"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2021

Jurisprudência 2021 (72)


Reconvenção;
conexão objectiva


1. O sumário de RG 8/4/2021 (795/20.5T8VNF.G1) é o seguinte:

I - A reconvenção implica uma modificação do objeto da ação a qual, em vez de se circunscrever ao pedido formulado pelo autor, passa a ter também por objeto um pedido formulado pelo réu.A sua admissibilidade depende de requisitos de ordem processual e de ordem substantiva, sendo que estes últimos se prendem com a necessária conexão que tem de existir entre os dois pedidos e que se encontram elencados nas als. a) a d), do nº 2, do art. 266º, do CPC.

II - A necessidade de conexão entre os pedidos do autor e do réu não se confunde com a autonomia desses pedidos: os dois pedidos têm que apresentar algum dos elementos de conexão elencados nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 266º, do CPC; porém os pedidos têm de ser autónomos no sentido de que o réu não se pode limitar a formular um pedido que coincida quanto aos seus efeitos com o que resultaria da improcedência do pedido formulado pelo autor.

III – Na ação em que a autora pede a declaração da validade e eficácia da oposição à renovação do contrato de arrendamento com efeitos em 31.8.2019 e a ré se defende alegando que tal oposição não é válida e eficaz e pede, por via reconvencional, que se declare que a renovação do contrato ocorreu não pelo prazo de 1 ano previsto no contrato, mas antes pelo prazo de três anos imperativamente fixado na lei, a ré formula pretensão que transcende os meros efeitos decorrentes da improcedência da ação, sendo de admitir a reconvenção por a mesma constituir pedido autónomo e emergir do facto que serve de fundamento à defesa.

IV – A oposição à renovação do contrato de arrendamento não é uma causa autónoma de extinção do contrato, é apenas uma das causas conducentes à caducidade.

Assim, a norma do art. 1097º, do CC, que regula a forma de oposição à renovação deduzida pelo senhorio é uma norma sobre a caducidade do contrato de arrendamento, na medida em que disciplina o modo como essa causa de extinção do contrato pode vir a ocorrer na sequência de uma manifestação de vontade nesse sentido por parte do senhorio, e tem natureza imperativa visto estar abrangida nas matérias referidas no art. 1080º, do CC.

V – Como tal, é inválida a cláusula contratual que fixa um prazo para oposição à renovação do contrato pelo senhorio inferior ao que resulta da norma imperativa do art. 1097º, nº 1, do CC.

VI - Dispondo a nova redação do art. 1096º, do CC, introduzida pela Lei 13/2019, de 12.2, sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, e abstraindo a mesma do facto que lhe deu origem, é de concluir que a situação se enquadra na 2ª parte do art. 12º do CC, sendo a nova redação aplicável às relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor.

VII - O art. 1096º, nº 1, do CC, na nova redação introduzida pela Lei 13/2019, de 12.2, fixa um prazo de renovação mínimo de três anos de natureza imperativa não podendo as partes convencionar um prazo de renovação inferior.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A decisão recorrida admitiu a dedução de pedido reconvencional ao abrigo do disposto no art. 266º, nºs 1, 2, al. a), e 3, do CPC.

A autora insurge-se contra esta decisão considerando que não se verifica nenhum dos fundamentos previstos no art. 266º, nº 2, do CPC, designadamente dada a falta de autonomia do pedido reconvencional relativamente ao pedido formulado na ação, pois o referido pedido reconvencional mais não é do que a consequência da improcedência da ação.
Vejamos se lhe assiste razão.

O art. 266º, nº 1, do CPC, estabelece que o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.

Nesta situação há uma modificação do objeto da ação a qual, em vez de se circunscrever ao pedido formulado pelo autor, passa a ter também por objeto um pedido formulado pelo réu o qual acresce ao pedido inicialmente formulado por aquele.

Na reconvenção, há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor. Há uma contrapretensão (...) do réu, há um verdadeiro contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Passa a haver assim uma nova ação dentro do mesmo processo. O pedido reconvencional é autónomo na medida em que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes. (...) Com a reconvenção deixa de haver uma só ação e passa a haver duas acções cruzadas no mesmo processo” (Cf. Antunes Varela e outros in Manual de Processo Civil, pág. 323 e ss).

Assim, a “reconvenção constitui um instrumento jurídico que reflecte, além do mais, a consagração do princípio da economia processual, permitindo que, mediante determinado circunstancialismo, possam reunir-se num mesmo processo pretensões materiais contrapostas. (...)

Simultaneamente, a dedução de reconvenção é capaz de proporcionar melhores condições para um julgamento unitário de todo o litígio estabelecido entre as partes e atenuar os efeitos negativos que podem emergir de divergentes decisões sobre realidades muito próximas ou interdependentes” (António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., pág. 120).

No entanto, a intrínseca consequência de deixar de haver uma só ação passando a existir duas ações cruzadas no mesmo processo, que correm paralelamente e são julgadas também conjuntamente, impõe que a reconvenção não possa ser admitida indiscriminadamente sob pena de tal conduzir a resultados indesejáveis ou perniciosos, com a subversão da disciplina do processo, caso se admitisse, por exemplo, a formulação de pedidos reconvencionais sem qualquer conexão com o pedido inicial.

Assim, exige-se, para a admissibilidade de dedução de reconvenção, a verificação, por um lado, de requisitos de ordem processual e, por outro lado, de requisitos de ordem substantiva.

