"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/05/2022

Jurisprudência 2021 (206)


Reg. 1215/2012;
responsabilidade extracontratual; dano; lugar


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (26412/16.0T8LSB.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Não obstante o artigo 267º, § 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, fazer recair sobre o Supremo Tribunal, enquanto tribunal de última instância de recurso, o dever de proceder ao reenvio prejudicial sempre que se suscitem dúvidas sobre a interpretação de uma norma do Direito da União Europeia, essa obrigação deixa de existir, designadamente, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia já se tiver pronunciado, de forma firme e em caso análogo, sobre a questão a reenviar.

II. Constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia que, na fase da verificação da competência internacional, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não aprecia a admissibilidade nem a procedência da ação segundo as regras do direito nacional, nem está obrigado, em caso de contestação das alegações do demandante por parte do demandado, a proceder a uma produção de prova, cabendo-lhe apenas identificar os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência ao abrigo do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, devendo, para esse efeito, considerar assentes as alegações pertinentes do demandante quanto aos requisitos da responsabilidade extracontratual e, em nome da boa administração da justiça, subjacente ao dito regulamento, apreciar as objeções apresentadas pelo demandado.

III. De acordo com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares.

III. [sic] E segundo essa mesma jurisprudência aquela expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, reportando-se, antes, ao lugar onde o lesado direto alega ter sofrido um dano inicial e ao lugar onde os efeitos deste dano se manifestam concretamente, havendo necessidade, em alguns casos, de recorrer às « circunstâncias concretas» do processo para, numa apreciação global, complementar o critério da competência estabelecido no artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/2012, por forma a assegurar o cumprimento dos objetivos de proteção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes a esta regra.

IV. No caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, considerou o Tribunal de Justiça que o dano sofrido pelo adquirente final materializa-se no momento da compra desse veículo a um terceiro por um preço superior ao seu valor real e que, nestas circunstâncias concretas, o artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do « lugar onde ocorreu o facto danoso» é o tribunal do lugar da aquisição do veículo em causa pelo adquirente final.

V. Daí ter afirmado, no Acórdão 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C- 343/19, que «o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro».

VI. Invocando a Deco, no caso dos autos, a responsabilidade civil extracontratual das rés, como fundamento dos pedidos de indemnização por ela formulados em defesa dos consumidores portugueses que, em Portugal, adquiriram às rés veículos automóveis fabricados na Alemanha pela ré Volkswagen AG e nos quais esta introduziu uma aplicação informática que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, evidente se torna, à luz do artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/20 e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre esta disposição, serem os Tribunais Portugueses internacionalmente competentes para conhecer do presente litígio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Fundamentação de Direito

[...] o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com a questão de saber se os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para tramitar e julgar a presente ação.

Todavia, porque a resposta a dar a esta questão passa pela interpretação do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho nº 1215, de 12 de dezembro de 2012, importa abordar, previamente, a questão prévia

3.2.1. Da ausência de obrigação de reenvio prejudicial

O reenvio prejudicial, previsto no artigo 19º, nº 3, al. b) do Tratado da União Europeia (TUE) e no artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), é um mecanismo jurídico-processual que permite estabelecer uma cooperação jurisdicional entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e os tribunais nacionais, com vista a garantir a uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União.

Sempre que um tribunal nacional, chamado a julgar um litígio que envolva a aplicação de normas do Direito da União Europeia, tenha dúvidas sobre a interpretação e/ou aplicação dessas normas e que a decisão do TJUE sobre tais dúvidas se afigure indispensável para uma adequada resolução do caso, pode/deve o mesmo suspender a instância e reenviar as suas questões para o TJUE (reenvio prejudicial facultativo ou obrigatório) [---].

Mas se é certo que o disposto no artigo 267º, § 3, do TFUE, faz recair sobre o Supremo Tribunal, enquanto tribunal de última instância de recurso, o dever de proceder ao reenvio prejudicial sempre que se suscitem dúvidas sobre a interpretação de uma norma do Direito da União Europeia, a verdade é que esta obrigação de reenvio, por insusceptibilidade de recurso ordinário no direito interno, pode ser dispensada.

Com efeito, tal como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 26.11.2020 (processo nº 30060/15.3T8LSB.L3.S1) [---], «desde o Acórdão Cilfit [---] que o TJUE vem admitindo, de forma consistente, a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em determinadas situações, a saber:

1.ª) quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;

2.ª) quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;

3.ª) quando o tribunal nacional considere que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas [---].

Este entendimento tem sido reafirmado em sucessivos Acórdãos do TJUE [---]».

