"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/05/2022

Jurisprudência 2021 (207)


Processo de inventário;
tornas; execução*


1. O sumário de STJ 14/10/2021 (1040/19.1T8ANS-A.C1.S1) é o seguinte:

No nosso sistema processual, a força do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tem eficácia meramente intraprocessual, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Previamente a tomarmos posição sobre a existência de caso julgado que impeça o prosseguimento da presente execução, convém relembrar e precisar a tramitação processual ocorrida em toda esta situação.

Na sequência de divórcio entre a Embargante e o Embargado, correu termos inventário para separação de meações, no qual os bens comuns do casal foram adjudicados à Embargante, tendo o Embargado direito a tornas no valor de € 62.500,00.

O Exequente reclamou o pagamento das tornas nos termos do artigo 1377.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na altura vigente, não obtendo o pagamento das mesmas, pelo que, tendo, entretanto, transitado em julgado a sentença homologatória da partilha de bens, requereu a venda de bens adjudicados à Executada, nos termos do artigo 1378.º, n.º 3, do mesmo Código de Processo Civil, nos autos de inventário.

Face ao insucesso da venda desses bens, o Exequente deduziu ação executiva para pagamento de quantia certa (apenso E ao processo de divórcio), reclamando o pagamento das referidas tornas e indicando à penhora outros bens da Executada que não os adjudicados no processo de inventário.

Nessa execução foi proferida decisão, em que, oficiosamente, se conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Esta decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de 27.03.2012, após recurso interposto pelo Exequente [---].

Entretanto, na execução movida no processo de Inventário, foi proferido em 25.05.2016, despacho de extinção da instância, por deserção, em cuja fundamentação se afirmou que o credor de tornas não está impedido de lançar mão da competente ação executiva para pagamento de tornas a que tem direito.

O Exequente, em 30.5.2019, intentou contra a Executada nova Execução, reclamando mais uma vez o valor das tornas apuradas no referido processo de inventário, tendo, apresentando como título executivo a sentença homologatória do mapa de partilha elaborado naquele processo, pelo que estamos perante uma repetição do processo executivo que anteriormente havia sido considerado nulo, por erro na forma do processo (o apenso E ao processo de divórcio).

É relativamente a este segundo processo executivo, que o acórdão aqui recorrido decidiu que se verifica uma situação de caso julgado pela decisão proferida na execução que constitui o apenso E ao processo de divórcio.

Tendo essa anterior decisão incidido sobre a relação processual, o caso julgado por ela formado é meramente formal, tendo força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º do Código de Processo Civil).

Com efeito, o caso julgado formal, em princípio, não obsta a que, entre as mesmas partes, o pedido deduzido seja novamente formulado, com a mesma causa de pedir, em nova ação, não havendo lugar à exceção do caso julgado, uma vez que este, sendo formal, apenas tem uma eficácia intraprocessual.

No entanto, relativamente às decisões que verificam a existência de uma exceção dilatória, por falta de observância um pressuposto processual, desde há muito que se questiona se o caso julgado formado com essa decisão também tem força extraprocessual, impedindo que, posteriormente, se proponham, entre as mesmas partes, ações com o mesmo objeto e em que se repete a situação que se considerou integrar uma exceção dilatória ou que imponham mais uma absolvição da instância.

Alberto dos Reis, em anotação ao artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [No Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, reimpressão, vol. V, pág. 157-158], cujo segundo período tinha uma redação muito próxima à do artigo 620.º do atual Código de Processo Civil, tendo presente as decisões de absolvição da instância, afirmou que o caso julgado formal não tem força obrigatória fora do processo respetivo...e, portanto, nem vincula o juiz, nem pode ser alegado pelas partes em processo diferente daquele em que foi proferido. Noutra anotação ao mesmo Código [Na ob. cit., vol. III, pág. 97 [...]] igualmente referiu que o benefício meramente processual que o Réu obteve com a pr1imeira sentença (que o absolveu da instância) não encontra proteção na segunda causa. Entende-se que, não tendo a sentença anterior recaído sobre o objeto essencial do litígio, não tendo atribuído a qualquer das partes os bens ou as vantagens substanciais a que aspirava, não há razão para dar estabilidade fora do processo, à decisão proferida.

Porém, Castro Mendes, no seu Manual de Processo Civil [Edição da Coimbra Editora, 1963, pág. 458], assumidamente contra a posição então corrente, afirmou que se se absolveu da instância por certo fundamento e este se repete em novo processo, é lícito neste opor a exceção do caso julgado.

