"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/11/2021

Jurisprudência 2021 (78)


Processo penal; 
indemnização civil; caso julgado


1. O sumário de RP 12/4/2021 (27110/16.0T8LSB.P1) é o seguinte:

I - A exceção de caso julgado é uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e leva à absolvição do Réu da instância (arts 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278º nº1, al. e), todos do CPC), traduzindo-se num pressuposto processual negativo, que impede o prosseguimento da nova ação e obstaculiza nova decisão de mérito;

II - Além da manifesta economia processual, evita que o tribunal se veja na contingência de contradizer ou reproduzir decisão definitiva, o que conflituaria com a força do caso julgado;

III - Tendo o caso julgado material força obrigatória (dentro e fora do processo), não permite nova ação entre as mesmas partes, com o mesmo objeto: pedido e causa de pedir;

IV - Repete-se a causa quando é pedida, pela mesma demandante, numa ação cível, indemnização pelos mesmos danos do pedido de indemnização cível deduzido em processo crime, onde foi afirmada a mesma atuação dos sócios gerentes da sociedade, demandados em ambas as causas com base em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (cfr. arts 71º e 84º, do CPP).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estatui o n.º 4, do art. 581º, que há identidade de causas de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo ato ou facto jurídico.

Causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo Autor, que serve de fundamento à ação. É o facto concreto invocado pelo Autor, o acontecimento natural ou a ação humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. É o princípio gerador do direito, o acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido [José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág 597].

A causa de pedir é considerada a mesma “se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis” [Ibidem, pág 598], em concurso real ou aparente.

A qualificação jurídica dada aos factos na primeira ação nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova ação em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação, o que é o corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto e não o facto abstratamente descrito na lei [Ibidem, pág 599].

A causa de pedir não se confunde com a “norma de lei” invocada pela parte, pois a ação identifica-se e individualiza-se, não por essa norma, mas pelos elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal. A causa de pedir – i.e. os elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal – não se confunde com a norma invocada, correspondendo, nas ações derivadas de direitos de obrigação, ao facto jurídico de onde nasce o direito de crédito [Ac. STJ de 3/11/2016, proc. 315/15.3T8VRL.G1.S1, in dgsi.net].

A causa de pedir não consiste na categoria legal invocada ou no facto jurídico abstrato configurado pela lei, mas, antes, nos concretos factos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor.

A identidade da causa de pedir verifica-se, assim, quando as pretensões formuladas em ambas as ações emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas [Ac. STJ de 24/2/2015, proc. 915/09.0TBCBR.C1.S1, in dgsi.net].

Como se refere no Acórdão anteriormente citado “não é somente sobre a pretensão do autor que se forma o caso julgado.

A lei também pretende que a solução dada à pretensão do autor, em função da causa de pedir em que tal pretensão se alicerça, seja respeitada pela força do caso julgado.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, entende-se que não é apenas a conclusão ou dispositivo da sentença que tem força de caso julgado, aceitando-se como mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas (os acórdãos deste Supremo, de 10.07.97 – CJ/STJ – 2.º/165; de 27.04.04 – Proc. 04A1060.dgsi.Net; de 20.05.04 – Proc. 04B281.dgsi.Net; de 13.01.05 – Proc. 04B4365.dgsi.Net; de 05.07.05 – Proc. 05ª008.dgsi.Net;e de 08.03.07–CJ/STJ – 1-º/98).

No mesmo sentido, Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pp. 578-579) afirma que «Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressuposto daquela decisão».

O art. 581.º do CPC coloca os dois requisitos da identidade objectiva – pedido e causa de pedir – precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção e alcance.

Factos e pedido são portanto sempre partes do objecto do processo de igual valor e importância. É esta a ideia central defendida pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, e aceite por Castro Mendes, segundo a qual «o caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos» (Cf. Schwab, Der Streitgegenstand, p. 148, apud Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, 1968, pp. 161-162 e Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht, 15. Auflage, München, 1983, p. 532).

O objecto do processo é necessariamente dual, pois sem causa de pedir não há individualização da pretensão processual e sem pedido não existe requisição de tutela jurisdicional para a pretensão processual individualizada (cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (Estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ,1983, Abril, n.º 325, p. 105). [...]

E bem salienta o Tribunal a quo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.02.2009 [in CJ, tomo 1, pág. 301 e segs.]: «Se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo procedente (os objectos de ambos os processos coincidem integralmente …) verifica-se a excepção do caso julgado;

Se pelo contrário o objecto do processo procedente não abarca esgotantemente o objecto do processo subsequente e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo precedente (…) ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objectos, verifica-se a autoridade do caso julgado» e refere, como vimos, “como é atualmente entendimento dominante na Doutrina e Jurisprudência, o caso julgado, como exceção e autoridade, não abrange apenas a parte decisória da sentença ou despacho, abrange também os fundamentos [de facto e de direito] pressupostos da parte dispositiva”, citando Teixeira de Sousa que escreve “[em Estudos Sobre o Processo Civil, pág. 578] «não é a decisão, enquanto silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo»” e mencionando os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 09.05.1996 [in CJ-STJ, tomo II, pág. 55] e de 13.07.2010 [proferido no processo n.º 464/05.6TBCBT-C.G1.S1, disponível para consulta em http//www.dgsi.pt] que decidiu: «Na perspectiva do respeito pela autoridade do caso julgado, isto é, da aferição do âmbito e limites da decisão ou dos “termos em que se julga” (art. 673.º CPC - atual art. 621.º do Código de Processo Civil), entende-se que a determinação dos limites do caso julgado e sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado»”. [...]