No caso dos autos estamos no âmbito de uma ação popular prevista nos arts. 1º e 12º, nº 2, da Lei nº 83/95, de 31 de agosto e art. 3º, al. g) da Lei nº 24/96, de 31 de julho ( LDC) interposta pela Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor - Deco contra Volkswagen AG, sociedade de direito alemão com sede em Berlim, Alemanha, que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis das marcas Volkswagen, …, …, entre outros; SEAT S.A., com sede em Martorell, Espanha, que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis da marca SEAT, entre outros; SIVA- Sociedade de Importação de Veículos, S.A, com sede em Vila Nova da Rainha, Portugal, que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente das marcas Volkswagen, … e … e SEAT Portugal Unipessoal, Ldª, com sede em Lisboa, Portugal, que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente da marca SEAT. [...]

E a este respeito diremos, desde logo, que se é certo não haver divergência entre as instâncias nem entre as partes quanto à aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial [---], a verdade é que a divergência registada quanto à interpretação da expressão «lugar onde ocorreu (…) o facto danoso» contida no nº 2 do referido artigo conduziu, no caso dos autos, a soluções diametralmente opostas.

Com efeito, o Tribunal de 1ª Instância, aderindo ao entendimento defendido pelas rés e suportado pelo parecer que juntaram aos autos e elaborado por José Luís da Cruz Vilaça e Rita Leandro Vasconcelos, considerou que o lugar onde ocorreu o dano é o lugar em que se verificou o evento que causou o dano, pelo que, no caso dos autos, o lugar relevante para efeitos jurisdicionais, é o lugar da montagem, nos veículos, do software que altera os dados relativos às emissões poluentes de gases NOx, sendo, por conseguinte, os Tribunais alemães os tribunais internacionalmente competentes para julgar a presente ação.

Diferente posição assumiu o Tribunal da Relação, que, acolhendo a tese defendida pela autora, sustentada pelo parecer que juntou aos autos e elaborado por Jorge Pegado Liz, entendeu que o caso dos autos apresenta paralelismo com o caso decidido, em sede de reenvio prejudicial, pelo TJEU no acórdão que proferiu em 09.07.2020, no processo Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C-343/19, pelo que, atento o efeito erga omnes desta decisão, não só não se justifica a formulação de um novo pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, como também se impõe respeitar a interpretação dada a esta norma pelo TJEU no sentido de que, « quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro».

Daí ter concluído pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar a presente ação uma vez que, nas circunstâncias dos autos, a aquisição dos veículos afetados ocorreu em Portugal.

Deste entendimento dissentem as recorrentes que, estribadas no parecer que constitui um aditamento ao 1º parecer, elaborado por José Luís da Cruz Vilaça e Rita Leandro Vasconcelos, na sequência da prolação do referido acórdão do TJEU, de 09.07.2020 sustentam, no essencial, que as diferenças entre o presente processo e o processo V... c. VW impedem que as conclusões do acórdão no processo C-343/19 sejam transpostas para o caso dos autos.

Consabido que, de harmonia com o disposto no art. 267º do TFUE, a interpretação do Direito da União é da competência exclusiva do TJUE e que, o facto do acórdão por ele proferido, neste contexto, vincular o tribunal nacional que suscitou a questão prejudicial e os tribunais de todos os demais Estados-Membros, não impede um tribunal nacional de, num outro processo principal, voltar a suscitar a mesma questão prejudicial sempre que entender que existem elementos novos que podem levar o TJUE a alterar o acórdão prejudicial já proferido sobre a mesma questão de direito nem impede este tribunal, se o entender adequado ou necessário, de modificar a sua jurisprudência [---], vejamos, então, se no caso dos autos, ante a jurisprudência já firmada pelo TJUE em matéria de competência, justifica-se a formulação de um novo pedido de decisão prejudicial.

3.2.1.1. Nesta matéria, enunciam os considerandos 15 e 16 do Regulamento nº 1215/2012 que:

«15. As regras de competência devem apresentar um elevado nível de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

16 O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. (…)».

Assim e com vista a prosseguir estes mesmos objetivos, no capítulo da «Competência» e na secção I, intitulada “Disposições gerais”, estabelece artigo 4º, nº1 deste Regulamento que «Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro».

E na secção II, denominada “Disposições especiais”, estipula o artigo 7º, deste mesmo Regulamento que «As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:

[…] 2. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».

Por outro lado, do Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), enuncia, no seu considerando 7 que «O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 200, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, (Bruxelas I) e com os instrumentos referentes à lei aplicável às obrigações contratuais»

E, sob a epígrafe «Concorrência desleal e atos que restrinjam a livre concorrência», estabelece no seu artigo 6º, nº 1 que «A lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de um ato de concorrência desleal é a lei do país em que as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados».

