Providência cautelar;
periculum in mora
I- Não se verifica ambiguidade na decisão pelo uso de expressões como «medidas necessárias e adequadas», «designadamente proceder ao reforço da estrutura» e «proceder aos trabalhos que se mostrem necessários» num procedimento cautelar comum que tem como fito evitar a ruína de um prédio e que dificilmente chegaria a «bom porto», ou seja, a uma decisão justa em prazo razoável, se houvesse que aguardar pela concretização em termos técnicos e precisos, designadamente com o recurso a prova pericial e documental abundante, de todos os passos necessários a evitar os gravíssimos danos que se avizinham.
II- Considera-se enquadrável no conceito de atividade perigosa, previsto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, todo o processo construtivo de um megaempreendimento de construção civil, de grande volumetria, desde logo patente pela profundidade das escavações com seis níveis de caves, e de elevada potencialidade para causar danos de acentuada «agressividade» para as construções vizinhas, em que se verifica a contiguidade com edifícios com mais de 100 anos.
III- A Seguradora apenas pode ser condenada com base no princípio indemnizatório previsto no artigo 128.º da LCS e tendo presente as cláusulas do contrato de seguro celebrado, sendo a empreiteira quem assume a responsabilidade extracontratual, nos termos dos artigos 483.º e 493.º, n.º 2, do Código Civil.
IV- A providência cautelar decretada não passava pela condenação da Seguradora a proceder a obras de construção civil.
V- O artigo 362.º, n.º 1, do CPC exige que a providência seja «concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado».
VI- A lei atribui ao juiz, subsidiariamente, um poder cautelar geral, contrariamente ao que sucede com as diversas medidas cautelares nominadas, em que se prevê, para cada periculum in mora em concreto, uma providência específica adequada para garantir aquela situação.
VII- Perante um sistema cautelar misto como o nosso, em que o legislador não tem a pretensão de abarcar todas as realidades carecidas de tutela e em que a ponderação pelo juiz da adequação da medida solicitada ao afastamento da situação de perigo é fundamental, o artigo 376.º, n.º 3, do CPC, permite a concessão de medida diferente da requerida, precisamente no sentido de possibilitar uma real adequação à situação de perigo existente.
VIII- Imperativos de ordem constitucional convidam o intérprete e aplicador do direito a adotar uma posição mais flexível que permita o recurso, com maior amplitude, à tutela cautelar, que não pode ser vista como uma tutela excecional.
IX- Podem considerar-se dificilmente reparáveis aquelas lesões que não sejam suscetíveis de reintegração específica ou cuja reintegração in natura seja difícil, nomeadamente, porque a valoração dos danos é muito difícil ou porque, devido à situação económica do lesante, não é possível obter a reconstituição no caso concreto.
X- Cabe no âmbito do poder cautelar geral do juiz, decretar uma providência que antecipe o pagamento de uma quantia indemnizatória para evitar um dano dificilmente reparável.
XI- Perante a ameaça de derrocada iminente do prédio do Requerente e tudo o que de muito grave e irreparável tal significa, em face da insolvência da empreiteira que, por isso, não é demandada para a reparação in natura dos danos do prédio, consideramos que é de decretar a providência cautelar, mas reduzindo-a e adequando-a ao objeto da obrigação de indemnizar da seguradora.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"c) Entrando no âmbito da adequação da providência cautelar decretada, há que atentar no disposto no artigo 376.º, n.º 3, do CPC que prevê que «o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.»
Esta mitigação do princípio do pedido no domínio da tutela cautelar é apanágio do procedimento cautelar comum, mas não deixa de ser um exemplo claro da «flexibilização do pedido à luz do moderno Processo Civil» de que nos dá conta Miguel Mesquita, in Revista de Legislação de Jurisprudência, Ano 143.º, nov./dez. de 2013, p. 138.
Será possível a adequação da providência decretada?
No que respeita à ação, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CPC, «A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde uma ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação».
