"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/05/2022

Jurisprudência 2021 (201)

 

Recurso de revisão;
improcedência; recurso

 

1. O sumário de STJ 14/10/2021 (32/14.1T8PVL-A.G1.S1) é o seguinte:

I - O que distingue, uma decisão de indeferimento liminar de uma decisão que após, assegurado o contraditório da parte contrária, conhece do mérito do pedido deduzido, é o facto de na primeira a decisão ser tomada sem audição da parte contrária e a segunda ser tomada após ambas as partes terem tido oportunidade para se pronunciar sobre o mérito da pretensão formulada pelo demandante.

II - Uma decisão que num recurso de revisão de sentença, na fase prevista no art. 700.º, n.º 1, do CPC, julga improcedente o recurso, não equivale a um indeferimento liminar, uma vez que é proferida após audição do recorrido.

III - Daí que, quando essa decisão tenha sido proferida em 1.ª instância pelo tribunal da Relação, a mesma não admita recurso de revista, quando o processo tenha um valor inferior à alçada daquele Tribunal.

IV - Essa irrecorribilidade não viola qualquer parâmetro constitucional, designadamente a exigência de um processo justo e equitativo.

 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I – Relatório

[...] Foi proferida pelo Relator decisão de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:

Estamos perante um recurso de revisão regulado nos artigos 696.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Dispõe o artigo 697.º, n.º 6, que as decisões proferidas no processo de revisão admitem os recursos ordinários a que estariam originariamente sujeitas no decurso da ação em que foi proferida a sentença a rever.

Neste caso a decisão recorrida é um acórdão, proferido, em conferência, pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Ora, uma decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em regra, só é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça se tiver um valor superior ao da sua alçada (artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), ou seja, superior a € 30.000,00, o que não é o caso.

Alegam os Recorrentes que, apesar de não ter esse valor, o acórdão da Relação de Guimarães é recorrível, porque o mesmo é equivalente a um despacho de indeferimento liminar de uma petição inicial, os quais são sempre recorríveis, nos termos do artigo 629.º, n.º 3, c), do Código de Processo Civil.

A razão desta recorribilidade excecional reside no receio de poder estar em causa uma denegação básica de justiça, ao recusar-se, sem sequer ouvir a parte contrária, a tramitação de uma ação judicial.

Invocam, como apoio, a opinião de Amâncio Ferreira e de Francisco Lucas Martins, os quais efetivamente sustentam, com total pertinência, que o despacho de indeferimento liminar a que alude o artigo 699.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é equivalente a um despacho de indeferimento liminar de uma qualquer petição inicial, pelo que, nos termos do artigo 629.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, é passível de recurso para o tribunal hierarquicamente superior, neste caso, para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que a decisão é do Tribunal da Relação.

Todavia o acórdão recorrido, no presente caso, não corresponde a uma confirmação do despacho de indeferimento liminar referido no artigo 699.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sim da decisão de conhecimento do mérito do fundamento da revisão, prevista no artigo 700.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tal como a própria decisão, confirmada pelo acórdão recorrido, assim o enquadrou.

Na verdade, relembre-se, como consta do relatório do presente acórdão, que após a propositura do recurso de revisão pelos Recorrentes (equivalente a uma petição inicial), o despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial ..., foi de admissão do recurso, nos termos do artigo 699.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e não do seu indeferimento liminar.

Por isso, os Recorridos foram citados para contestar, tendo dois deles exercido o contraditório.

Terminada a fase de articulados foi proferida a decisão a que se refere o artigo 700.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – o tribunal, logo em seguida à resposta do recorrido ou ao termo do prazo respetivo, conhece do fundamento da revisão.

É esta a decisão que foi confirmada pelo acórdão recorrido, em conferência, e ela não é uma decisão de indeferimento liminar, mas sim uma decisão que julgou improcedente o recurso de revisão, conhecendo do mérito do seu fundamento, após a parte contrária já ter exercido o contraditório.

Note-se que, apesar do despacho de admissão liminar, da citação dos Recorridos e da apresentação da contestação por alguns deles ter ocorrido num tribunal que veio a ser julgado incompetente, isso não determinou a invalidade deste processado, uma vez que ele foi aproveitado, nos termos do artigo 99.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, dado que os Recorrentes assim o requereram, tendo o processo prosseguido, já na fase prevista no artigo 700.º do Código de Processo Civil, no tribunal competente – o Tribunal da Relação de Guimarães.

O que distingue, uma decisão de indeferimento liminar de uma decisão que após, assegurado o contraditório da parte contrária, conhece do mérito do pedido deduzido, é o facto de na primeira a decisão ser tomada sem audição da parte contrária e a segunda ser tomada após ambas as partes terem tido oportunidade para se pronunciar sobre o mérito da pretensão formulada pelo demandante.