No caso, como vimos, não se suscitando dúvidas quanto à identidade das partes e à identidade do pedido nas duas ações - na instância cível enxertada nos processos crime e na presente ação -, também se nos não suscita quanto à identidade de causa de pedir em que a recorrente baseia o pedido de condenação dos recorridos, pese embora o que conclui a apelante nas suas alegações de recurso. [...]

Ora, revertendo para o caso, constata-se da petição inicial que o pedido formulado nesta ação se funda em responsabilidade civil extracontratual sendo imputados aos Réus os factos ilícitos e culposos que constituíram a causa de pedir dos pedidos de indemnização cível deduzidos nos processos crime.

Verifica-se identidade de causa de pedir, pois que, na verdade, alega a autora, como factos jurídicos de onde emerge a pretensão que formula, os que preenchem responsabilidade civil extracontratual, por si anteriormente alegados e já apreciados nos processos crime. Bem considerou o Tribunal a quo que as anteriores ações, em que foi deduzido pedido cível, tinham por fundamento a responsabilidade por factos ilícitos ou delitual, sendo que os pressupostos da mesma, nelas analisados, não resultaram provados (cfr. decisões proferidas nos processos crime juntas aos autos), desde logo considerados foram não provados os alegados factos referentes à ilicitude e à culpa.

Nas mencionadas decisões foi apreciada a responsabilidade civil dos aí arguidos, aqui recorridos, pelos alegados atos ilícitos que praticaram enquanto gerentes da E…, Lda. à luz das disposições invocadas pela A., ora recorrente, para sustentar a sua pretensão – cfr. artigo 483.º, do Código Civil. E a improcedência dos pedidos de indemnização cível deduzidos pela aí assistente, ora apelante, não resultou, tão só, do facto de os ali arguidos, aqui recorridos não terem sido condenados pela prática dos crimes por que foram pronunciados naquelas ações, resultou, sim, e antes de mais, de se não terem provado os factos ilícitos e culposos alegados.

As instâncias criminais referidas nos autos, mais do que conhecerem dos crimes, conheceram e decidiram as condutas que a recorrente imputa aos recorridos e decidido foi que se não provaram os invocados factos ilícitos que aos mesmos foram imputados na qualidade gerentes da E…, Lda., bem se decidindo pela falta de preenchimento, no caso, dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual com base nos alegados factos ilícitos e culposos, invocados a densificar a causa de pedir dos pedidos de indemnização cível, também a causa de pedir da presente ação. São os factos os mesmos e a mesma é, também, a responsabilidade que se pretende efetivar.

Tendo sido deduzidos e apreciados, em ambos os processos crime, pedidos de indemnização cível com fundamento no disposto no art. 483.º, do Código Civil, dúvidas não restam que, também, a responsabilidade civil por factos ilícitos dos Réus, nas vestes com que, alegadamente, atuaram, ali foi apreciada e do pedido cível deduzido, também os arguidos, os aqui réus, foram absolvidos.

Bem considerou o Tribunal a quo ser a factualidade que serviu de fundamento aos pedidos cíveis, no essencial, a matéria de facto alegada nos presentes autos, o que é expressamente afirmado pela própria apelante, logo na petição inicial, e, consequentemente, bem concluiu pela repetição da causa bem referindo que “não admitir esta conclusão, com o pretexto de que nos processos crime apenas se julgou a responsabilidade criminal, quando nos mesmos foram deduzidos e apreciados pedidos cíveis, seria uma violação da finalidade do art. 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil” e violaria, ainda, o 84.°do Código de Processo Penal, bem citando que «a identidade do pedido, pressuposta pela exceção de caso julgado, não pode deixar de atender ao objeto da sentença anterior e às relações de implicação dele decorrentes, bem como à interpretação que o tribunal fez dos fundamentos invocados pelas partes [ Ac. RC, de 10.11.2009, in dgsi.pt] ».

Assim, decidida se mostra, pois, definitivamente, a questão, cumprindo referir que não se trata de saber o que devia ter sido decidido no processo crime e o não foi e do que se pode ou não nele tratar relativamente ao pedido de indemnização cível, mas sim o que, em concreto, se decidiu, com transito em julgado.