Sem embargo, «a composição provisória realizada através das providências cautelares pode prosseguir uma de três finalidades: ela pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela pretendida ou requerida. No primeiro caso, tomam-se providências que garantem a utilidade da composição definitiva; no segundo as providências definem uma situação provisória ou transitória; no terceiro, por fim, as providências atribuem o mesmo que se pode obter na composição definitiva […] A diferença qualitativa entre a composição provisória e a tutela atribuída pela acção principal decorre dos seus pressupostos específicos e, nomeadamente da suficiência da probabilidade da existência do direito acautelado» Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pp. 227 e 228.
Nesse quadro de princípios, expressa a lei, a propósito do âmbito das providências cautelares não especificadas, por um lado, que se alguém mostrar fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer uma providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, e que o procedimento cautelar é dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado (artigos 362.º, n.º 1, e 364.º, n.º 1, do CPC).
As providências conservatórias visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência da situação existente quando se espoletou o litígio ou aquando da verificação de periculum in mora.
As providências antecipatórias visam, atenta a urgência da situação carecida de tutela, a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal e será objeto de execução.
Na situação em apreço, foi decretada uma providência cautelar antecipatória, a qual se integra na previsão da lei.
A propósito do artigo 381.º do CPC de 1961 (atual artigo 362.º), Lopes do Rego escreveu que a redação do preceito inculca expressamente que a matriz essencial da justiça cautelar é o asseguramento do princípio da efetividade da tutela jurisdicional, considerando mesmo que as providências cautelares não especificadas são uma verdadeira «acção cautelar geral», visando a tutela provisória de quaisquer situações de «periculum in mora» (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, p. 274).
Perante as diferentes formas de indemnização de que as lesões podem ser objeto, quais se devem subsumir, afinal, no conceito de dificilmente reparáveis?
Em última análise, trata-se de saber quais os direitos que devem ser, ou não, imediatamente acautelados.
Rita Lynce de Faria, citando Paolo Biavati, indicou duas categorias de direitos subjetivos: os tuteláveis e os não tuteláveis em sede de urgência («A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2016, p. 147).
Ser titular dos primeiros significa poder reagir imediata e eficazmente perante uma violação eventual; ser titular dos segundos significa dever esperar pacientemente que a máquina da justiça exerça o seu papel.
A dúvida persiste quando estejam em causa situações em que a lesão só possa ser compensada através do pagamento de uma indemnização sucedânea do valor do dano que não permite a plena restitutio in integrum.
Uma interpretação mais restritiva conduzirá à exclusão do âmbito da tutela cautelar daquelas lesões suscetíveis de reintegração por equivalente pecuniário.
Deverá ser admitida providência cautelar para evitar um dano suscetível de, posteriormente à lesão, ser reparado através de indemnização em dinheiro?
Neste contexto, alguma jurisprudência tem aderido, para este efeito, a um critério de difícil reparação subjetivo, assente, não apenas no tipo de direito, mas, sobretudo, em elementos referentes à situação concreta a acautelar.
Em particular, a jurisprudência tem fundado o respetivo critério de difícil reparação na análise da capacidade económica do requerido.
Neste sentido, vide os acórdãos do TRL de 1.2.2007 (p. 9500/06-2), de 26.6.2008 (p. 4959/2008-2), de 19.10.2010 (p. 1600/10.6TBCSC-A.L1-1), e de 27.7.2009 (p. 1004/07.8TYLSB.L1-8) e o acórdão do TRC de 28.4.2010 (p. 319/10.2BPBL.C1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Em sentido contrário se pronunciou o acórdão do STJ de 18.3.2010 (p. 1004/07.8 TYLSB.L1.S1, www.dgsi.pt), que chama a atenção, para além de outros fatores, para a dificuldade que tal prova negativa implicaria.
A propósito, Rita Lynce de Faria dá-nos conta dos exemplos brasileiro, italiano e francês (ibidem, p. 148).