Esta posição viria a ser desenvolvida e corrigida por Teixeira de Sousa [Em O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material (Estudo sobre a Funcionalidade Processual), no B.M.J. n.º 325, pág. 155-159, sobretudo, pág. 157-159.] que, admitindo a possibilidade do caso julgado formal ter uma eficácia externa, considerou que o caso julgado incidente sobre uma decisão de absolvição da instância não só define objetivamente o conteúdo da decisão processual produzida, como vincula subjetivamente os sujeitos adjetivos à decisão processual proferida, entendendo que existe uma vinculação à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto, concluindo, no entanto, pela verificação de uma situação de autoridade de caso julgado, e não por uma exceção de caso julgado formal, quando refere que o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objeto mas a sujeição a julgar identicamente.

Já Anselmo de Castro [Em Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pág. 15/16, embora referindo que, quando a exceção dilatória é uma ilegitimidade, o facto de poder existir uma pronúncia sobre a relação jurídica em litígio é suscetível de conferir a essa decisão efeitos extraprocessuais] seguiu a posição de Alberto dos Reis, argumentando que, não estando em causa interesses materiais nada contraindica que a lei seja interpretada no sentido de afastar o caso julgado material, e o juiz possa em nova ação pronunciar divergentemente.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação ao artigo 279.º do Código de Processo Civil [No Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, pág. 566], limitam-se a dar nota de uma orientação doutrinal no direito processual alemão que não admite a repetição de uma causa com a falta do mesmo pressuposto processual que originou a extinção ou a não admissão da anterior, pelo menos quando esteja em causa um pressuposto que coenvolva interesses materiais, referindo que, no nosso Código de Processo Civil, a expressão nova ação usada nos n.º 2 e 3 (do artigo 279.º), pode servir de argumento literal em prol deste entendimento: a inovação da segunda ação residirá na remoção do obstáculo (a falta do pressuposto em causa) à prolação da decisão de mérito sobre aquele objeto processual.

Também Maria José Capelo Em A Sentença entre a Autoridade e a Prova. Em Busca de Traços Distintivos do Caso Julgado Civil, Almedina, 2016, pág. 96-97, nota 328] se limita a referir que a questão merece ponderação, chamando a atenção para a consagração excecional da eficácia externa de um caso julgado formal no artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil atual, e referindo a posição de Proto Pizani [Em Lezioni di Diritto Processuale Civile, 5.ª ed., Jovene, 2006, pág. 82], no direito processual italiano, no sentido de que neste ordenamento jurídico, dispondo no artigo 310.º, n.º 2 (do Codice de Procedura Civile) que à extinção do processo sobrevivem as decisões de mérito e aquelas que regulam a competência, mostra inequivocamente ter optado – ao menos como regra geral – a favor da solução segundo a qual o caso julgado interno sobre questões de rito não sobrevive à extinção do processo, sem prejuízo de algumas decisões em matéria de competência, por força da lei, ou de legitimidade, poderem ter uma eficácia panprocessual.

É esta que também nos parece ser a melhor interpretação, numa leitura sistemática, das disposições do nosso Código de Processo Civil sobre a matéria.

Se a segurança jurídica, na vertente da estabilidade processual, impõe a imutabilidade interna das decisões sobre a tramitação, com eventual sacrifício da possibilidade de se encontrar um melhor direito numa revisão do decidido, evitando-se, assim, que, no mesmo processo, sejam proferidas decisões contraditórias sobre os seus termos [---], esse interesse deixa de pesar quando a questão processual decidida se coloca num outro processo, mesmo que este tenha igual objeto do primeiro. A necessidade daquela imutabilidade só se faz sentir no interior do processo onde foi proferida a decisão, a fim de garantir a sua estabilidade. Não sendo a decisão proferida uma decisão de mérito, uma vez que não decidiu o litígio substantivo, não tem aqui valia os fundamentos que justificam a força do caso julgado material e a sua expansão externa ilimitada [---].

Apesar de a possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em processos diferentes, mas com objeto idêntico e com as mesmas partes, poder causar alguma perplexidade, há que ter presente que essas decisões apenas decidem da admissibilidade daquele processo seguir os seus termos com vista à apreciação do mérito da causa, em nada definindo as relações jurídicas entre as partes em litígio, pelo que não existe qualquer solução material cuja definitividade importe salvaguardar.

Se, para a credibilidade do sistema judicial, pode ser importante a coerência e uniformização das suas decisões, mesmo que estas tenham um alcance meramente processual, esse já não é um interesse abrangido pelo princípio da segurança jurídica, enquanto princípio estruturante do Estado de direito democrático, e não tem o peso necessário para impor que, no modelo do processo equitativo, tais decisões, quando recaiam sobre a verificação dos pressupostos processuais, tenham necessariamente efeitos extraprocessuais, impondo-se em processos distintos daqueles onde foram proferidas.

