Audiência prévia; dispensa;
ilegalidade; decisão*
1. O sumário de RE de 9/9/2021 (1883/20.3T8STR-A.E1) é o seguinte:
I.- A decisão sobre uma exceção perentória é uma decisão que incide sobre o mérito da causa, como estipula o artigo 595.º/1, b), do CPC, onde se equipara o conhecimento do pedido ao conhecimento de uma exceção perentória.
II.- Se, no despacho saneador, o juiz pretende conhecer de uma exceção perentória ou do pedido, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591.º/1, b), do CPC, com vista a assegurar o exercício do contraditório.
III - Mesmo quando a exceção perentória tenha sido debatida nos articulados, deve convocar-se audiência prévia, ao abrigo do artigo 3.º/3, do CPC, assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.
IV- Caso seja dispensada a audiência prévia, para além dos casos previstos no artigo 593.º do CPC, a sua não realização será cominada com uma nulidade processual por prática de ato não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, a que alude o artigo 195.º do CPC.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"*
Após os articulados foi dispensada a audiência preliminar e proferido saneador-sentença, nos seguintes termos:
Dispensa da audiência prévia
Afigurando-se inexistir a possibilidade de conciliação das partes e não se verificando a necessidade de suprir eventuais insuficiências ou imprecisões da matéria de facto, estando assegurado o cumprimento do contraditório, nos termos dos artigos 593.º, n.º 1, 591.º, n.º 1, alínea d) e 595.º, n.º 1, alínea b), CPC, dispenso a realização da audiência prévia. [...]
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Não se conformando com o decidido, (…) – Rações, Lda. recorreu do despacho que dispensou a audiência preliminar quer do saneador-sentença [...]
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As questões que importa decidir são:
1.- A dispensa da audiência prévia quando está em causa exceção perentória acerca da qual o autor já foi ouvido. [...]
O Novo Processo Civil que resultou da reforma de 2013, acabou com uma polémica antiga que existia no anterior regime e que consistia na dúvida em saber se a decisão acerca da procedência de uma exceção perentória era ou não classificável como uma decisão de mérito, ou seja, que conhecia do mérito da causa.
Hoje não existem quaisquer dúvidas de que a decisão sobre uma exceção perentória é uma decisão que incide sobre o mérito da causa, como o estipula o artigo 595.º/1, b), do CPC, onde se equipara o conhecimento do pedido ao conhecimento de uma exceção perentória.
No novo regime a audiência prévia tem uma abrangência muito mais lata do que a anterior audiência preliminar.
Não nos podemos esquecer de que no atual processo civil, em regra, os autos apenas são conclusos ao juiz no final da apresentação de todos os articulados, para efeitos de gestão processual, sendo as partes convidadas a corrigir os articulados ou a juntar documentos e demais questões a que alude o artigo 590.º do CPC.
Segue-se a audiência prévia, onde as partes encontram pela primeira vez o juiz, sendo por isso, de extrema importância para a defesa dos vários interesses que na lide se defrontam, que, antes de prosseguirem para julgamento, sejam discutidas todas as questões, de facto ou de direito, que ainda se mostrem pendentes ou que resultem da discussão e debate a realizar na audiência prévia (art.º 591.º do CPC).
Ora, esta discussão tem de ser feita oralmente perante o juiz, pelo que só em casos muito restritos se pode dispensar a audiência prévia.
Com efeito, mesmo nos casos em que uma exceção perentória já foi discutida pelas partes, a audiência previa será a última oportunidade de as partes trazerem ao conhecimento do tribunal novos argumentos, de facto ou de direito, acerca da questão controvertida, assim facultando ao tribunal um acréscimo de informação que vai ajudar a decisão e se cumpre o magno princípio do contraditório (artigo 3.º/3, do CPC).
É também este o entendimento de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, volume 2.º, 3.ª Ed., Almedina, pág. 650, “Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do artigo 3.º-3, assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.”
Após a realização da audiência prévia, preclude a possibilidade de as partes praticarem os atos para os quais tenham sido convocadas (artigo 591.º/2), o que reforça também a sua importância na marcha do processo.
Sobre a obrigatoriedade de o tribunal convocar a audiência prévia, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 4ª Ed., 2017, pág. 201 anota que “No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, excetuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade.”
Ora, o tribunal a quo teve este entendimento, e, por isso, dispensou a audiência prévia.
