dissolução do casamento, ou seja, não possui valor a se que obste a que a Relação possa reponderar a facticidade apurada em 1ª Instância, alterando a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa daqueloutra de 1ª Instância, sublinhando-se que a valoração feita da prova produzida não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, circunscrevendo-se o objeto do recurso de revista à apreciação do invocado erro de direito na reponderação da decisão de facto, levada a cabo pela Relação.

Assim, sem reservas o afirmamos, reconhecemos óbice, substantivo e/ou adjetivo, no sentido de que a materialidade adquirida processualmente, no caso a indemonstração dos factos vertidos na precedente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge (Processo n.º 2225/17.....), onde se julgou improcedente, por não provada, a ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, intentada pela Autora AA, e, em consequência, absolvido o Réu BB do pedido contra ele formulado), tenha qualquer repercussão na decisão de facto a proferir na presente ação de separação judicial de pessoas e bens sem consentimento do outro cônjuge, pois, acaso se admitisse transpor os factos não provados naquela sentença para o acórdão em escrutínio, constituiria conferir à decisão de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que também não possui."


*3. [Comentário] a) O principal interesse do acórdão consiste em demonstrar, de forma bastante clara, o âmbito objectivo do caso julgado.

Bom seria que esta orientação fosse sempre seguida na jurisprudência e que dela fossem retiradas todas as consequências. A doutrina adoptada no acórdão demonstra quão insustentável é a orientação que estende a terceiros o caso julgado sobre factos adquiridos num processo em que esses terceiros, por definição, não foram parte. Se nem entre as partes da acção o caso julgado abrange os factos nele adquiridos, como sustentar que esse caso julgado possa ser invocado contra terceiros?

b) Ainda uma outra observação: a circunstância de não haver caso julgado sobre factos não impede a eficácia extraprocessual das provas. Uma coisa é haver vinculação à decisão sobre um facto, outra bem distinta é uma prova produzida num processo ser invocada noutro processo. 

Assim é, porque, ao contrário do que sucede através do caso julgado, a invocação de uma prova produzida num outro processo não é acompanhada de nenhuma vinculação para o tribunal e para as partes deste processo. Nomeadamente, se for o caso, o tribunal pode valorar livremente essa prova e nada exclui que a parte contra a qual a prova é invocada a possa impugnar.

MTS