2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
A este respeito importa sublinhar, como já se afirmou nos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 21.03.2019 (processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2) e de 03.10.2019 (processo 77/06.5TBGVA,C2.S2) [---], que o exercício efetivo pelo Tribunal da Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados, prestados oralmente na audiência de discussão e julgamento, à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso ónus de impugnação por forma a impedir que «a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo [Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , pág. 169].
Daí dispor o art.º 640.º do C. P. Civil que:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)».
Na expressão do Acórdão do STJ, de 29.10.2015 (processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1) [---], consagra este regime processual um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Assim, nesta conformidade, integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº 1 do citado art. 640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto [---].
Mas, já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.
E se é certo cominar a lei o incumprimento do ónus primário e do ónus secundário de igual forma, ou seja, com a sanção da rejeição imediata do recurso [cfr. art 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do mesmo artigo], não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, a verdade é que, tal como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, «não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra num ou noutro âmbito».
Dito de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1) [---], enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso.
Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.
E, quanto à problemática de saber se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou bastará incluí-los no corpo alegatório, refere o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 99/05.6TBMGD.P2.S1) [---] que a resposta a dar a esta questão depende da função que está subjacente a cada um dos referidos ónus.
Deste modo, «constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias [---], por força do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugadamente com o art. 640º, nº 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente, o preceituado no nº 1 do art. 639º, todos do CPC».
Mas, já assim não acontece com a especificação dos meios concretos de prova nem com a indicação das passagens das gravações visto que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória».
«XVI. Não existe compatibilidade entre o teor dos depoimentos das testemunhas, da prova documental e da prova pericial e os factos dados como provados
XVII. Os depoimentos das testemunhas, arroladas pela ré, revelam-se contraditórios e nenhuma destas testemunhas conseguiu indicar com exatidão o local onde, alegadamente, se situa o prédio de ré.
XVIII. Relativamente ao estado de conservação do prédio da ré à data dos factos, os depoimentos das várias testemunhas são contraditórios.
XIX. Toda a prova testemunhal foi produzida por confrontação com o levantamento topográfico a fls. 355 dos autos, elaborado com base nas informações prestadas pela filha da ré, parte interessada na causa.
XX. O douto Relatório Pericial é totalmente omisso quanto aos documentos matriciais, registrais e cadastrais de todos os prédios, sem qualquer base científica, baseado unicamente no Levantamento Topográfico, a fls 355 dos autos, realizado pelos topógrafos Jorge M. L. Batista e Rita Batista.
XXI. Conclui-se que face a prova testemunhal, prova documental e prova pericial produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.
XXII. Conclui-se que o douto tribunal a quo, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC, reconhecendo-se os autores DD e EE como legítimos proprietários dos referidos lotes, na sequência da aquisição dos mesmos por escritura pública de compra e venda à Radical Red Holdings, LLC.
XXIII. Conclui-se que o tribunal a quo não realizou convenientemente o exame crítico das provas, conforme dispõe o art.º 607º, n.º 5 , do CPC.»
Pronunciando-se sobre este segmento do recurso, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão ora recorrido, considerou que os apelantes não respeitaram os requisitos formais do ónus de impugnação da decisão de facto exigidos pelo art. 640º, do CPC, em consequência do que decidiu rejeitar, nesta parte, o recurso interposto, com base na seguinte fundamentação, que se transcreve:
«Os recorrentes propõem-se impugnar a matéria de facto.
Alegam que, face a prova testemunhal, documental e pericial, produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.
E ainda que, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC.
Porém entendemos que não cumpre o ónus respetivo.
Nos termos do art.° 640.° do CPC:
(…) Esta exigência de especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, (neste sentido, Acórdão do STJ de 19.02.2015, Relatora: Maria dos Prazeres Beleza, processo n.° 405/09.1TMCBR.C1.S1)
Ora, não cumpre este ónus o recorrente que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em blocos ou temas de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna, do que decorre a rejeição do recurso na parte afetada. (neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 05.09.2018 proferido no processo n.° 15787/ 15.8T8PRT.P1.S2).
