"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2021

Jurisprudência 2021 (69)


Casa de morada de família;
atribuição; ónus da prova


1. O sumário de RL 13/4/2021 (1480/18.3T8LSB-A.L1-7) é o seguinte:

I. No processo especial de atribuição de casa de morada de família (Art. 990º do Código de Processo Civil), incumbe à requerente o ónus da prova da sua necessidade justificativa da atribuição da casa de morada de família em arrendamento (Artigos 1793º, nº1, e 342º, nº1, do Código Civil). Por sua vez, ao requerido compete o ónus da prova de que necessita mais da casa, enquanto facto impeditivo do direito da requerente (nº2 do Artigo 342º do Código Civil).

II. A distribuição do ónus da prova acima precisada é a que mais se conforma com a acessibilidade que cada uma das partes tem à comprovação dos respetivos rendimentos, bem como a que mais induz à igualdade substancial das partes no processo.

III. Um dos critérios materiais de decisão neste processo pode assentar na conduta pretérita de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, bem como em violência doméstica, sendo tal critério operante quer em caso de paridade das necessidades dos ex-cônjuges quer em caso de inexistência de tal paridade.

IV. Quanto à definição do valor de referência da renda, o paradigma que mais se apropria a situações desta índole é o Programa de Arrendamento Acessível, consagrado no Decreto-lei nº 68/2019, de 22.5, e na Portaria nº 176/2019, de 6.6, fixando-se nesta limites gerais de renda por tipologia e por concelho.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso em apreço, a requerente e o requerido não têm filhos a cargo da própria relação ou de relações anteriores, razão pela qual tal critério não é aplicável.

A requerente tem uma situação profissional mais definida, trabalhando como psicóloga numa (…), com um vencimento mensal líquido de € 913,39. Depois de ter deixado de viver com o requerido, a requerente recorreu ao arrendamento de quartos em pensões ou hostels, sendo que, entre 1.8.2017 e janeiro de 2018, residia num quarto numa casa de hóspedes, pagamento € 300 mensais. Depois, a requerente esteve três meses a viver, de forma gratuita e com apoio de terceiro, num imóvel desocupado, sendo que, face ao prolongamento dessa situação, a requerente agora paga € 500 mensais por tal fruição do andar onde reside.

O requerido trabalha na área do cinema, onde tem a categoria de topo, na sua carreira, de chefe de maquinaria. O requerido não tem emprego permanente daí advindo uma retribuição irregular e não aufere subsídios de férias e de Natal ou pagamentos do Estado quando está incapacitado para trabalhar (...). A irregularidade da retribuição neste tipo de atividades é comum. Todavia, há que distinguir os planos de análise: uma vertente é a irregularidade da retribuição e outra – bem distinta – é o valor médio anual que o requerido acaba por auferir. Por exemplo, relativamente ao ano de 2019 (relativamente ao qual existem mais factos provados atinentes aos mútuos), nada está provado sobre os rendimentos totais reais do requerido.

Aqui chegados, há que convocar as regras do ónus da prova. Neste tipo de processo, incumbe à requerente o ónus da prova da sua necessidade justificativa da atribuição da casa de morada de família em arrendamento – cf. Artigos 1793º, nº1, e 342º, nº1, do Código Civil. Por sua vez, ao requerido compete o ónus da prova de que necessita mais da casa, enquanto facto impeditivo do direito da requerente (nº 2 do Artigo 342º do Código Civil).

Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, p. 18: «A teoria da norma e a teoria da normalidade podem, em concreto, revelar-se inadequadas, requerendo uma intervenção corretiva do juiz, em prol da igualdade processual e da efetividade da tutela, sob pena de ser tornar intoleravelmente difícil a prova a cargo de uma parte, em benefício irracional a favor da contraparte. Com efeito, a predisposição do ónus probatório de forma apriorística e imutável pode redundar numa dificuldade probatória subjetiva acentuada, desvirtuadora do acesso ao direito (art. 20º da Constituição) e indutora de uma desigualdade substancial entre as partes. Essa intervenção pode, desde logo, passar pela interpretação da norma no sentido de estabelecer em que medida um facto deve integrar a factispécie constitutiva ou se, pelo contrário, deve integrar uma factispécie autónoma, com efeitos impeditivos.»

A distribuição do ónus da prova acima precisada é a que mais se conforma com a acessibilidade que cada uma das partes tem à comprovação dos respetivos rendimentos, bem como a que mais induz à igualdade substancial das partes no processo. Nos casos como o presente, em que o requerido trabalha sem vínculo laboral específico (cf. facto 12) e também no estrangeiro (facto 13), constituiria imposição de prova diabólica exigir-se à requerente que fizesse a prova específica dos rendimentos do requerido. Assim, não se acompanha o raciocínio do tribunal a quo no sentido de que competia à requerente fazer prova da sua maior necessidade da casa de morada de família.

