Matéria de facto; presunções naturais;
poderes do STJ*
I - A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, que podem utilizar prova por presunções.
II - O Supremo tem apenas competências residuais para censurar a forma como o tribunal recorrido utilizou as presunções judiciais em três casos: ofensa de norma legal, violação evidente de regras elementares de lógica, ou se o tribunal recorrido firmar os factos desconhecidos a partir de outros que não estejam provados no processo.
III - O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"II – O uso de presunções judiciais para dar como provados os requisitos da simulação absoluta
2. Nesta matéria, os princípios adotados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça restringem os poderes cognitivos deste Tribunal, enquanto tribunal de revista, a casos em que o uso de presunções desrespeitou manifestamente as regras da lógica e da razoabilidade. Como se entende no Acórdão de de 24-11-2020 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S1), «Há muito que se problematiza a questão da sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça dos juízos de inferência retirados pelas instâncias, apenas se admitindo que este Órgão controle se as presunções foram ou não obtidas com o recurso aos normativos legais aplicáveis, bem como se a sua obtenção se encontra ferida de alguma deficiência, nomeadamente, se o método discursivo utilizado lhe tolda a logicidade», concluindo-se que, «O erro sobre a substância de um tal juízo presuntivo só será sindicável pelo Tribunal de Revista em caso de manifesto contra senso e/ou desrazoabilidade».
Como é comumente aceite, apenas se admite um controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre as presunções judiciais, quando o Tribunal da Relação violou alguma norma legal, se as presunções carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, isto é, se o facto conhecido não está provado.
Em relação à utilização de presunções para a decisão quanto aos requisitos do negócio simulado, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 24-10-2019 (Proc. n.º 56/14.9T8VNF.G1.S1) reafirmou estes princípio, concluindo no seu sumário que «I – Os factos que o tribunal recorrido julgou provados por presunção judicial correspondem aos requisitos da simulação previstos no artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil: 1) acordo ou conluio (pactum simulationis) entre declarante e declaratário; 2) intuito de enganar terceiros (no caso vertente, a jurisprudência exige o requisito de prejudicar terceiros, por ser a nulidade invocada por um herdeiro legitimário – cf. acórdão do STJ, de 10-04-2003, proc. n.º 03B544); 3) divergência intencional (bilateral) entre a declaração negocial e a vontade real do declarante. II – Presunções judiciais são meios lógicos ou mentais de descoberta de factos ou operações probatórias que se firmam mediante regras de experiência, e permitem ao julgador extrair conclusões de factos conhecidos e provados para firmar factos desconhecidos. III - A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, que podem utilizar prova por presunções, e não do Supremo Tribunal de Justiça. IV - O Supremo tem apenas competências residuais para censurar a forma como o tribunal recorrido utilizou as presunções judiciais em três casos: ofensa de norma legal, violação evidente de regras elementares de lógica, ou se o tribunal recorrido firmar os factos desconhecidos a partir de outros que não estejam provados no processo».
3. No caso vertente, o Tribunal da Relação modificou os factos 8. e 34., que passaram a ter a seguinte redação:
8. “O primeiro Réu foi executado em vários processos de execução fiscal que se unificaram no processo n.º …..31, onde foi efectuada e registada provisoriamente, penhora sobre prédio supra identificado, em 2 de Junho de 2005, penhora essa inscrita na Conservatória do Registo Predial em 4 de Janeiro de 2007, cuja conversão foi recusada em 26/02/2007, tendo caducado em 24/10/2007. Em 29/04/2008 foi efectuada nova penhora, registada em 29/04/2008 com carácter provisório, tendo sido convertida em definitiva em 02/09/2008”.34. “Pelo menos desde Agosto de 2003, o Réu residiu com a sua namorada em …., onde permaneceu a residir depois de com esta casar, em 04/09/2004, e até dela se divorciar, em 06/01/2006”.
Estas alterações da matéria de facto fixada, contudo, foram consideradas irrelevantes, pelo Tribunal da Relação, para o tema principal do processo, que se prende com o preenchimento dos requisitos da simulação absoluta do contrato de arrendamento, cuja verificação as instâncias afirmam nos pontos 31 e 32 dos factos provados, que não foram eliminados da matéria de facto, como pretendiam os recorrentes.
