"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2022

Jurisprudência 2021 (196)


Acompanhamento de maior;
decisão provisória; audição do beneficiário


1. O sumário de RC 12/10/2021 (212/20.0T8PVC-A.C1é o seguinte:

I - A situação factual relevante para decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido – artigo 141.º do Código Civil – é a situação existente na data dessa decisão.

II - A audição do acompanhado antes da decisão final é obrigatória e constitui uma formalidade que assegura, perante o acompanhado, o reconhecimento da sua dignidade por parte do tribunal e, ao mesmo tempo, faculta ao tribunal um acréscimo de conhecimento sobre a situação factual que dá corpo ao processo.

III. Não é obrigatória a audição do acompanhado antes da decisão provisória de acompanhamento, quando, existindo urgência, não é fisicamente possível a audição do beneficiário devido ao facto deste se encontrar incontactável, por razões de saúde ou outras.

IV. A circunstância do Requerente não ter indicado medidas concretas não impede que elas sejam decretadas pelo tribunal, se o interesse do requerido o reclamar.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se se justifica ou não justifica decretar o acompanhamento provisório do Requerido.

O Recorrido argumenta que o decretamento de tal medida não se justifica, mesmo provisoriamente, sendo certo que tal medida implica a prévia audição do beneficiário, o que ainda não foi feito.

(a) Começando por esta última questão.

Como se disse, o relatório médico-legal, datado de 24 de maio de 2021, é claro na conclusão de que o Requerido necessitava, já nessa altura, de ser acompanhado.

O n.º 1 do artigo 139.º do Código Civil, dispõe que «O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.»

O n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, determina, em conformidade com o artigo do Código Civil, que «Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.»

Não há qualquer dúvida no sentido de que é obrigatória a audição pessoal do acompanhado antes de ser proferida a decisão final [Neste sentido, deste mesmo coletivo, o acórdão proferido no processo n.º 647/18.9T8ACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.].

A questão suscitada no recurso não tem a ver com a esta situação (decisão final), mas sim com a obrigatoriedade ou não obrigatoriedade de audição do acompanhado relativamente a uma decisão provisória, tomada nas fases iniciais do processo.

Dir-se-á que, à primeira vista, a solução deverá ser a mesma para ambas as situações, mas não tem de ser assim porque as situações factuais não são semelhantes e não sendo semelhantes não terão de obedecer aos mesmos pressupostos.

Por conseguinte, não se afigura que exista impossibilidade de proferir decisão provisória a decretar o acompanhamento sem prévia audição do beneficiário.

Pelas seguintes razões:

(I) Cumpre começar por referir que a audição do acompanhado antes da decisão provisoria constitui uma formalidade que assegura, perante o beneficiário, o reconhecimento da sua dignidade por parte do poder público, do tribunal, e, ao mesmo, tempo faculta ao tribunal um acréscimo de conhecimento sobre a situação factual que dá corpo ao processo.

Estas duas razões, entre outras, fundamentam a necessidade de audição prévia do beneficiário antes de ser proferida decisão definitiva.

(II) No entanto, podem existir casos em que é notória a necessidade de nomear provisoriamente acompanhante ao beneficiário e não se mostra viável a sua prévia audição.

Nestes casos, a exigência de audição prévia seria prejudicial aos interesses do beneficiário.

Quando assim for, as razões que fundamentam a audição devem ceder lugar à tutela real dos interesses do beneficiário, que deverá ser ouvido depois tão depressa quanto possível.

Esta impossibilidade ocorre quando, existindo urgência, não é fisicamente possível a audição do beneficiário devido ao facto deste se encontrar incontactável, por razões de saúde ou outras.

Ou, então, quando o Tribunal da Relação é chamado a decidir sobre o acompanhamento provisório, como ocorre no presente caso.

Nesta situação, não tendo o tribunal de 1.ª instância ouvido o beneficiário, não se afigura viável que o Tribunal da Relação proceda motu proprio à audição prévia do acompanhado, caso entenda que deve ser decretado o acompanhamento.

Com efeito, a audição do beneficiário é uma formalidade a cumprir exclusivamente pelo juiz de 1.ª instância.

Os casos em que o Tribunal da Relação pode levar a cabo diligências próprias da 1.ª instância são aqueles em que há necessidade de produzir prova no âmbito do recurso que teve por objeto a impugnação da matéria de facto, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 662.º (Modificabilidade da decisão de facto) do Código Processo Civil.

Não é o caso.

No caso dos autos não estamos perante uma impugnação da matéria de facto, não sendo, por isso, possível levar a cabo tal audição.

Pois bem, nestes casos, se o beneficiário ainda não tivesse sido ouvido, não teria viabilidade prática o recurso do despacho que relegasse para momento ulterior a aplicação provisória de medida de acompanhamento.

Porquanto, mesmo que se verificassem os requisitos da aplicação da medida de acompanhamento, como o beneficiário ainda não tinha sido ouvido, o tribunal de recurso nunca podia determinar o acompanhamento e por conseguinte, o recurso com esse fundamento era um ato inútil.

Afigura-se, por conseguinte, que é viável proferir decisão provisória a instituir o acompanhamento antes do beneficiário ter sido ouvido pelo juiz, desde que a medida se justifique e a audição seja inviável.

No caso dos autos, a audição do beneficiário é inviável porque o Tribunal da Relação não a pode levar a cabo, como se disse, por sua iniciativa.

Conclui-se este ponto no sentido de que o Tribunal da Relação pode decretar provisoriamente o acompanhamento do Requerido apesar de este não ter sido ainda ouvido no processo.