Não colhe a argumentação da apelante no sentido de que é aplicável o disposto no Artigo 344º, nº2, do Código Civil, na medida em que o requerido, de forma culposa, tornou extremamente difícil à requerente a prova da situação económica do requerido. Em primeiro lugar, a apelante não requereu que o requerido fosse notificado para juntar documentação atinente aos seus rendimentos sob cominação da inversão do ónus da prova (cf. Artigo 344º, nº2, do Código Civil e Artigos 429º e 431º, nº2, do Código de Processo Civil). Em segundo lugar, o nº2 do Artigo 344º tem como pressupostos: uma conduta ilícita e culposa da contraparte; um resultado de impossibilidade de prova para a parte onerada; um nexo de causalidade entre a conduta ilícita e culposa e entre a impossibilidade. Acompanhando Pires Salpico, cabe à parte inicialmente onerada com a prova demonstrar, tendo em vista beneficiar da inversão do ónus da prova, o seguinte: «que existe ou existiu um meio de prova, que o meio de prova seria relevante para a decisão da causa (pressuposto positivo do nexo de causalidade), de que não restam outros meios de prova relevantes (pressuposto negativo do nexo de causalidade) e que o mesmo se encontrava em posse da contraparte ou, em condições de serem alterados pela contraparte (componente para o pressuposto da ilicitude e da culpa).»[Nuno Alexandre Pires Salpico,  “A inversão do ónus da prova devido a impossibilidade de prova culposamente causada”, in Ius Dictum, Nº 1, 2020, pp. 45-75, também acessível em  https://sousaferro.pt/wp-content/uploads/2020/06/Invers%C3%A3o-por-impossibilidade-culposamente-causada-NUNO-SALPICO.pdf, p. 21.] Ora, a requerente não fez semelhante alegação, razão pela qual a invocação deste regime é despropositada.

Em suma, cabia ao requerido alegar e demonstrar que tem mais necessidade da casa de morada de família do que a requerente, designadamente porque tem um nível médio de rendimentos anuais inferior à requerente, sendo que o requerido não fez tal prova. Na verdade, são questões diversas a circunstância de o requerido não ter um vínculo laboral certo e continuo, por um lado, e o nível médio dos seus rendimentos anuais, por outro. Isto porquanto, trabalhando alguns meses apenas pode dar-se o caso do requerido auferir rendimentos anuais equivalentes à requerente. O desconhecimento do nível efetivo de rendimentos anuais do requerido desfavorece a posição do mesmo no processo porquanto lhe incumbia provar – enquanto facto impeditivo – que necessita mais da casa do que a requerente.

Aqui chegados, resulta da factualidade provada que a requerente paga € 500 mensais com a habitação onde reside atualmente, acrescendo que a requerente é que vem assumindo, a título principal, o pagamento dos mútuos bancários que as partes contraíram na pendência do casamento (cf. factos 24, 25, 26, 27, 28,29, 30 e 31), tendo a requerente de recorrer a empréstimos juntos de terceiros (...), bem como ao pedido de antecipação do pagamento de subsídio de férias (...). Estão em causa créditos hipotecários nos valores mensais de € 146,44 e € 182,78, acrescendo um crédito pessoal de € 219,57, sendo que a requerente aufere € 913.39 líquidos. Assim, abatendo ao vencimento líquido de € 913,39 os valores de € 500, € 146,44 e € 182,78, sobram € 84,17, o que é suficientemente demonstrativo da situação de necessidade da requerente.

O requerido passa temporadas em Cabo Verde em trabalho, períodos em que, pela natureza das coisas, não necessita de residência em Portugal (...), ao contrário da requerente.

Acresce que a doutrina e jurisprudência acima referidas, que enfatizam o critério atinente à conduta anterior dos cônjuges conducente à rutura do casamento, merecem a nossa adesão, sobretudo num contexto como o presente em que inexistem filhos como critério relevante de decisão. E, neste circunspecto, não se pode ignorar que o requerido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica sobre a requerente (...), tratando-se de factos de julho de 2017 (16, 17 e 34), expulsando a requerente da casa de morada de família (...). No processo de divórcio com sentença de 1.12.2018, foi dada como provada uma agressão do requerido à requerente no final de 2015 e início de 2016, embora o tribunal tenha julgado suficiente para a procedência do divórcio a separação do casal por um ano consecutivo (...).

Nesta senda, o parâmetro decisório material decorrente da conduta anterior dos cônjuges conducente à rutura do casamento revela também no caso em apreço em abono da posição da requerente e em desabono da posição do requerido, contribuindo também para que seja atribuído à requerente a casa de morada de família."

[MTS]