Os factos impugnados são do seguinte teor:
«31.O contrato de arrendamento referido em 20 teve como único objectivo o de possibilitar a todos os Réus continuarem a viver no prédio em questão.32. Nem o 1º Réu o quis dar de arrendamento nem estes quiseram tomá-lo de arrendamento».
As instâncias basearam-se, para a prova dos factos 31 e 32, nos depoimentos de parte dos réus, em documentos juntos aos autos e na prova testemunhal, utilizando presunções, para dar como provado o acordo simulatório e a intenção de prejudicar terceiros.
O Tribunal da Relação indeferiu a impugnação dos factos 31 e 32 com o seguinte fundamento:
«Ora, neste âmbito, importa, desde logo, chamar à atenção das partes que a prova da necessária “intenção de enganar terceiros” - que, como vimos, a simulação pressupõe (conforme art. 240º, nº 1 do CC) - correspondendo, obviamente, a um facto do foro interno, não é, em regra, susceptível de ser feita de forma directa.
Por outras palavras, os “eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) constituem factos cujo conhecimento pode ser atingido directamente pelos sentidos ou através das regras de experiência.
Assim na tramitação deste tipo de processos é necessário alegar intenções com única forma de alcançar uma solução jurídica através de conceitos que podem não ser de puro facto (…)”
Ora, a “prova directa dessas intenções é rara (v.g. confissão) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções. (…)
Na verdade, tendo em conta a sucessão no tempo dos diversos actos jurídicos praticados em função do prédio dos RR., surge como uma evidência que a causa da alegada (simulada) celebração do contrato de arrendamento só pode ser encontrada nas execuções fiscais (e nos actos de penhora nelas concretizados), tendo os RR. se conluiado no sentido de, por essa via, tentar prejudicar os interesses da Autora enquanto compradora do prédio em sede da venda efectivada na acção executiva (e dos demais credores) (destaque nosso).
Nesse sentido aponta decisivamente a coincidência das datas entre as penhoras efectivadas (posteriormente caducadas ou não) e a data da alegada celebração do contrato de arrendamento, mas também a ausência de qualquer outra explicação credível para a celebração do discutido contrato de arrendamento (quando os 2ºs RR. (pais) sempre foram reconhecidos como proprietários do prédio que inclusivamente edificaram).
De facto, ficou provado que o referido imóvel sempre foi habitado pelos 2ºs Réus tendo o mesmo sido sucessivamente adquirido por uma filha sua, no âmbito de execução fiscal em que eram executados (através do exercício do direito de remição) e, depois, pelo o outro filho (o aqui 1º Réu) que o adquiriu àquela sua irmã.
Sendo os proprietários do prédio, não lograram os Réus provar qualquer circunstancialismo fáctico que permitisse justificar a celebração do contrato de arrendamento com o seu filho (que seja diferente daquele que foi apontado pelo tribunal recorrido).
Antes, o que decorre da prova produzida (e da conjugação das datas referidas – datas das penhoras, da venda e do negócio celebrado), é que os RR. só concretizaram tal negócio jurídico no sentido de salvaguardar o prédio na sua posse, nunca tendo querido tomar tal prédio de arrendamento, ou nunca tendo o 1º Réu querido dar de arrendamento a seus pais tal prédio (pois que o mesmo, como todos os familiares reconhecem, lhes pertence) (destaque nosso).
Não há dúvidas que a causa do negócio celebrado foi apenas a de (tentar) evitar os efeitos das penhoras e da subsequente venda em execução fiscal e com o objectivo de permitir que os 2ºs RR continuassem a residir no seu prédio (atribuindo-lhe um direito de arrendamento susceptível de ser oposto ao comprador na venda executiva) - como, aliás, acabou por acontecer (destaque nosso).
Mas não é só por aí que se pode concluir pela existência da simulação absoluta.