Relativamente aos requisitos processuais, exige a lei que:

a) o tribunal da ação tenha competência para conhecer do pedido reconvencional em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (art. 93º, nº 1, do CPC);
b) que ao pedido reconvencional corresponda a mesma forma de processo aplicável ao pedido do autor (art. 266º, nº 3, 1ª parte, do CPC);
c) que, no caso de o pedido reconvencional e o pedido do autor estarem sujeitos a formas de processo diversas, as mesmas não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, sendo nesta situação necessária a autorização do juiz subordinada à existência de interesse relevante na dedução de reconvenção ou à indispensabilidade da apreciação conjunta de ambas as pretensões para a justa composição do litígio (arts. 266º, nº 3, 2ª parte e 37º, nºs 2 e 3, do CPC).
 
Relativamente aos requisitos substanciais os mesmos prendem-se com a necessária conexão que tem de existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional pois não faria qualquer sentido nem se justificaria, mesmo à luz do princípio da economia processual, permitir a apreciação conjunta num único processo de pretensões absolutamente distintas, desconexas ou sem qualquer relação significativa.

A conexão exigida pelo legislador para efeitos de admissibilidade da reconvenção traduz-se, pois, no justo ponto de equilíbrio entre os interesses da economia processual e da economia de meios – que postula a resolução de todos os eventuais litígios entre as partes através de um único processo e de um único julgamento – e o interesse na regular e ordenada tramitação do processo – acautelando o interesse do autor e do próprio sistema judicial na obtenção tão célere quanto possível de uma decisão final quanto à pretensão formulada em juízo, tal como a mesma foi delineada pelo autor, em função da causa de pedir e do pedido invocados no processo” (Acórdão da Relação do Porto, de 10.2.2020, Relator Jorge Seabra, in www.dgsi.pt).

Assim, quanto aos requisitos substanciais, a reconvenção é admissível, nos casos em que se reconhece a existência da necessária conexão e que se encontram previstos no art. 266º, nº 2, do CPC, ou seja:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

A necessidade de conexão entre os pedidos do autor e do réu não se confunde com a autonomia desses pedidos: os dois pedidos têm que apresentar algum dos elementos de conexão elencados nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 266º, do CPC; porém os pedidos têm de ser autónomos no sentido de que o réu não se pode limitar a formular um pedido que coincida quanto aos seus efeitos com o que resultaria da improcedência do pedido formulado pelo autor.

“Pode o pedido reconvencional emergir de facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa, mas o pedido deve ir além do que peticiona o A., devendo ser autónomo e transcender a mera improcedência da ação” (Acórdão da Relação de Évora, de31.1.2019, Relator José Manuel Barata, in www.dgsi.pt).

Quando o pedido formulado pelo réu na contestação constituir uma decorrência lógica e necessária da sua oposição e da consequente improcedência da acção, não pode ele ser considerado como reconvenção mas como mera defesa; mas se esse pedido ultrapassar os efeitos da estrita improcedência da acção e consubstanciar uma verdadeira pretensão autónoma contra o autor, estar-se-á perante um pedido reconvencional” (Acórdão da Relação do Porto, de 10.2.2020, Relator Jorge Seabra, in www.dgsi.pt).

Revertendo, agora, ao caso concreto, verifica-se que nenhuma questão se coloca quanto aos requisitos de ordem processual, os quais se têm por verificados posto que o tribunal é dotado de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia tanto para o pedido da autora como para o pedido da ré, sendo que a ambos os pedidos corresponde a mesma forma de processo. A divergência surge unicamente quanto ao preenchimento da al. a) do nº 2 do art. 266º, do CPC, no qual a decisão recorrida se baseou para admitir a reconvenção, entendimento de que a autora discorda por considerar que tal fundamento não se verifica no caso concreto.

Uma vez que, no caso sub judice, é manifesto que a situação não pode ter cabimento em qualquer outra das alíneas do nº 2, do art. 266º, do CPC, apenas iremos analisar a situação na ótica da conexão exigida na al. a), importando aferir se o pedido da ré emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa.

A autora na presente ação invoca que o contrato de arrendamento vigente entre as partes terminou em 31.8.2019 em virtude de ter comunicado à ré, de forma válida e eficaz, a sua oposição à renovação de tal contrato.

Formula o consequente pedido de entrega do imóvel e pagamento dos valores devidos pela ocupação do mesmo após a cessação do contrato.

A ré defende-se invocando que o contrato não cessou na data invocada porque a oposição à renovação não foi efetuada de forma válida e eficaz, razão pela qual o contrato se renovou em 31.8.2019.

No entanto, considera que a renovação não se efetuou pelo prazo de 1 prazo previsto no contrato, mas antes pelo prazo de 3 anos previsto no art. 1096º, do CC, e formula pedido reconvencional de declaração da renovação do contrato por esse período temporal.

Este pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa e que consiste na ineficácia da oposição à renovação do contrato.

Por outro lado, é um pedido que não se esgota nem se confunde com os efeitos da mera improcedência da ação, antes os transcende. A improcedência da ação apenas tem como consequência que o contrato não cessou na data invocada e se renovou. Mas dessa improcedência nada resulta quanto ao prazo pelo qual a renovação ocorreu, ou, quando muito, permite a conclusão que se renovou por um ano, por ser esse o prazo previsto no contrato.

Mas a pretensão que a ré formula por via reconvencional vai mais além, constituindo um verdadeiro pedido autónomo e distinto do pedido da autora, não decorrendo da improcedência da ação, pois a ré pede que se declare que o contrato se renovou, não pelo prazo de 1 ano nele previsto, mas antes pelo prazo de 3 anos previsto no art. 1096º, do CC. Ora, a renovação por este período temporal nunca resultaria da improcedência da ação.

Como tal, entende-se que é admissível a dedução de pedido reconvencional à luz do art. 266º, nº, 2, al. a), do CPC, acompanhando-se o entendimento perfilhado na decisão recorrida, improcedendo, pois, o recurso nesta parte."

[MTS]