"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/05/2022

Jurisprudência 2021 (197)


Legitimidade processual;
legitimidade substantiva

1. O sumário de RP 5/10/2021 (1910/20.4T8PNF.P1) é o seguinte:

I - Ao apuramento da legitimidade processual - pressuposto processual que se reporta à relação de interesse das partes com o objeto da ação e que, a verificar-se, conduz à absolvição da instância - releva, apenas, a consideração do concreto pedido e da respetiva causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última e do mérito da causa. A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada.

II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.

III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, pressuposto processual já considerado, pacificamente, verificado, em termos tabelares, no despacho saneador, bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A legitimidade processual, “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” se não confunde com a mencionada na sentença recorrida, que de mérito conheceu, sendo a “denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido” [Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net (Relator: Araújo de Barros)]. Ao apuramento de ambas interessa, contudo, a consideração do pedido e da causa de pedir. [José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52].

Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". A "parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular". [Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1963, págs. 260, 261, 262].(…) Será, desta forma, apenas pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que há-de decidir-se das excepções dilatórias em causa - ilegitimidade activa e ilegitimidade passiva. (…) Ora, como já acima referimos, a legitimidade constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende que o tribunal conheça do mérito da causa, e profira, acerca dos pedidos deduzidos, uma decisão de fundo.

"Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto processual para o efeito".[Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 104. Acrescentam, aliás, os autores, em nota, que "a falta do pressuposto processual não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da acção, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo, sustando nomeadamente a produção de prova sobre os fundamentos do pedido"]” [Acórdão do STJ de 14/10/2004, processo 04B2212, in dgsi.net].

Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1-2, se decidiu constituir “a legitimidade processual, … um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil”.

Numa interessante abordagem, julgou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015, [Proc. 505/07.2TVLSB.L1.S1, Relator: Helder Roque [...]] que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.

Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva” [Acórdão da Relação de Lisboa de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1-2, in dgsi.net].

A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade [Ac. RG de 11/1/2018, processo 2366/16.1T8VCT.G1 (Ana Cristina Duarte), in dgsi.net]. Já a ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa.

Com efeito, uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância (cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil) e outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa [Ac. da RL de 19/2/2015, processo 143148/13.OYIPRT.L1 -2 (relator:Ezagüy Martins)]. Como se refere neste Acórdão “Assimilando Castro Mendes [Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, FDL, Lisboa, 1974, págs. 176, 177] esta última reporta-se às “condições subjetivas da titularidade do direito”, tratando-se de “uma figura diferente daquela que temos vindo estudando. Assim, se o tribunal conclui pela ilegitimidade, entra no mérito da causa (tal pessoa não tem o direito de anular o contrato; tal pessoa não é credora de perdas e danos; etc. …) e profere uma absolvição do pedido. Estamos em presença da legitimidade em sentido material. Saliente-se, porém, que é figura diversa daquela a que se referem os artigos 24º, 26º, 288º, 494º (do Código de Processo Civil de 1961) etc. …, e em que temos vindo falando – aquilo que designaremos sempre por legitimidade “tout court”, a legitimidade processual ou em sentido processual”.

Cumpre, pois, referir que, certo sendo que a legitimidade processual, adjetiva, foi, pacificamente, reconhecida, e logo em termos tabelares, no despacho saneador, entrou o Tribunal a quo na análise do mérito da causa, enveredando, então, pela ilegitimidade substancial da Autora e, consequentemente, absolvição da Ré dos pedidos em questão.

A legitimidade substantiva, substancial ou material, mero requisito da procedência do pedido, a não se verificar leva à improcedência do pedido.

E bem considerou o tribunal a quo, como exposto, nenhum dano ter a Autora demonstrado, pois que não sendo proprietária do imóvel, sequer usufrutuária, manifesta é, face ao que alega, a inviabilidade das pretensões acima referidas (5, 6 e 7), nunca podendo os pedidos em causa proceder por nenhum dano gerado na sua esfera jurídica ocorrer.

Assim, tendo a autora invocado, como causa de pedir do pedido que deduz contra a ora apelante, factos que nenhum direito seu são suscetíveis de fundamentar, não é dotada de legitimidade substantiva. Bem se julgou, pois, verificar-se ilegitimidade substantiva para os referidos pedidos, o que, em nada contende, com a, anteriormente, já verificada legitimidade processual, o que se mantém."


*3. [Comentário] O acórdão confronta-se com a distinção entre a legitimidade processual e a legitimidade substantiva: a primeira é um pressuposto processual e, portanto, uma condição de admissibilidade da acção; a segunda é uma condição de procedência da acção.

Apenas não se pode acompanhar o acórdão quando neste se afirma que "a 
ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória". Na verdade, a "ilegitimidade substantiva" não é necessariamente uma excepção peremptória. Por exemplo: o autor propõe a acção de reivindicação contra o (alegado) possuidor (art. 1311.º, n.º 1, CC); este demandado nega (isto é, impugna) precedentemente a sua qualidade de possuidor da coisa reivindicada; a acção improcede. 


[MTS]