"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/05/2022

Jurisprudência 2021 (190)


Sigilo profissional; sigilo bancário;
dispensa


1. O sumário de RL 23/9/2021 (1172/21.6T8AMD.L1-2) é o seguinte:

I - Cabe ao juiz do processo onde é deduzida a escusa com invocação do dever de sigilo profissional - incluindo, como sucede nos presentes autos, o do competente Juízo para o qual foi remetido o processo de inventário tramitado no cartório notarial - aferir da sua legitimidade, mas também, evidentemente, da própria necessidade de despoletar o incidente de dispensa de sigilo, nos termos conjugados dos artigos 417.º do CPC e 135.º do CPP.

II - Essa recusa por parte da entidade chamada a colaborar deve ser inequívoca e definitiva, não se justificando desencadear um tal incidente quando até existe ou, pelo menos, ainda não se arredou a hipótese de, no seguimento de notificação nesse sentido, ser obtida autorização para aquele efeito, designadamente junto das partes, titulares de contas bancárias e certificados de aforro cuja existência se está a averiguar, em incidente de reclamação contra a relação de bens.

III - Para que possa ser ordenada a prestação da colaboração com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.

IV - Assim acontece no processo de inventário para separação de meações dos interessados em que foi apresentada reclamação contra a relação de bens suscitando a falta de relacionação de saldos de contas bancárias, sendo factos relevantes a apurar os atinentes à existência de contas da titularidade das partes cujos saldos devam ser considerados como bens comuns do casal à data da instauração da ação de divórcio (cf. art. 1789.º do CC), até porque, mesmo perante junções documentais que as partes possam efetuar, comprovando a existência de certas contas, sempre importará uma demonstração cabal de que outras contas não existiam.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Preceitua o art. 417.º do CPC, subsidiariamente aplicável nos autos (cf. art. 82.º do RJPI), com a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, que:

“1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:

(…) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.

Em face da remissão feita no citado n.º 4 do art. 417.º do CPC, importa atentar no que a este respeito se encontra consagrado no Código de Processo Penal, mormente no art. 135.º, que tem o seguinte teor:

“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”.

Sobre a forma como estes preceitos devem ser aplicados, com as devidas adaptações, no processo de inventário, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 22-05-2017, no processo n.º 271/13.2TMPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt (site em que podem ser consultados os demais acórdãos adiante citados), aí se explicando, conforme consta do respetivo sumário, que:

I - O Regime Jurídico do Processo de Inventário veio instituir um “sistema mitigado”, na medida em que se atribuiu competência ao Notário para tramitar e instruir o processo, que corre os seus termos no Cartório Notarial, atribuindo competência ao juiz para intervir no processo em situações pontuais e expressamente previstas na lei, reservando-se o direito de ação judicial relativamente às questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário e devem ser decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado (art. 3º e art. 16º RJPI).

(…) IV - Constitui matéria da competência do Notário solicitar as informações bancárias requeridas pelo cabeça-de-casal e notificar o titular da conta para as prestar ou notificar para autorizar que as instituições bancárias as prestem, ao abrigo do disposto no art.27º/1 RJPI.

V - Perante a escusa das entidades bancárias em fornecer tais informações, pelo Notário ou a requerimento das partes, deve o processo ser remetido ao juiz competente, nos termos do art. 3º RJPI, para apreciar da legitimidade da escusa e para promover o incidente de dispensa de sigilo bancário, nos termos das disposições conjugadas do art. 16º/1, art. 417º CPC e art. 135ºCPP, por remissão do art. 82º RJPI.

Portanto, cabe ao juiz do processo onde é deduzida a escusa com invocação do dever de sigilo profissional - incluindo, como sucede nos presentes autos, o do competente Juízo para o qual foi remetido o processo de inventário tramitado no cartório notarial - aferir da sua legitimidade, mas também, evidentemente, da própria necessidade de despoletar o incidente de dispensa de sigilo.

Essa recusa por parte da entidade chamada a colaborar deve ser, por razões óbvias, inequívoca e definitiva, não se justificando desencadear um incidente nos termos das citadas disposições legais quando até existe ou, pelo menos, ainda não se arredou a hipótese de, no seguimento de notificação nesse sentido, ser obtida autorização para aquele efeito, designadamente junto das partes, titulares das contas bancárias e dos certificados de aforro cuja existência se está a averiguar. Neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 12-09-2011, no processo n.º 3553/06.6TJVNF-D.P1, em que, apesar de se reconhecer que a diligência ordenada violava o dever de segredo bancário imposto à entidade bancária, e que se impunha, assim, suscitar o incidente de dispensa de segredo bancário, junto do Tribunal da Relação, conforme solicitado pela requerente do inventário e ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do CPP, se considerou que, como diligência prévia, devia o tribunal notificar expressamente o cabeça-de-casal no sentido de informar se figurava como titular da conta, para prestar a autorização necessária e, só na falta da autorização, devia promover-se o incidente de dispensa de segredo bancário, com oportuna remessa do processado do incidente, ao Tribunal da Relação. Na mesma linha de pensamento, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 10-03-2016, no processo n.º 42/16.4T8FAF-A.G1, também disponível em www.dgsi.pt, como se alcança do respetivo sumário: “A procedência do incidente a que se referem os artigos 417.º n.º 4 CPC e 135.º n.º 3 CPP, pressupõe, para além do mais, que a entidade interpelada se recusou a prestar a informação que lhe foi pedida.”

