"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/05/2022

Jurisprudência 2021 (202)


Arresto; 
reclamação de créditos*


1. O sumário de RL 7/10/2021 (3122/19.0 T8ALM-A.L1-6) é o seguinte:

Não procede a declaração de nulidade da citação do Ministério Público para efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC e o indeferimento da citação do Estado Português para o mesmo efeito, com o fundamento de que, sendo o Estado titular de um título executivo, não é de aceitar a reclamação do crédito por o arresto incidente sobre o bem penhorado não constituir garantia real.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"RELATÓRIO.

Na execução em que é exequente Banco …, SA e executados V… e M… para pagamento de quantia certa no montante de 127 546,24 euros, em que foi apresentada, como título executivo, uma escritura de mútuo com hipoteca incidente sobre um imóvel, foi penhorado este imóvel e, após a citação dos executados e da consulta ao registo predial do imóvel, foi citado o Ministério Público para, nos termos dos artigos 786º e 788º do CPC, reclamar crédito com garantia real sobre o imóvel penhorado, tendo o citando juntado certidão de processo judicial em que era requerente o Ministério Público e requerido o ora executado e em que foi declarado o arresto sobre o referido imóvel e, após serem notificados o exequente, os executados e o Ministério Público para se pronunciarem sobre a modalidade de venda do imóvel, veio o Ministério Público apresentar requerimento para ser efectuada citação do Estado Português nos termos e para os efeitos dos artigos 786º e 788º do CPC e pedindo a nulidade da citação anterior, por ter sido efectuada no Ministério Público que é apenas representante do Estado.

Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho:

“Compulsados os autos no seguimento do requerimento com a ref.ª 23934094, não vislumbro que o arresto em causa tenha sido convertido em penhora.

Temos, assim, que o registo do arresto a favor do Ministério Público, sobre o prédio penhorado nos autos, mantém-se em vigor em face da certidão de teor de todas as descrições e inscrições em vigor relativa ao prédio em crise.

Ora, o arresto não constitui garantia de natureza real, nem a decisão que o decreta pode servir como título executivo em qualquer reclamação de créditos (a este respeito, leia-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2006, disponível em www.dgsi.pt).

Nestes termos, não constituindo o arresto garantia de natureza real, a citação levada a cabo pelo Sr. SE não tem qualquer cabimento em face do disposto no art.º 788.º n.º 1 do CPC, pelo que, embora com fundamentos distintos, julgo procedente a invocada nulidade e, consequentemente, dou sem efeito a citação com a ref.ª 23309593.

Em face do que antecede, inexistem motivos para ordenar a citação do Estado
Português, pelo que indefiro o requerido.

Sem custas.

*
Inconformado, o Estado Português representado pelo Ministério Público interpôs recurso [...]

ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

O despacho recorrido declarou nula a anterior citação do Ministério Público para os efeitos do artigo 788º do CPC e indeferiu a realização de uma citação do Estado Português com a mesma finalidade, o que fez com o fundamento de que não estão reunidos os requisitos legais para realizar a citação, por entender que o arresto não é uma garantia real exigida por esta norma legal para efeitos de reclamação de créditos.

Como requisitos legais para os credores poderem reclamar os seus créditos relativamente aos bens penhorados na execução, exige o artigo 788º do CPC que o crédito reclamado tenha por base um título executivo e que o credor goze de garantia real sobre os bens penhorados.

No presente caso, o Estado Português é titular de um direito de crédito sobre o executado no valor de 139 465,24 euros, conforme decisão proferida em processo crime pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitada em julgado em l5 de Fevereiro de 2018, que declarou este valor perdido a favor do Estado, por o mesmo constituir vantagem da actividade criminosa, ao abrigo dos artigos 1º, 7º e 12º nº1 da Lei 5/2002/de 11/1 (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económica/financeira).

Tem assim o Estado Português título executivo relativamente a este crédito, constituído pela decisão judicial que declarou o valor de 139 465,24 euros perdido a seu favor, integrando esta decisão a previsão do artigo 703º nº1 a) do CPC, que contempla como título executivo as sentença condenatórias, sendo certo que este título faculta ao Ministério Público o direito de intentar execução, como se prevê expressamente no nº5 do artigo 12º da Lei 5/2002.

Tal título executivo é a decisão judicial que definiu o seu crédito sobre o arguido ora executado, transitada em julgado em Fevereiro de 2018 e não a decisão que decretou o arresto (como se refere no despacho recorrido), já que esta última não define nenhum direito de crédito, decretando antes uma medida de conservação da garantia patrimonial.

Havendo título executivo, resta saber se existe uma garantia real conforme exigido pelo artigo 788º do CPC.

É discutida a questão de saber se o arresto constitui uma garantia real para efeito de reclamação de créditos em execução (contra, considerando o arresto uma mera providência cautelar de conservação da garantia patrimonial, ac, STJ 3/5/2007, p. 07B747 em www.dgsi.pt; a favor, considerando que o arresto constitui causa legítima de preferência de credores a que se refere o artigo 604º nº2 do CC, cuja enunciação não é taxativa e, como tal é uma garantia real, Amâncio Ferreira Curso de Processo de Execução, 2000, Pág. 222, Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª edição, pág. 13, Lebre de Freitas, Acção Executiva, 5ª ed., Pág. 310).