É o que se passa no nosso caso.
Com efeito, os recorrentes limitam-se a descrever a sua posição sobre a apreciação das provas por referência a temas da matéria de facto.
E mesmo quando criticam a natureza e o teor de alguns depoimentos e o alcance da prova pericial e documental não fazem qualquer ligação com os factos concretos que entendem incorretamente julgados, ou seja, fazem uma análise em termos genéricos.
Esta forma de impugnação da matéria de facto sendo, sem dúvida, mais fácil e expedita, não é a legalmente imposta.
A ideia legal da impugnação implica a confrontação específica e concreta das provas, com as alegadas "patologias" de cada facto impugnado.
E estas omissões não são apenas omissões relativas às conclusões do recurso, mas sim de todo o texto do mesmo, pelo que, ainda que se considere que não é de exigir nas conclusões, a reprodução do que alegou anteriormente, ainda assim, há incumprimento de tal ónus, porque nem no texto encontramos os pontos referidos. (…)
O não cumprimento dos ónus impostos à recorrente implica a rejeição do recurso, sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento, (…)
Pelo exposto, decide-se rejeitar, nesta parte, o recurso interposto».
Contra este entendimento, insurgem-se os recorrentes, persistindo na defesa de que cumpriram o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, do CPC, pois, na impugnação da matéria de facto realizada no âmbito do recurso de apelação não só indicaram os pontos de facto impugnados, a resposta a dar aos mesmos, os meios de prova e passagens de gravações dos depoimentos que no seu entender impõem decisão diversa da proferida, procedendo à transcrição dos excertos considerados importantes, como fizeram uma análise crítica do sentido das respostas dadas e indicaram o motivo pelo qual as respostas deveriam ser negativas. [...]
Senão vejamos.
Lendo os pontos 52 a 143 das alegações de recurso de apelação dos autores, verifica-se que, em sede de impugnação da matéria de facto, discordam os mesmos dos factos dados como provados pelo tribunal de 1ª instância e supra descritos nos nºs 3 a 13 (todos eles respeitantes à composição, área, configuração, localização do prédio da ré e respetiva utilização) e nos nºs 27 a 29 (atinentes à área e confrontações dos lotes ... e ... dos autores), sustentando que as provas testemunhal, documental e pericial que serviram de base à formação da convicção do Tribunal de 1ª Instância revelam-se inconsistentes e enfermam de várias contradições, pelo que impunha-se ao tribunal considerar, por um lado, como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.
E, por outro lado, devia ter considerado provado que os lotes ... e ..., foram legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC. [...]
É que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, atua também nesta vertente, sendo lícito ao impugnante, tal como referem Abrantes Geraldes e outros [In “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, págs. 770 e 771], «rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente», situação em que «deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilidade dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente».
E se é certo não terem os recorrentes indicado, nas conclusões recursórias, os meios concretos de prova nem das passagens das gravações, certo é também que, de acordo com a jurisprudência firmada deste Supremo Tribunal, bastará incluí-las no corpo alegatório, visto estarmos perante um ónus que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória».
Daí que, nestas circunstâncias e em conformidade com o entendimento acima perfilhado se considere que os recorrentes cumpriram o núcleo essencial do ónus de impugnação prescrito no art. 640º, do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso.
Vale tudo isto por dizer que o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou erradamente os parâmetros processuais que disciplinam o seu poder de cognição da decisão de facto impugnada, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c) e nº 2, alínea a), do CPC, o que importa a sua anulação, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento da terceira questão suscitada no âmbito do recurso de revista interposto pelos autores e supra enunciada no ponto 3.2.2, uma vez que a mesma tem subjacente matéria de facto que foi objeto de impugnação por parte dos autores."
[MTS]