Transpondo estas considerações para o presente processo, não se percebe que, em face da expressa autorização por parte do Requerido (devidamente patrocinado por mandatário constituído, conforme procuração junta aos autos) à prestação da informação em causa pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública IGCP, E.P.E., não tenha a Sr.ª Notária determinado que se insistisse pela satisfação do solicitado com a remessa dos elementos necessários.

Portanto, neste particular, caberá ao Cartório Notarial diligenciar nesse sentido, não se podendo, de modo algum, considerar, nos presentes autos, que exista uma cabal e definitiva recusa por parte do IGCP à prestação da informação com fundamento no respeito pelo sigilo profissional, a carecer de dispensa por decisão judicial, quando as próprias partes - de forma expressa - anuíram a que tal informação fosse prestada.

Quanto à informação solicitada junto do Banco de Portugal, não se discute que, conforme referido na comunicação de 20-07-2020, são aplicáveis os artigos 78.º e ss. do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31-12, atinentes ao segredo profissional, preceituando o art. 78.º, sob a epígrafe “Dever de segredo”, que:

“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços”.

O sigilo bancário encontra-se assim consagrado na lei para benefício dos cidadãos clientes diretos dos bancos, designadamente a proteção do seu bom nome, da sua reputação e reserva da vida privada, mas também em benefício de terceiros, que podem ser vistos como clientes indiretos (clientes da atividade, não da instituição), e ainda em prol da própria atividade bancária, na medida em que os valores da confiança e da discrição são elementos basilares e indispensáveis ao normal funcionamento das instituições bancárias. [...]

Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo bancário, é claro que a quebra do mesmo não poderá ser determinada sem uma criteriosa avaliação da sua necessidade e proporcionalidade, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção. Assim, para que possa ser ordenada a prestação da colaboração (determinada no quadro da administração da justiça) com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos legais que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.

Nesta linha de pensamento e a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 29-11-2016, proferido no processo n.º 2050/13.8TVLSB-A.L1-1, em que se salienta resultar “dos normativos citados que a dispensa do sigilo profissional é desde logo uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos; por outro lado, que ela apenas se justifica se for necessária (por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos) e proporcional (quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo, num balanceamento dos interesses em conflito que deverá compor entre eles uma concordância prática entre eles, tendo como limite referencial o núcleo essencial de todos esses interesses”.

Veja-se ainda a decisão sumária da Relação de Coimbra de 10-03-2015, no processo n.º 561/08.6TBTND-A.C1, cujo sumário se cita, pelo seu interesse: “I - O segredo bancário não tem carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante. II - Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes. III - O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.”

Destaque também para o acórdão da Relação de Guimarães de 31-10-2019, proferido no processo n.º 106/18.0T8MAC-A.G1, que, numa situação com alguma proximidade com a dos autos, entendeu, conforme se refere no respetivo sumário, que: “I - A procedência do incidente de levantamento/quebra de sigilo bancário pressupõe, para além do mais, a legitimidade da recusa de cooperação das entidades bancárias com o Tribunal da causa; II - Em processo de inventário para partilha do património comum do casal subsequente à dissolução do casamento por divórcio, tendo sido a comunhão geral o regime de bens do casamento, o segredo bancário é inoponível ao ex-cônjuge do titular das contas bancárias que pretende saber qual o saldo das mesmas, com referência à data a partir da qual cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges, para efeitos de apuramento do património comum.”

Vejamos então se, no caso sub judice, se mostra verificado o primeiro critério a considerar, ou seja, o da necessidade da informação solicitada para o apuramento da verdade e da justa composição do litígio quanto aos factos de que é lícito à Sr.ª Notária (e, sendo caso disso, ao Tribunal) conhecer para decisão da reclamação contra a relação de bens – cf. artigos 32.º a 36.º do RJPI. [...]

Da análise dos elementos constantes dos autos, cuja tramitação se procurou sintetizar supra, verifica-se que a informação pretendida se destina precisamente à prova de tais factos, que reputamos essenciais à boa decisão do incidente de reclamação contra a relação de bens - até porque, mesmo perante junções documentais que as partes possam efetuar, comprovando a existência de certas contas, sempre importará uma demonstração cabal de que outras contas não existiam -, tudo isto para que a finalidade do inventário possa ser plenamente alcançada. Portanto, o acesso à informação em causa mostra-se, sem dúvida, necessário para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

Por outro lado, ponderados os interesses conflituantes aqui em causa, assume clara preponderância o dever de cooperação para que tais desideratos sejam alcançados, não se mostrando desproporcional a restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos decorrente da quebra do sigilo bancário nos moldes referidos (cf. art. 18.º, n.º 2, da CRP). Na verdade, a não ser satisfeito o solicitado pela Sr.ª Notária, poderão ficar por apurar factos relevantes para a correta decisão do incidente suscitado no processo de inventário, com prejuízo para a boa administração da Justiça, o que é inaceitável, na medida em que a informação pretendida não serve um propósito de devassa da vida económica e financeira das partes, mas apenas se destina à identificação segura do património conjugal a partilhar.

Assim, impõe-se concluir, sem necessidade de mais considerações, estar justificada a quebra do sigilo profissional invocado (legitimamente) pelo Banco de Portugal, pelo que haverá de ser prestada a informação solicitada pela Sr.ª Notária, com referência à data a partir da qual cessaram as relações patrimoniais entre as partes, para efeitos de apuramento do património comum (cf. art. 1789.º do CC)."

[MTS]