(b) Vejamos então se se justifica ou não decretar o acompanhamento provisório do Requerido.

A resposta é afirmativa.

O relatório da perícia médico-legal psiquiátrica, elaborado em 24 de maio de 2021, concluiu, como já se referiu, que «…o Requerido é portador de Perturbação Neurocognitiva Major e que não se suscitam quaisquer dúvidas médicas razoáveis quanto à necessidade de acompanhamento na actualidade. Da mesma forma, dúvidas não subsistem que à data da manifestação da oposição do Requerido ao presente processo, o mesmo já se encontrava limitado na sua capacidade intelectual, estando já medicado com fármaco antidemencial.

Apesar da discrepância do relato de familiares (não técnicos) relativamente ao seu estado de saúde à data da contestação, com base na prova documental a que tivemos acesso, temos sérias dúvidas que nessa data tivesse mantida a capacidade para expressar de forma livre e conscientemente a sua vontade quanto ao prosseguimento (ou não) da presente acção, face aos défices cognitivos que já apresentaria.»

Ou seja, face a este parecer qualificado, não se suscitam dúvidas relevantes sobre a necessidade de instituir a medida de acompanhamento.

Aliás, o teor do exame direto feito à pessoa do Requerido no Instituto de Medicina Legal também é esclarecedor quanto à necessidade de decretar esta medida, pois mostra que o Requerido não tem capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens, dado que já não possui uma representação exata da realidade.

Leia-se a este respeito o que consta do ponto 3 dos factos provados acima indicados, de onde resulta que o requerido nesse dia não soube indicar onde se encontrava; a sua idade (ainda que aproximada); disse que tinha vindo da sua residência, quando é certo que estava no estabelecimento prisional, que era solteiro, etc.

Além disso, verifica-se que consta do relatório que o «…Examinando apresenta incontinência de esfíncteres, pelo que usava fralda. Necessitava de ajuda na higiene e no vestuário, que aparentemente lhe seria prestada pelo filho P…» e «Aparentemente ainda conseguia ler e escrever, mas já tinha dificuldade no cálculo. Aparentemente já não conseguia fazer uso de meios de comunicação, como telefone, de forma autónoma, e desconhece-se se ainda seria capaz de utilizar computador pessoal e/ou aceder à internet.»

«À data da avaliação pericial encontrava-se a ser acompanhado pelos serviços médicos do E.P. da ...., nomeadamente em consulta de Psiquiatria, e estava medicado com rivastigmina 9.5mg/dia, risperidona 1mg/dia e quetiapina 50mg/dia, bisoprolol, abastina e lercanidipina (…).»

Esta factualidade mostra que o Requerido carece de proteção imediata no que respeita à sua saúde, bem-estar e aos seus bens, o que passa pela nomeação de acompanhante.

A circunstância de o Requerente não ter indicado medidas concretas não impede que elas sejam decretadas pelo tribunal se o interesse do requerido o reclamar.

Com efeito, como se disse já, o artigo 891.º do Código de Processo Civil dispõe que ao processo especial de acompanhamento de maior se aplicam as normas dos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes e que «Em qualquer altura do processo, podem ser requeridas ou decretadas oficiosamente as medidas cautelares que a situação justificar.»

No que respeita aos «critérios de julgamento», o artigo 987.º do Código de Processo Civil, dispõe que nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, «…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»

Vejamos, então, no que respeita às medidas em concreto.

É certo que o acompanhamento deve «limitar-se ao necessário», ou seja, ao mínimo, àquilo que o representado não consiga fazer sozinho e em termos considerados socialmente aceitáveis.

Porém, face ao teor dos autos, em especial do relatório da medicina-legal, afigura-se que o Requerido já não tem autonomia, capacidade de decidir por si mesmo o que é mais adequado para si, quanto à saúde, bem-estar e bens.

No que respeita aos bens, resulta dos autos que o Requerido receberá uma reforma elevada e, sendo assim, é de presumir que tenha quantias depositadas que cumpre proteger de terceiros.

Com efeito, quando alguém está debilitado pela idade e pela doença e carece permanentemente de terceiros para levar a cabo as tarefas quotidianas, pode ser facilmente convencido a dispor dos seus bens ou a assinar documentos, com prejuízo para si, cujo conteúdo e alcance já não compreende.

Face a esta situação, o acompanhante deve ter poderes para evitar que terceiros se apropriem de parcelas do património do Requerido e deve ter também poderes para determinar o que deve ser feito em prol da saúde e bem-estar do Requerido, de modo a que não existam dúvidas sobre quem tem poderes nesta matéria para ordenar o que for conveniente, evitando-se orientações contraditórias, conflitos e impasses resultantes da intervenção de diversos familiares ou outras pessoas.

Para o efeito, afigura-se que a medida deve ser a de «representação geral» no que respeita aos ativos bancários e valores mobiliários do Requerido e autorização prévia para a prática de atos de oneração ou alienação de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.

No que respeita à saúde e bem-estar do Requerido deverá incumbir ao acompanhante decidir quotidianamente o que deve ser feito.

Face ao que fica referido, a tutela dos interesses do Requerido não se alcançaria através do exercício dos deveres gerais de cooperação e assistência por parte dos seus familiares, porque a situação do Requerido, pelo menos tanto quanto os autos mostram neste momento, é a de alguém que já não está na posse de faculdades mentais que lhe permitam ser autónomo ao nível da tomada de decisões e outros terão de as tomar por si.

Se tivesse essa autonomia, o Requerido careceria apenas do auxílio físico de terceiros para as executar, mas não é esse o caso."

[MTS]