Poderá efectivamente ser discutível o efeito do arresto como garantia real quando o credor ainda não tem título executivo (cfr. ac. RL 10/11/2015, p. 6735/11, relativamente ao incidente do artigo 792º do CPC, em www.dgsi.pt) mas, possuindo título executivo, não há razão para o credor não poder reclamar o seu crédito e aproveitar a preferência conferida pelo arresto relativamente aos outros credores que não tenham garantia real anterior (cfr. P. Lima e A. Varela, CC Anotado, 4ª edição, pág, 639 e 640, em anotação ao artigo 622º).

Na verdade, “os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto” (nº 1 do artigo 622º do CC) e “ao arresto são extensivos, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora” (nº 2 do mesmo artigo), ou seja, tal como sucede com a penhora nos termos do artigo 819º do mesmo código, são inoponíveis ao arrestante os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens arrestados e, por força do artigo 822º nºs 1 e 2, aplicável ao arresto, o exequente adquire pelo arresto “(…) o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”, sendo que “tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”.

No presente caso, o crédito do Estado Português está baseado em título executivo e, tendo sido decretado arresto sobre o imóvel penhorado que lhe confere o direito de ser pago antes dos credores que não tenham garantia real anterior, haverá que considerar estarem verificados os dois requisitos do artigo 788º do CPC para a reclamação do seu crédito.

Por outro lado, no caso dos autos o arresto foi decretado ao abrigo do artigo 10º da Lei 5/2002, para garantir o pagamento do valor perdido a favor do Estado, fixado em 139 465,24 euros por sentença transitada em julgado, pelo que, à protecção conferida pelo arresto acima descrita, acresce o direito de o Estado declarar perdido a seu favor o bem arrestado ao abrigo do artigo 12º nº4 da Lei 5/2002, se o arguido não pagar voluntariamente o montante em dívida nos termos do nº3 deste artigo 12º.

Na situação em apreço o recorrente não alega nem prova que tenha sido proferido o despacho declarando perdido o bem arrestado ao abrigo do nº4 do artigo 12º da Lei 5/2002, não estando demonstrado que o imóvel dos autos foi declarado perdido a favor do Estado (caso em que a execução teria de ter sido intentada também contra o Estado na qualidade de dono do prédio onerado, nos termos do artigo 54º nº2 do CPC), pelo que, enquanto não for feita tal demonstração, nestes autos o direito que tem por base o título executivo consubstanciado na decisão do acórdão da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 15/02/2018, só poderá beneficiar de protecção mediante a reclamação do respectivo crédito no âmbito do artigo 788º do CPC.

Deste modo, procedem as alegações de recurso na parte em que se pede a revogação do despacho recorrido por ser improcedente o fundamento em assenta a respectiva decisão (inexistência de garantia real), havendo, porém, que tomar posição sobre a questão de apreciar da validade da citação já efectuada ao Ministério Público para reclamar o crédito e da necessidade de citar o Estado Português para este efeito, a ser submetida de novo à apreciação do tribunal recorrido.

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o arresto não pode ser qualificado como uma garantia real. 

Segundo o disposto no art. 622.º, n.º 1, CC, os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras próprias da penhora, isto é, de acordo com o disposto no art. 819.º CC. Desconhece-se que algum direito real de garantia produza o mesmo efeito. O que se sabe é que os direitos reais de garantia são dotados de sequela e, por isso, não produzem aquele efeito de ineficácia relativa. Logo, nem o arresto, nem a penhora podem ser qualificados como direitos reais de garantia.

Recorde-se ainda que o disposto no art. 752.º, n.º 1, CC (que estabelece que, se houver bens onerados com garantia real pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se por esses bens) só faz sentido se as garantias reais não tiverem a mesma natureza da penhora. Se as garantias reais tivessem a mesma natureza da penhora, o que então seria lógico seria que se dispensasse a penhora dos correspondentes bens, já que não teria sentido provocar duas vezes o mesmo efeito.

Quer dizer: se se impõe a penhora de bens onerados com garantias reais é porque se quer provocar no processo executivo um efeito distinto daquele que resulta daquelas garantias. Mais até: depois da penhora, a alienação dos bens onerados com as garantias reais fica sujeita, não ao regime da sequela, mas ao regime da inoponibilidade relativa estabelecida no art. 819.º CC. Isto demonstra que garantias reais e penhora (e, portanto, garantias reais e arresto) são coisas totalmente distintas.

Por fim, cabe referir que, se o arresto pudesse produzir directamente efeitos no processo executivo, não seria necessário estabelecer a convolação do arresto em penhora (art. 762.º CPC). Isto demonstra que o arresto, em si mesmo, não produz efeitos na execução.

b) No acórdão cita-se "P. Lima e A. Varela, CC Anotado, 4ª edição, pág, 639 e 640, em anotação ao artigo 622º", como corroborando que, "possuindo título executivo, não há razão para o credor não poder reclamar o seu crédito e aproveitar a preferência conferida pelo arresto relativamente aos outros credores que não tenham garantia real anterior". A verdade é que nos lugares citados nada conduz a esta conclusão.

MTS