É que outro “dos indícios mais operativos em sede de simulação é o indicio affectio, gerado pelas relações familiares, de amizade, de dependência, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre o simulador e o seu co-autor e que vinculam este àquele por um motivo de tal índole. O simulador escolhe como parceiro negocial uma pessoa da sua confiança porque pretende preservar o negócio dissimulado (ou o objectivo final que preside à sua actuação) e subtraí-lo a qualquer risco que ponha em causa a sua subsistência” [...]
Ora, não será difícil considerar também verificado este indício, pois que os RR. são todos familiares entre si (o 1º Réu é filho dos 2ºs RR. e no primeiro negócio jurídico interveio a irmã DD).
Além disso, também não podemos deixar de apontar como indício da existência de simulação o facto de o pagamento das alegadas rendas só ter ficado demonstrado quanto ao período em que as mesmas tiveram que ser depositadas à ordem das execuções fiscais (quanto às outras rendas, segundo o depoimento do 2º Réu, teriam sido pagos em numerário…).
Prosseguindo, dir-se-á finalmente que “um dos indícios mais emblemáticos da simulação é o indício retentio possessionis (retenção da posse) que se traduz no facto de o simulador adquirente da coisa transmitida não exercitar sobre a coisa qualquer conduta possessória, sucumbindo por parte deste qualquer actividade reconduzível ao jus utendi, fruendi, disponendi e vindicandi. Assim, apesar da transmissão formal de bens, o vendedor continua na posse do imóvel ou aí a residir, ou seja, o contrato não é executado”.
Foi também o que sucedeu no caso concreto (embora não se trate de uma alienação), pois que os 2ºs RR. sempre se mantiveram na posse do prédio (agindo como seus proprietários - veja-se que o próprio 1º Réu assim o declarou), pelo que, também por esta via, se indicia de uma forma clara a existência de simulação».
Analisada a fundamentação do acórdão recorrido não se encontra qualquer desrazoabilidade ou falta de lógica no recurso a presunções, que possa justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto fixada, nem tão-pouco qualquer violação de regras de direito probatório.
Com efeito, o Tribunal da Relação concretizou o direito dos recorrentes ao duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, obedecendo aos parâmetros legais, em sede de impugnação da matéria de facto, formando a sua convicção de uma forma autónoma, através da reapreciação de todos os elementos probatórios acessíveis, e procedendo a uma análise crítica e lógica da prova, nada havendo a censurar nesta sede.
O tribunal recorrido retirou ilações de um conjunto de factos conhecidos – os processos de execução fiscal contra o réu acompanhados de sucessivas penhoras do imóvel e a relação familiar entre o 1.º réu e os 2.ºs réus – para deduzir a divergência entre a vontade e a declaração e a intenção de prejudicar o Banco. A circunstância de a primeira penhora, de 2005, ser provisória à data do arrendamento, 1 de abril de 2007, e de ter sido recusada a sua conversão em definitiva em fevereiro de 2007, tendo caducado em momento posterior à data do arrendamento, em outubro de 2007, e de só em 2008 ter sido efetuada e registada definitivamente outra penhora (facto provado n.º 8), não torna ilógica a presunção de facto deduzida pelo tribunal recorrido, pois estando pendente processo executivo era expectável que o imóvel viesse a ser vendido. Este contexto fáctico – pendência de um processo executivo à data da celebração do contrato de arrendamento, com registo provisório de penhora sobre o imóvel – interpretado à luz da globalidade dos factos que ficaram provados, permite não tornar desrazoável a dedução do tribunal recorrido, não sendo descabido recorrer a presunções judiciais, como fizeram as instâncias, para dar como provado que o contrato de arrendamento visou atribuir aos segundos réus, uma posição jurídica oponível ao adquirente em venda executiva.
É certo que pode suceder que exista um acordo simulatório, sem a intenção de enganar o terceiro que, em concreto, pede a nulidade do negócio, como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-02-2017 (724/09.7TBAMT.P2.S1), onde se afirmou que «Assim, embora a factualidade provada indique que houve realmente um acordo simulatório entre os 1ºs e 2ºs Réus no respeitante ao prédio rústico integrante do prédio misto (v. a propósito os pontos 12º a 17º dos factos provados), por isso que não quiseram vender e comprar tal prédio, a verdade é que não se mostra que tal comportamento teve subjacente o intuito de enganar a Ré BANCO GG, S.A, fosse para a prejudicar fosse para a iludir». No caso do acórdão citado, as instâncias deram como não provada a intenção de prejudicar o Banco, como se afirma na fundamentação do acórdão acabado de citar: «Mas tal simulação nunca poderá ter-se por verificada, visto que as instâncias entenderam que não ficou provado (e essa prova pertencia aos Autores, conforme o estabelecido no art. 342º, nº 1 do CCivil) o intuito de enganar terceiros, neste caso a Ré BANCO GG».