O disposto no artigo 620.º do atual Código de Processo Civil que mantém, no essencial, a redação que já constava do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 1939 [---], delimita a força do caso julgado desse tipo de decisões (dentro do processo), não excecionando aquelas que verifiquem a ausência de um pressuposto processual.

Por sua vez, como faz notar Maria José Capelo, o legislador quando quis conferir força extraprocessual ao caso julgado formado pelas decisões proferidas sobre a competência do tribunal em razão da matéria e da hierarquia (artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), fê-lo expressamente, a título excecional, e não como reflexo de uma orientação geral.

A redação do artigo 279.º do Código de Processo Civil, quando prevê a propositura de uma segunda ação, após a anterior ter terminado com a absolvição da instância do Réu, por falta de verificação de um pressuposto processual, ao utilizar a expressão “nova ação” não deve ser lida com o sentido de que essa segunda ação, só será “nova”, se comportar uma “novidade”, corrigindo o vício que fundamentou a absolvição da instância, pelo que uma segunda ação que repetisse exatamente a primeira, estaria abrangida pela força do caso julgado da anterior decisão. Não há qualquer razão para conferir tal relevância à utilização da expressão “nova ação”, a qual apenas pretende prever a propositura de uma segunda ação, sem lhe conferir qualquer exigência de ela encerrar uma novidade, designadamente o suprimento do vício que determinou a absolvição da instância na ação anterior.

Por estas razões, deve considerar-se que se mantém no nosso sistema processual a força meramente intraprocessual do caso julgado formal das decisões que verifiquem a inexistência de um pressuposto processual, tal como Alberto dos Reis já havia salientado, com referência ao Código de Processo Civil de 1939, pelo que, num novo processo que repita o objeto e as partes de um processo anterior, que terminou com a absolvição da instância do Réu, por falta de um pressuposto processual, salvo previsão legal específica em contrário, pode ser proferida decisão divergente da emitida no primeiro processo [---].

Assim, após um processo em que a instância foi declarada extinta, por se ter considerado existir erro na forma processual, sem possibilidade de aproveitamento dos atos praticados, como ocorreu na situação sub iudicio, proposto um segundo processo com o mesmo objeto e as mesmas partes, sob a mesma forma, não se verifica uma situação de exceção do caso julgado, nem o juiz deste segundo processo está vinculado a proferir decisão idêntica à prolatada no primeiro processo, por respeito à autoridade do caso julgado formal, estando antes livre para decidir que a forma do processo é a adequada.

A decisão proferida no apenso E ao processo de divórcio que, oficiosamente, conheceu da verificação da exceção dilatória da nulidade do processo, por erro na sua forma, por se ter entendido que a cobrança do valor das tornas resultantes de processo de partilha judicial só pode ser efetuada através do processo executivo especial previsto no artigo 1378.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não tem força de caso julgado extraprocessual, pelo que o saneador-sentença proferido na presente execução, ao determinar o prosseguimento dos autos, para pagamento da quantia de 62.500,00€, acrescida de juros à taxa anual de 4%, desde 13.05.2004 e até integral pagamento daquela quantia, admitindo a insistência do Exequente na forma de processo escolhida, não desrespeita a força do caso julgado da decisão proferida no referido apenso E."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação segundo a qual o caso julgado formal é insusceptível de produzir efeitos extraprocessuais. Suponha-se que uma acção terminou com a absolvição da instância com fundamento em incompetência material do tribunal ou em preterição de litisconsórcio necessário passivo; não tem sentido admitir que o autor possa intentar quantas acções quiser no mesmo tribunal ou contra a mesma parte, argumentando que o caso formal anterior não produz nenhum efeito em cada um dos novos processos. Aliás, se esse efeito vinculativo não existe, dificilmente se pode entender que o autor que propõe repetidamente a mesma acção sem sanar a falta de um pressuposto processual faz um uso manifestamente reprovável do processo e, por isso, litiga de má fé (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC).

b) O que talvez se possa entender na situação analisada no acórdão é que o caso julgado formal da decisão que, numa anterior execução, entendeu que a execução apropriada era a regulada pelo art. 1378.º CPC/61 (equivalente ao actual art. 1122.º CPC) pode ser afastado com o argumento de que numa anterior execução proposta com base naquele preceito não foi possível obter a cobrança do crédito.

MTS