Resulta, assim, evidente do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, que, nos litígios relativos a obrigações extracontratuais, foi vontade do legislador europeu oferecer ao demandante um foro alternativo (o do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso) ao foro geral, previsto no artigo 4º, nº 1 e correspondente ao domicílio do demandado num Estado-Membro.

De salientar, desde logo, em conformidade com a jurisprudência firmada do TJUE, que, na medida em que de acordo como o considerando 34 do Regulamento nº 1215/2012, este regulamento revoga e substitui o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, que, por sua vez, substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 (doravante Convenção de Bruxelas), ambos relativos à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições destes instrumentos jurídicos, designadamente no que diz respeito à expressão « lugar onde ocorreu o facto ou poderá ocorrer o facto danoso » contida no seu artigo 5º, nº 3, vale também para o artigo 7º, nº 2 do Regulamento nº 1215/2012, por se tratarem de disposições equivalentes [cfr. Acórdão de 31 de maio de 2018, Nothartová, C-306/17 [---], nº 18 e Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 23 e jurisprudência aí referida].

Segundo a jurisprudência deste mesmo tribunal, esta regra de competência especial prevista nestes artigos baseia‑se na existência de um elemento de conexão particularmente estreito entre o litígio e o tribunal do lugar onde ocorreu ou possa ocorrer o facto danoso, que justifica uma atribuição de competência a esse tribunal por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo [cfr. Acórdãos de 5 de junho de 2014, Coty Germany, C‑360/12 [---], n.° 47, e de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C‑47/14 [---], n.° 73 e jurisprudência referida], já que, em matéria de responsabilidade extracontratual, normalmente, é o tribunal mais apto para decidir, nomeadamente, por razões de proximidade do litígio e de facilidade na recolha das provas [cfr. Acórdãos de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C-352/13 [---], n.° 40, e de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C-47/14 [---], n.° 74].

De sublinhar ainda, conforme tem sido reiteradamente declarado pelo TJUE na sua jurisprudência relativa a estas mesmas disposições, que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», refere‑se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares [cfr., em matéria de poluição, Acórdão de 30 de novembro de 1976, Bier, 21/76 [---], nºs 24 e 25; relativo a dano material decorrente de produto defeituoso, Acórdão de 16 de julho de 2009, Zuid-Chemie, C-189/08 [---], nº 23 em matéria de contrafação, Acórdão de 5 de junho de 2014, Coty Germany, C‑360/12 [---], n.° 46; em matéria de contrato de administrador de uma sociedade, Acórdão de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C‑47/14 [---], n.° 72; referente a dano consistente em acréscimos de custos pagos na compra de camiões , em razão de preços artificialmente elevados, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 25 e jurisprudência aí referida ].

Vale isto por dizer, na expressão do Advogado-Geral Manuel Camps Sánchez-Bordona [---], que «Quando o comportamento ilícito e as suas consequências se situam em Estados-Membros diferentes, o critério da competência judiciária desdobra-se, assumindo-se que, em matéria de responsabilidade extracontratual, ambos os lugares têm uma vinculação significativa com o litígio. Nestas situações, o demandante pode escolher entre as duas jurisdições no momento da propositura da sua ação».

Mas, a verdade é que situações existem em que se suscitam muitas dúvidas na determinação do lugar da materialização do dano, o que acontece sobretudo nos casos em que os danos não afetam a integridade física de uma pessoa ou de uma coisa determinada, mas, de um modo geral, o património.

Prova disso é que, desde 1976, o TJUE tem sido chamado várias vezes a decidir se, para efeitos de competência judiciária, se deve considerar como «lugar onde ocorreu o facto danoso» o lugar num Estado-Membro onde se verificou o dano, quando esse dano consiste numa perda patrimonial que é consequência direta da prática de um ato ilícito ocorrido noutro Estado-Membro, pelo que importa indagar o sentido que o TJUE vem dando àquele conceito.

E a este respeito, o que ressalta, desde logo, da jurisprudência do TJUE, é que, segundo este tribunal, aquela expressão não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, não podendo, por isso, ser interpretado no sentido de que inclui o lugar onde a vítima alega ter sofrido um dano patrimonial subsequente a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela noutro Estado.