Todavia, no presente caso, as instâncias deram como provada essa intenção de prejudicar, o que restringe, como vimos, a intervenção deste Supremo aos casos em que o recurso de presunções padece de manifesta falta de lógica.
Tem-se entendido, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a determinação da intenção dos contraentes, designadamente, o intuito de enganar terceiros, constitui matéria de facto (Acs. STJ, de 18-12-2003, proc. n.º 03B3794), de 08-10-2009 proc. n.º 4132/06.3TBVCT.S1 e de 16-10-2012, proc. n.º 649/04.2TBPDL.L1.S1). Sendo o Banco um terceiro, a ação intentada contra os réus, visando a declaração da nulidade do contrato de arrendamento, com fundamento em simulação absoluta, não está submetida a prova vinculada para a demonstração do acordo simulatório e do elemento intencional, não podendo, pois, este Supremo Tribunal dar como não provada a alegada intenção de prejudicar o Banco quando as instâncias a deduziram dos factos provados de acordo com regras de experiência e presunções de facto.
Uma vez que as intenções se relacionam com o mundo psíquico e interno dos sujeitos, não é possível determiná-las através de prova direta, a não ser que os sujeitos confessem, ou assumam as suas intenções por escrito ou verbalmente, diante de terceiros que o atestem em tribunal prestando testemunho credível. Os tribunais não têm outra alternativa, nesta sede, senão recorrer a prova indiciária. Se não fosse admissível a utilização de presunções, o artigo 240.º do Código Civil seria, praticamente, letra morta.
Na apreciação da prova é aceitável que o tribunal recorrido, desde que mantenha coerência lógica, possa fazer operar a presunção sobre factos provados, com base em regras de experiência, para, a partir desses factos, fixar outros em relação aos quais não existe prova direta.
O Banco, não tendo qualquer intervenção no contrato de arrendamento celebrado pelos réus, não pode deixar de ser considerado terceiro em relação ao negócio simulado, com legitimidade para invocar a sua nulidade, na medida em que é titular de uma relação, cuja consistência jurídica ou prática é afetada pelo negócio simulado. Com a aquisição na venda executiva, o Banco deixa de ter a qualidade de credor hipotecário, passando a assumir a qualidade de proprietário. Mas, nada impede que o adquirente, na venda executiva de imóvel arrendado, possa invocar a nulidade do contrato de arrendamento simulado, desde que prove os requisitos da simulação fixados no artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil.
O tribunal recorrido, usando o seu poder de livre apreciação da prova, aplicou regras de experiência, nas quais não se deteta qualquer desrazoabilidade ou falta de lógica. Qualquer erro na apreciação da prova que tenha sido cometido não é sindicável por este Supremo Tribunal, que não se pode substituir à apreciação que o tribunal recorrido fez de prova não vinculada.
Em consequência, nega-se a revista quanto à questão do uso de presunções judiciais pelo tribunal recorrido."
*3. [Comentário] Salvo o devida consideração, bem pode dizer-se que o caso concreto demonstra os inconvenientes da solução adoptada no acórdão e que, segundo se julga, ainda é dominante no STJ.
O disposto no art. 682.º, n.º 1, CPC não impede que o STJ possa controlar as inferências feitas pelas instâncias dos factos probatórios adquiridos no processo, dado que nenhum facto novo é invocado perante o STJ. Aliás, a afirmação frequente de que o STJ pode controlar a manifesta ilogicidade das inferências probatórias significa que, afinal, o STJ controla efectivamente as inferências probatórias realizadas pelas instâncias, dado que sem este controlo não pode concluir por aquela ilogicidade.
MTS