Também no Brasil, no âmbito da tutela cautelar antecipatória, tem prevalecido este entendimento subjetivo referente à capacidade económica do requerido (cf. Frederico Almeida Neves, Tutela jurisdicional antecipada, p. 74).
Embora não colocando o acento tónico na situação patrimonial do requerido, doutrina e jurisprudência italianas também têm considerado de excluir a concessão da tutela cautelar em caso de obrigações pecuniárias ou no caso de danos suscetíveis de serem reparados por ressarcimento pecuniário (cf. Edoardo Ricci, Interventi, pp. 107 e 108).
Por seu turno, o exemplo francês do référé-provision vai no sentido contrário, ao admitir a concessão de tutela cautelar com conteúdo de intimação de pagamento de uma certa quantia pecuniária.
Tal como a Autora (ibidem, p. 149), aderimos totalmente ao acórdão do STJ de 18.3.2010, assim sumariado:
«Nada na lei autoriza a que se exija do requerente do procedimento cautelar comum que faça prova de que o Requerido não poderá pagar-lhe uma indemnização correspondente ao bem ou direito lesado, sob pena de recusa das providências requeridas, por falta do elemento “dificuldade de reparação”. Se assim fosse, ficariam sem tutela da ordem jurídica bens, serviços e direitos de relevantíssimo interesse social, não apenas por dificuldade de tal prova, mas também porque o lesante, em geral, poderia cobrir, mediante uma presumida importância pecuniária e segundo um juízo de probabilidade, todos os prejuízos materiais advenientes da lesão».
Neste âmbito, a Autora não deixou de entrar numa reflexão que se aproxima mais do presente caso, ao afirmar o seguinte:
«Note-se que, ao contrário do que acontecer nesta situação, muitas vezes a indemnização em dinheiro constitui a forma de restauração natural, já que a obrigação original devida se traduzia, ela própria, numa obrigação pecuniária. Não obstante, casos existem em que, apesar disso, a antecipação cautelar se justifica, pois, o pagamento adiado daquela quantia pode vir a provocar danos que, esses sim, são insuscetíveis de restauração natural. Nesse caso, a providência cautelar, para evitar o dano dificilmente reparável, antecipa essa quantia, como forma de evitar danos decorrentes do atraso no pagamento. Assim acontece, nomeadamente, com os alimentos provisórios ou o arbitramento de reparação provisória(…)» ibidem, p. 153, nota 346).
Preceitua o artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa que:
«Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.»
Assim, imperativos de ordem constitucional convidam o intérprete e aplicador do direito a adotar uma posição mais flexível que permita o recurso, com maior amplitude, à tutela cautelar, que não pode mais ser vista como uma tutela excecional.
O direito a uma tutela jurisdicional efetiva tem de traduzir-se numa eficácia plena da decisão judicial na esfera jurídica do particular.
Assim, podem considera-se dificilmente reparáveis aquelas lesões que não sejam suscetíveis de reintegração específica ou cuja reintegração in natura seja difícil, nomeadamente, porque a valoração dos danos é muito difícil ou porque, devido à situação económica do lesante, não é possível obter a reconstituição no caso concreto (ibidem, p. 163).
O artigo 362.º, n.º 1, do CPC exige que a providência seja «concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado».
Daqui resulta que a adequação da providência cautelar apenas é constatável em concreto, dependendo da natureza do pedido a que o direito do requerente esteja sujeito.
A importância deste requisito da adequação cautelar aumenta exponencialmente num sistema jurídico cautelar como o nosso, em que grande parte da tutela cautelar é concedida ao abrigo da cláusula geral do citado artigo 362.º.
Aí se atribui ao juiz, subsidiariamente, um poder cautelar geral, contrariamente ao que sucede com as diversas medidas cautelares nominadas, em que se prevê, para cada periculum in mora em concreto, uma providência específica adequada para garantir aquela situação, no âmbito da tutela cautelar não especificada o juízo de ponderação desempenha um papel fundamental na escolha da providência concreta.
