"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/05/2022

Jurisprudência 2021 (195)


Prova;
valor extraprocessual


1. O sumário de RP 23/9/2021 (12138/19.6T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - Na falta de prova vinculada, o juiz decide a matéria de facto da ação segundo o princípio da livre apreciação, podendo atender a provas produzidas noutros processos. Porém, não só uma acusação pública proferida num processo de inquérito não constitui um meio de prova, como também há que observar os requisitos previstos no art.º 421º do Código de II - Processo Civil quanto ao valor extraprocessual das provas:

a- É suposto que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidos os meios de prova.
b- É suposto que a parte tenha tido a possibilidade no primeiro processo de exercer o contraditório quanto à admissão e produção daqueles meios de prova.
c- É suposto que o regime de produção dessas provas no primeiro processo ofereça às partes garantias pelo menos iguais às do segundo.

d- É suposto, ainda, que não tenha sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar.

III - Se faltar o terceiro requisito, ou seja, se as garantias oferecidas no primeiro processo forem inferiores às oferecidas no segundo, a prova produzida no primeiro processo pode ser aproveitada e ser feita valer em termos probatórios apenas como princípio de prova.

IV - Se falhar algum dos outros requisitos (nomeadamente a identidade das partes em ambos os processos), não podem tais provas ser objeto de qualquer aproveitamento.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Radicando a sentença, quanto à matéria de facto aqui impugnada, além de documentos, nos depoimentos de O…, P…, Q…, M…, D… e declarações do embargante, desmerecendo o depoimento de L…, foram integralmente ouvidas as gravações das prestações destas testemunhas e daqueles cujas passagens de depoimentos a recorrente indicou, ao abrigo do art.º 640º, nº 2, al. b), in limine, do Código de Processo Civil.

A ideia geral que fica, depois de ouvidos aqueles depoimentos, da sua conjugação entre si e com os documentos atendíveis juntos ao processo, maxime, com os documentos clínicos juntos como requerimento inicial de embargos de pág.s 786 e sg.s do histórico do processo electrónico[5], é a de que a D…, com a conivência de outra ou outras pessoas, se aproveitou da deficiência intelectual do embargante --- quem conhecia do estabelecimento de café onde trabalhava --- para o envolver num esquema de apropriação de três veículos (marcas Mercedes, Renault e Audi), em curto espaço de tempo, junto de determinados postos de venda, entre eles o automóvel de matrícula ..-RV-.. (Renault), à venda no estabelecimento da F…, Lda., em Marco de Canavezes.

Não resulta de qualquer prova que alguma vez o embargante tenha estado na posse de qualquer dos veículos para além do momento que os retirou cada um deles dos respetivos postos de venda. O Renault (e a respetiva chave de ignição) foi imediatamente deixado ao alcance de terceiro num posto de abastecimento de combustíveis, por indicação da D….

Na matéria da avaliação da capacidade intelectual do embargante pesam sobretudo a informação clínica constante dos autos e as referências que foram feitas durante a prestação da prova por parte das pessoas mais próximas, designadamente o seu pai, com quem ele vive desde criança, a testemunha P… que o conhece há cerca de 8 ou 9 anos, sendo ela a empregadora daquele progenitor num Café que o C… também frequenta, e Q… que o conhece desde criança.

Nesta matéria, a imediação faculta à 1ª instância uma perceção mais completa do que aquela que está ao alcance da Relação. No entanto, a forma como o C… respondeu às perguntas que lhe foram feitas e as respostas que deu (e não deu, referindo bastas vezes “não lhe sei responder”, “não lhe sei dizer” e “não sei explicar”) a perguntas relacionadas com os factos, mas que exigem algum raciocínio, viabilizam a convicção de que tem dificuldade de compreensão e interpretação dos acontecimentos e de avaliação das suas consequências, para além de que é uma pessoa facilmente sugestionável e influenciável, não obstante parecer ter uma memória razoável relativamente aos factos que foi levado a praticar por convocação e influência da D….

O défice intelectual é facilmente percecionado pelas pessoas que convivem com o C…, e não podia deixar de ser percetível à D…, que se aproveitou dele para o abordar no sentido de praticar com ela os atos preparatórios da aquisição do veículo Renault e a própria compra, dirigindo-se com ele aos vários locais e ao stand de vendas, em Marco de Canavezes, as duas vezes que foi necessário, uma para assinar os papéis e a outra para levantar o automóvel.

O embargante referiu que não leu, não lhe leram nem lhe explicaram o sentido dos documentos que assinou e, quando mais tarde, recebeu um telefonema de uma senhora (a testemunha N…, funcionária administrativa da embargada, para confirmar a realidade do empréstimo) cujo assunto era a compra daquele veículo, aquela apenas lhe perguntou o seu nome e qual era o modelo e a cor do carro que comprou, ao que respondeu sem problemas.

Com toda a evidência, o embargante, por causa do seu défice intelectual, nunca chegou a entender que, apesar de ficar sem a posse do veículo, ficava sem ele e obrigado a pagar o crédito contraído, o seu montante total, a existência de prestações, o valor de cada uma delas, o tempo necessário à amortização completa e as consequências do não pagamento.