Por conseguinte, interessa apenas o dano inicial e não o dano consecutivo, ou seja, o dano acessório de um dano inicial ocorrido [cfr. Acórdãos de 19 de setembro de 1995, Marine, C-364/93 [---], nºs 14 e 15; de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18 [---], nº 28 e jurisprudência aí referida e de 9 de julho de 2020, Verein Konsumenteinformation c Volkswagen AG, C-343/19 [---], nº 26].

E vem também declarando, de forma constante, que este conceito refere-se apenas ao dano inicial sofrido diretamente pelo lesado e não o dano sofrido, indiretamente, por um lesado (lesado indireto) [cfr., entre outros Acórdãos de 11 de janeiro de 1990, Dumez France e Tracoba, C-220/88 [---] e de 10 de dezembro de 2015, Lazard, C-350/14 [---]].

De igual modo, vem afirmando a necessidade de distinguir o evento ou eventos causais do dano das consequências (prejuízos) a que dão origem, pelo que, nos casos em que o lugar onde se situa o facto suscetível de implicar responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um dano não sejam idênticos, tem considerado como sendo o « lugar da materialização do dano » o lugar onde os efeitos danosos de um facto se manifestam concretamente [Cfr. entre outros, Acórdão Zuid-Chemie BV c. Philippo’s Mineralenfabrick NV/SA, processo C-189/08 [---], nº 27 e Acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Perixide SA, processo C-352/13 [---], nº 52 ].

Daí, no Acórdão Kronhofer, C-168/02 [---], em que o alegado prejuízo financeiro que o autor sofreu noutro Estado-Membro produziu um efeito simultâneo no conjunto do seu património, o TJUE ter afirmado que a expressão « lugar onde ocorreu o facto danoso» não se refere ao lugar do domicílio do requerente, no qual se localiza «o centro do seu património», pelo simples motivo de aí ter sofrido um prejuízo financeiro resultante da perda de elementos do seu património ocorrida e sofrida noutro Estado-Membro, só se justificando a atribuição de competência aos tribunais daquele domicílio se este constituísse, efetivamente, o lugar do evento causal ou da materialização do dano ( cfr. nºs 16 a 21).

Mas, ainda assim, reconhecendo que a identificação/determinação do lugar onde se materializou o dano não é igual para todos os tipos de dano e ante as dúvidas suscitadas pelos órgãos jurisdicionais de reenvio, sobretudo nos casos em que estão em causa danos de natureza material e/ou puramente patrimonial, vem recorrendo às « circunstâncias concretas » do processo para, numa apreciação global, precisar o critério da competência relativo ao « lugar do dano», por forma a garantir a proximidade entre o litígio e o foro e a previsibilidade das partes e, deste modo, cumprir os objetivos de proteção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes à regra de competência especial prevista no artigo 5º, nº 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento nº 44/2001 e no artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/2012, permitindo simultaneamente ao demandante identificar facilmente o órgão jurisdicional onde pode intentar a ação e ao requerido prever razoavelmente aquele onde pode ser demandado e garantindo uma boa administração da Justiça.

Foi o que aconteceu nos Acórdãos de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C-375/13 [---]; de 16 de junho de 2016, Universal Music International Holding BV, C-12/15 [---]; de 12 de setembro de 2018, Löber, C-304/17 [---] e de 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteinformation c. Volkswagen AG, C- 343/19 [---].

E porque este último acórdão versa sobre uma situação muito semelhante à dos presentes autos, impõe-se proceder a uma análise mais detalhada do mesmo por forma a indagar se o critério nele seguido pelo TJUE, com vista a determinar o lugar da materialização do dano, tem aplicação ao caso em apreço.

3.2.1.2. O processo C-343/19

No processo C-343/19, estava em causa uma ação proposta pela Verein für Konsumenteninformation (doravante V... e que é uma organização de consumidores, com sede na Áustria e cuja missão estatutária consiste, entre outras coisas, na defesa em juízo dos direitos que os consumidores lhe cederam para esse efeito), num tribunal da Áustria, contra a Volkswagen AG, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro, a título de indemnização pelos danos causados, e fosse declarada responsável por todos os danos ainda não quantificáveis e /ou que se viessem a produzir no futuro.

Como fundamento deste pedido invocou a responsabilidade civil extracontratual da Volkswagen AG, que, na sua sede na Alemanha, equipou os veículos que aqueles consumidores adquiriram na Áustria com motores a diesel, do tipo EA 189, neles introduzindo um dispositivo informático que manipula os dados relativos às emissões de gases de escape, permitindo revelar, nos ensaios e medidas, as emissões que respeitam os valores máximos impostos, ao passo que, nas condições reais de utilização desses veículos em estrada, as substâncias poluentes efetivamente emitidas atingem proporções que excedem várias vezes os limites previstos. Afirma que só graças a esse programa a Volkswagen pode obter para os veículos equipados com o motor ... a homologação prevista na regulamentação da União.