Como escreveu Rita Lynce de Faria, «Muito embora o recurso à tutela cautelar comum apenas tenha lugar subsidiariamente, quando ao caso não caiba uma medida especificada, a verdade é que a ideia de que aquela aplicação será residual é totalmente ilusória. Na prática, o âmbito de atuação daquelas providências é extremamente alargado, dada a panóplia de situações que permite cobrir na sociedade atual, em que as hipóteses de risco se multiplicam a um ritmo desenfreado, ultrapassando com frequência a previsibilidade das restantes estatuições concretas. Em suma, pode afirmar-se que a tutela cautelar não especificada possui um conteúdo caracterizado pela elasticidade.» (ibidem, p. 168).
Perante um sistema cautelar misto como o nosso, em que o legislador não tem a pretensão de abarcar todas as realidades carecidas de tutela e em que a ponderação pelo juiz da adequação da medida solicitada ao afastamento da situação de perigo é fundamental, o artigo 376.º, n.º 3, do CPC, permite a concessão de medida diferente da requerida, precisamente no sentido de possibilitar uma real adequação à situação de perigo existente.
O julgador goza assim de um poder de adequação material que lhe permite aferir da idoneidade da medida requerida para afastar o periculum in mora concreto e, em caso negativo, escolher uma medida apta àquela função.
Estamos perante um poder-dever de decretar a providência mais adequada.
O entendimento deste poder-dever de convolação da medida requerida, atribuído pelo artigo 376.º, n.º 3, do CPC, não é pacífico na doutrina.
Como explica Rita Lynce de Faria, «a não adstrição do tribunal à medida concretamente requerida pode ser interpretada como uma derrogação do princípio do dispositivo em matéria cautelar, ou pode ser vista como uma simples manifestação da regra geral do iura novit curia que permite ao julgador alterar a qualificação jurídica no sentido de viabilizar o pedido cautelar.» (ibidem, p. 170)
«Não faria sentido a disposição do preceito se a intenção do legislador não fosse a de consagrar, em matéria cautelar, solução diferente da já resultante do artigo 5.º, n.º 3.» (ibidem)
Entendemos que, ainda que o juiz não esteja vinculado pelo pedido concreto de providência cautelar, ele está, no entanto, vinculado pelo sentido do pedido, ou seja, pela vontade manifestada pelo Requerente no sentido do afastamento de uma situação de perigo concreta.
Neste sentido, Rui Pinto designa este limite ao poder de regulação do juiz de «finalidade concreta do pedido» (A questão de mérito na tutela cautelar - A Obrigação Genérica de não Ingerência e os Limites da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2009, pp. 642 e 643).
Revertendo ao caso concreto, à luz das considerações expendidas, perante a ameaça de derrocada iminente do prédio do Requerente e tudo o que de muito grave e irreparável tal significa, em face da insolvência da empreiteira que, por isso, não é demandada para a reparação in natura dos danos do prédio, consideramos que é de decretar a providência cautelar, mas reduzindo-a e adequando-a ao objeto da obrigação de indemnizar da seguradora.
Isto sem olvidar que o Requerente atribuiu ao procedimento cautelar o valor de 750 000,00 €, que considera corresponder a um cálculo provável dos custos da reparação do edifício necessários a evitar o periculum in mora.
d) Deve, assim, reduzir-se e adequar-se o comando da providência cautelar ao seguinte:
- Condenação da Requerida a custear as obras de reparação necessárias e adequadas à eliminação dos deslocamentos verticais verificados na estrutura do prédio do Requerente, designadamente através do reforço da estrutura de contenção instalada em agosto de 2020 e dos trabalhos que se mostrem necessários para o reforço e a consolidação das suas fundações, mediante a entrega das quantias monetárias necessárias, dentro dos limites do seguro e até ao montante de 750 000,00 € indicado pelo Requerente no requerimento inicial.
[MTS]