E, como vimos, a causa de pedir é um facto concreto, não o facto abstratamente descrito na lei. Tendo o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes sido alegado no primeiro processo (os processos crime), permitindo nele identificar as normas aplicáveis, a causa de pedir de ambas as causas (a anterior e esta) é a mesma. Acresce que, como vimos, a qualificação jurídica dada aos factos na ação já decidida não é elemento identificador do caso julgado. Assim se decidiu no Acórdão do STJ de 5/5/2016, Processo 236/05: Sumários, maio/2016, p. 13 onde se refere I. Para concluir da possibilidade da formação do caso julgado pela decisão do pedido de indemnização no processo penal, assim como de um modo geral da excepção da autoridade do caso julgado, impõe-se averiguar da tríplice identidade estabelecida nos arts 580º, nº1 e 581º, nº2 a 4, do CPC. II. Se as circunstâncias em que explicitamente foi proferida a decisão da primitiva acção, já tinham como pressuposto a decisão implícita para que apontam os pedidos deduzidos na segunda acção, devem considerar-se resolvidas todas as questões cuja solução é, logicamente, necessária para chegar á solução expressa na decisão. III. Uma decisão fundada em certos e determinados factos impede que uma nova acção aprecie o mesmo objecto processual referido a esses mesmos factos, a essas mesmas ocorrências da vida real (a causa de pedir), ainda que os Autores no segundo processo pretendam deles extrair uma total ou parcialmente diferente qualificação jurídica [Acórdão do STJ de 5/5/2016, Processo 236/05: Sumários, Maio/2016, p. 13, citado in Abílio Neto Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março 2017, Ediforum, pág 781], situação que se verifica no caso em análise.

Também no Acórdão do STJ de 26/5/2015, Processo 424/07: Sumários, 2015, p. 300 se decidiu que se as causas de pedir – tanto na acção cível destinada ao ressarcimento dos danos ocasionados pela acção ilícita, causal e culposa do oponente, como no requerimento de adesão da acção cível ao processo crime – são as mesmas, bem como os pedidos sobre que incidiu a discussão dos litígios pretendem obter a mesma tutela jurisdicional, não pode a causa repetir-se, sob pena de violação do princípio de não repetição da causa já julgada, verificando-se a exceção do caso julgado [Acórdão do STJ de 26/5/2015, Processo 424/07: Sumários, 2015, p. 300 citado in Abílio Neto Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março 2017, Ediforum, pág 780].

Assim, na verdade, in casu, verificam-se todos os requisitos para a procedência da exceção de caso julgado, como bem sustentam os réus/recorridos. As partes, além de serem as mesmas do ponto de vista físico, num e noutro processo, são as mesmas do ponto de vista jurídico. No pedido de indemnização civil deduzido nos processos-crime referidos em 1 e 2 a apelante demandou os mesmos réus dos presentes autos, pretendendo obter a satisfação do interesse que pretende agora satisfazer - ser indemnizada pelos danos que alega ter sofrido com a atuação ilícita dos réus, gerentes da sociedade em causa. O interesse substancial da aqui Autora é o mesmo da requerente do pedido de indemnização cível naqueles outros autos, pelo que existe identidade de sujeitos num e noutro processo. Existe, também, identidade do pedido, uma vez que em ambos os casos se pretende obter o mesmo efeito jurídico – ressarcimento dos danos. As indemnizações peticionadas visam, em sede de responsabilidade civil, a reparação do dano, pelos mesmos factos. As sentenças proferidas nos processos crime abrangeram a apreciação de factos que permitiam a qualificação e subsunção na responsabilidade civil extracontratual, esgotando todas as possibilidades de apreciação do direito da autora. Também há identidade de causa de pedir já que a pretensão em ambas as ações radica nos mesmos factos concretos.

Vista a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela Doutrina e Jurisprudência e aplicando-a ao caso concreto conclui-se que, no caso sub judice, estamos perante ações com vista a fazer valer pretensões indemnizatórias cíveis em que, em ambas:

- as partes ocupam a mesma posição ativa (Autora/Requerente) e passiva (Réus/Requeridos) e com a mesma qualidade jurídica;

- o pedido (efeito que se pretende obter) é o mesmo – ressarcimento de danos decorrentes de violação do mesmo direito subjetivo;

- os factos em que a (aqui) Autora e Requerente (das pretensões civeis) alicerçou a sua causa de pedir (facto jurídico de que emerge o direito) são os mesmos: a concreta situação da vida descrita em ambos os processos e já efetivamente conhecida e definitivamente decidida.

Nestes termos, bem se decidiu que em ambas as mencionadas ações estamos perante a mesma relação jurídica, verificando-se a identidade de sujeitos, de pedidos e, também, de causa de pedir.

Verifica-se, assim, a tríplice identidade imposta pelo nº 1, do art. 581º, havendo, por isso, caso julgado material (cfr. art. 84º, do CPP), exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e leva à absolvição dos Réus da instância (arts 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278º nº1, al. e))."


[MTS]