Segundo a VHI, o dano para os proprietários desses veículos reside no facto de que, caso tivessem tido conhecimento dessa manipulação, ter-se-iam abstido de comprar esses veículos ou teriam obtido um desconto sobre o respetivo preço de, pelo menos, 30%. Uma vez que os veículos em causa contêm desde o início um vício, o seu valor de mercado e, portanto, o seu preço de compra são claramente inferiores ao preço efetivamente pago. A diferença representa um dano que dá direito a indemnização.

Assim, tendo em conta a jurisprudência firmada e supra mencionada no ponto 3.2.1.1, afirmou o TJUE, nos pontos 29 a 39 do referido acórdão, que, no caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape e consistindo o dano alegado numa menos-valia dos veículos em causa, resultante da diferença entre o preço que o adquirente pagou por esse veículo e o seu valor real em razão da instalação de um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, há que considerar que, apesar de esses veículos se encontrarem afetados por um vício desde a instalação desse programa informático, aquele dano, que não existia antes da compra do veículo pelo adquirente final, que é o lesado direto, constitui um dano inicial na aceção da jurisprudência recordada nos supra citados acórdãos Marine e Tibor-Trans e não uma consequência indireta do dano inicialmente sofrido por outras pessoas na aceção da jurisprudência referida no citado acórdão Dumez France e Tracoba.

Mais do que um dano puramente patrimonial, trata‑se de um dano material resultante de uma perda de valor de cada veículo em causa e decorrente do facto de, com a revelação da instalação do programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o pagamento efetuado para a aquisição desse veículo ter como contrapartida um veículo afetado por um vício e, portanto, com um valor inferior.

Daí impor-se concluir que, no caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o dano sofrido pelo adquirente final materializa-se no momento da compra desse veículo a um terceiro por um preço superior ao seu valor real.

E que, nestas circunstâncias concretas, a interpretação do artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012, no sentido de que o tribunal do « lugar onde ocorreu o facto danoso» é o tribunal do lugar da aquisição do veículo em causa pelo adquirente final, respeita o objetivo de previsibilidade das regras de competência, referido no considerando 15 deste mesmo regulamento, visto que um construtor automóvel estabelecido num Estado-Membro que se dedique a manipulações ilícitas sobre veículos comercializados noutros Estados-Membros pode razoavelmente esperar que o dano se produza nos Estados-Membros onde o veículo em causa foi adquirido por uma pessoa que confiava, legitimamente, que esse veículo estaria em conformidade com essas prescrições e que, depois, verifica que dispõe de um bem defeituoso e de menor valor, podendo, de igual modo, esperar ser demandado nos órgãos jurisdicionais desses Estados ( v. por analogia, Acórdãos Kolassa, C-375/13, nº 56 e Löber, C-304/17, nº 35),

E respeita também os objetivos de proximidade e de boa administração da justiça, referidos no considerando 16 do referido regulamento, na medida em que o tribunal do Estado-Membro em cujo território esse veículo foi comprado tem mais facilmente acesso aos meios de prova necessários à realização da avaliação das respetivas condições do mercado (cfr. Acórdão Tibor-Trans, C-451/18, nº 34).

Mas, para além de tudo isto, está ainda em conformidade com as exigências de coerência previstas no considerando 7 do Regulamento Roma II, uma vez que um ato como o que está em causa no processo principal, na medida em que é suscetível de afetar os interesses coletivos dos consumidores enquanto grupo, constitui um ato de concorrência desleal (Acórdão de 28 de julho de 2016, Verein für Konsumenteninformation, C-191/15 [---], nº. 42) e pode afetar esses interesses em qualquer Estado-Membro em cujo território o produto defeituoso seja comprado pelos consumidores

E está, de igual modo, em conformidade com disposto no artigo 6º, nº1, do referido regulamento, segundo o qual o lugar onde ocorreu o dano num processo que envolva um ato de concorrência desleal é o lugar onde «as relações de concorrência ou os interesses coletivos dos consumidores sejam afetados ou sejam suscetíveis de ser afetados», ou seja, o lugar onde o produto é comprado (v., por analogia, citado Acórdão Tibor-Trans, C-451/18, nº. 35).

Assim, em face do exposto, declarou que «o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro.»

Mas se assim é, dúvidas não restam que o TJUE já respondeu a esta questão, pelo que não se vislumbra razão para formular, de novo, esta questão prejudicial."

[MTS]