Contudo, o ilustre professor, continua no loc. cit., esclarecendo: “No novo Código esta exceção desapareceu: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes.”
No mesmo sentido, Rui Pinto, CPC Anotado, Vol. II, 2018, pág. 123: “(…) o tribunal que está em condições de pôr termo à causa (seja por procedência de exceção dilatória, seja por julgamento integral do mérito) ou de, sem pôr termo à causa, conhecer do mérito parcial (julgamento de um pedido cumulado contra uma mesma parte ou de uma exceção perentória) deve facultar às partes a discussão de facto e de direito, cumprindo o artigo 591.º/1, 2, b) (…)”
O que vale por dizer que, fora dos casos a que alude o artigo 593.º do CPC, acima transcrito, o juiz está impedido de dispensar a audiência prévia pelo que, não se integrando o caso dos autos em qualquer dessas circunstâncias, a audiência prévia não pode ser dispensada, sendo o despacho atinente atingido pela nulidade, nos termos preconizados pelo artigo 195.º do CPC.
No mesmo sentido, Ac. TRE, de 18-10-2018, Cristina Dá Mesquita, Proc. 3870/17.0T8FNC-A.E1:
I - Sempre que o juiz pretenda conhecer, no despacho saneador, de uma exceção perentória ou de algum pedido, deverá convocar audiência prévia para os efeitos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do CPC, com vista a assegurar o exercício do contraditório.II - Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.II. Fora destes apertados limites que consentirão a dispensa da audiência prévia, a sua não realização terá como inevitável consequência a verificação de uma nulidade processual, por prática de ato não permitido por lei com influência no exame ou decisão da causa, enquadrável no artigo 195.º do CPC.
Assim sendo, deve concluir-se que as conclusões atinentes a esta questão são procedentes.
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o acórdão padece de algumas confusões que deveriam ter sido evitadas.
b) O caso que a RE decidiu é muito simples: no saneador-sentença, o tribunal de 1.ª instância dispensou a realização da audiência prévia; a RE entendeu -- aliás bem -- que essa dispensa não era justificada.
A RE entende que "o despacho atinente [é] atingido pela nulidade, nos termos preconizados pelo artigo 195.º do CPC". Trata-se de uma afirmação equivocada.
A nulidade processual referida no art. 195.º CPC é insusceptível de ser aplicada ao conteúdo de uma decisão. É, aliás, por isso, que houve a necessidade de distinguir entre a nulidade processual do art. 195.º CPC (nulidade relativa â tramitação processual) e as nulidades da sentença previstas no art. 615.º, n.º 1, CPC (nulidades respeitantes ao conteúdo de um acto processual, in casu a sentença). A razão é só uma: as nulidades da sentença respeitam ao conteúdo do acto e, por isso, nunca podem ser abrangidas pela nulidade regulada no art. 195.º CPC, que é uma nulidade relativa à tramitação processual (para maiores desenvolvimentos clicar aqui).
Posto isto, a conclusão impõe-se: não é aceitável misturar a nulidade processual do art. 195.º CPC com o conteúdo -- ainda que ilegal -- de uma decisão. Uma decisão ilegal -- mesmo aquela que dispensa indevidamente a realização da audiência prévia -- nunca é uma decisão nula, muito menos segundo o critério do art. 195.º CPC.
Aliás, a orientação da RE esquece a lição perene de Alberto dos Reis:
"A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 507).
c) Perante isto, a pergunta que importa colocar é a seguinte: o saneador-sentença proferido pela 1.ª instância é uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC) e, por isso, uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC)?
A resposta é a seguinte: o saneador-sentença não é uma decisão-surpresa, porque, de caso pensado, a 1.ª instância dispensou a realização da audiência prévia. Uma situação é aquela em que o tribunal profere uma decisão sem que antes tenha ouvido as partes, outra completamente diferente è aquela em que o tribunal decide -- erradamente -- que não tem de ouvir as partes: no primeiro caso há uma decisão-surpresa, no segundo uma decisão ilegal.
d) Em suma: o saneador-sentença proferido pela 1.ª instância é uma decisão ilegal, não uma decisão nula, porque não é subsumível a nenhuma das situações do art. 615.º, n.º 1, CPC, nem, muito menos, uma decisão que é "atingida" pela nulidade do art. 195.º CPC.
MTS
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