Nenhuma pessoa normal compra três automóveis em escassos dias ou semanas, sem necessitar deles nem os saber negociar --- o C… dispunha diariamente do veículo do pai para se deslocar de e para o trabalho ---, entrega-os imediatamente a terceiros e assume a obrigação de os pagar totalmente em prestações e suportar os riscos da mora, tendo apenas por rendimento uma remuneração mensal do trabalho de padeiro equivalente à Remuneração Mínima Mensal Garantida que, aliás, entrega todos os meses ao pai, de quem também quer esconder (mais uma vez por influência da D…) os negócios realizados. Nem soube o embargante entender o que não seria nem foi mais do que uma promessa feita pela D… de pagamento de € 500,00 por cada veículo que fossem buscar. Não compreendeu o risco de não receber esses valores (e que efetivamente nunca recebeu) nem o fosso financeiro abissal que existe entre os prometidos € 1.500,00 e o custo dos três veículos que se obrigou a pagar sem qualquer outra contrapartida ou vantagem económica.

É certo que o C… soube dizer que € 30.000,00 é um valor muito elevado para o Renault, situando o valor correto em € 10.000,00. Mas também entendeu que € 15.000,00 continuava a ser demasiado elevado, sem que, no entanto, se recordasse que foi esse o preço contratado na sua compra.

A testemunha P… prestou um contributo precioso na descoberta dos factos, em grande colaboração com o seu empregado, pai do C…. Descreveu os contactos que efetuou, de modo seguro e rigoroso, não deixando dúvida razoável quanto a isso e aos seus resultados lógicos; aliás sem que tivesse sido contrariada por outras provas e em sintonia com o depoimento do progenitor do C…, a pessoa com quem aquele vive e que, juntamente com o cônjuge, tratam do filho desde que nasceu, gerindo a sua vida em geral e todo o dinheiro que ele ganha na panificadora onde trabalha, dispensando-lhe pequenas quantias para gastar no dia-a-dia, nos cafés que frequenta. O C… quase não se afasta da zona onde nasceu, sem amigos e muito dependente dos pais. A testemunha Q…, pai de duas crianças que foram companheiras de escola do C…, qualificou-o de “atrasadinho” e chegou mesmo a dizer que julga que ele nunca foi à cidade do Porto ou que apenas terá ido recentemente, com os pais, a uma consulta médica a Vila Nova de Gaia.

A D…, quanto ao essencial, escudou-se no direito ao silêncio por poder ser incriminada com o que visse a dizer sob juramento e dever de verdade e negou, contra a evidência referida pelas testemunhas que melhor o conhecem, em sintonia com os documentos clínicos, que fosse percetível qualquer défice intelectual na pessoa do C….

Assim, a testemunha L…, o comercial da F…, Lda. parece faltar também à verdade quando refere não se ter apercebido da deficiência intelectual do embargante e quando diz que lhe explicou os termos dos contratos, designadamente que ficou ciente deles, principalmente no que respeita a valores do preço e do crédito, das prestações e das obrigações que o embargante assumiu.

Não basta dizer, é necessário convencer.

Finalmente, importa justificar a desconsideração que fazemos dos documentos que constituem depoimentos extraídos dos processos de inquérito nºs 346/18.1GAVCD (pág.s 439 e seg.s 464 a 449) e 699/18.1GBPNF (pág.s 505 a 510), assim como da acusação que foi proferida naqueles autos.

Dispõe o art.º 421º do Código de Processo Civil: “1- Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.° 3 do artigo 355.° do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.

Desde logo a peça acusatória não é um meio de prova. [---]

Quanto ao mais, tem sido entendimento comum na doutrina --- que a jurisprudência também segue --- que a prova testemunhal (e pericial) produzida num processo só releva para outro processo se ocorrerem quatro fundamentos cumulativos:

- Em primeiro lugar, é suposto que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidos os ditos meios de prova.
- Em segundo lugar, é suposto que a parte tenha tido a possibilidade no primeiro processo de exercer o contraditório quanto à admissão e produção daquele meio de prova. [---]
- Em terceiro lugar, é suposto que o regime de produção dessas provas no primeiro processo ofereça às partes garantias pelo menos iguais às do segundo.
- Em quarto lugar, é suposto, ainda, que não tenha sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar. [---]

Se faltar o terceiro requisito, ou seja, se as garantias oferecidas no primeiro processo forem inferiores às oferecidas no segundo, a prova produzida no primeiro processo pode ser aproveitada e ser feita valer em termos probatórios apenas como princípio de prova, como decorre do n.º 1 do citado artigo 421º. Se falhar algum dos outros requisitos (nomeadamente, a identidade das partes em ambos os processos), não podem tais provas ser objeto de qualquer aproveitamento [---].

Os depoimentos certificados foram extraídos de um processo de inquérito, uma fase processual de investigação em que vigora o segredo de justiça, não constando que tivessem sido submetidos a “audiência contraditória”, para além de que não consta que a embargada ali tivesse intervindo em qualquer qualidade processual.

Com efeito, não estão reunidos os pressupostos necessários a que sejam atendidos para efeitos de prova, neste processo, os depoimentos certificados e extraídos de processos de inquérito criminal."

[MTS]