Não estando, nós perante recurso de uma decisão que tenha indeferido liminarmente a petição do recurso de revisão, a revista para o Supremo Tribunal de Justiça só é admissível se a ação tivesse um valor superior à alçada do Tribunal da Relação de Guimarães.

Como não o tem, o recurso não pode ser admitido.

Alegam os Recorrentes que a não admissão deste recurso violaria dispositivos constitucionais.

Note-se que a presente decisão não nega o acesso dos Recorrentes a uma decisão jurisdicional. Os Recorrentes já tiveram acesso ao Tribunal da Relação de Guimarães que, julgando, em 1.ª instância, julgou improcedente a sua pretensão.

O que esta decisão lhes nega, é o direito a recorrerem do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, vedando-lhes, pois, o direito ao recurso, nos termos previstos no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Parafraseando abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o tema, constata-se que a Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal em processo civil.

Impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional – artigo 210.º), terá de admitir-se que o legislador ordinário não poderá suprimir radicalmente os tribunais de recurso e os próprios recursos.

Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões. O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afetar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.

Daí que nada impeça o legislador ordinário de aprovar um regime restritivo de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, obstando a que todas as decisões dos tribunais das Relações sejam passíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, adotando, como é o caso, um critério, tendo por base o valor da causa.

Por este motivo, esta decisão, na medida em que não admite o recurso de revista, não ofende qualquer direito constitucional. [...]

II – A inadmissibilidade do recurso

Os Recorrentes discordam da decisão reclamada, defendendo a admissibilidade do recurso de revista, pelas seguintes razões [...]:

- uma das questões que foi suscitada à decisão do Tribunal da Relação de Guimarães foi a questão do valor do recurso, uma vez que os recorrentes entendem que este é diferente do valor da ação, pelo que, em obediência ao disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, o recurso sempre seria admissível;

- o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães em causa sempre seria recorrível, independentemente do valor da ação, porquanto equivale a um despacho de indeferimento liminar da petição inicial, e estes despachos são sempre recorríveis, nos termos do artigo 629.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil;

- o acórdão da Relação de Guimarães em causa foi produzido em 1ª Instância e, assim sendo, é inconcebível que não tenha recurso, sob pena de se violarem normas constitucionais.

Quanto à primeira questão, se é verdade que os Recorrentes, no recurso de revisão, suscitaram a questão do valor do recurso de revisão, a qual foi decidida pelo acórdão recorrido do Tribunal da Relação, no recurso de revista que interpuseram desse acórdão, conforme resulta da leitura das conclusões das alegações apresentadas, não impugnaram essa decisão, pelo que a mesma não integra o objeto do recurso de revista. Por essa razão não é aplicável a este recurso de revista o disposto no artigo 629.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil.

Quanto à segunda questão, conforme se explica na decisão reclamada, o acórdão recorrido que confirmou a decisão singular proferida pelo Desembargador Relator, não corresponde a uma confirmação de um despacho de indeferimento liminar referido no artigo 699.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sim a uma decisão de conhecimento do mérito do fundamento da revisão, prevista no artigo 700.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tal como a própria decisão, confirmada pelo acórdão recorrido, assim o enquadrou.

Não estando nós perante uma decisão proferida nos termos previstos no artigo 699.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas sim perante uma decisão proferida numa fase mais avançada da tramitação do recurso de revisão, em que já intervieram ambas as partes (artigo 700.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), já não se aplica a correspondência a um indeferimento liminar, pertinentemente sustentada por Amâncio Ferreira, e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, nas obras citadas pelos Recorrentes, não havendo, por isso, lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 629.º n.º 3, c), do Código de Processo Civil.

Finalmente, no que respeita à recorribilidade das decisões proferidas em 1.ª instância pelo Tribunal da Relação, como se explica na decisão reclamada, não é um imperativo constitucional que todas as decisões proferidas em processo civil em primeira instância tenham um grau de recurso, podendo o legislador limitar a recorribilidade das decisões judiciais. E fá-lo, habitualmente, em razão do valor da ação, estabelecendo que, dentro de determinados valores, que constituem a alçada das diferentes categorias de tribunais, estes julguem, em regra, sem que haja direito a recurso, salvo em determinadas situações, excecionalmente previstas na lei (v.g. o artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Daí que a decisão de um Tribunal da Relação, de não admissão de um recurso de revisão cuja ação a rever tinha um valor inferior ao da alçada daquele tribunal, não admita recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sem que isso infrinja qualquer disposição constitucional, designadamente, o princípio do processo equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, como melhor se explica na decisão reclamada, em consonância com a posição reiterada do Tribunal Constitucional.

Por estas razões, deve a reclamação apresentada ser indeferida, mantendo-se a decisão reclamada."

[MTS]