Arrolamento;
contraditório; dispensa
I – Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob administração do outro (nº 1 do art. 409º do n.C.P.Civil).
II – Neste procedimento cautelar de arrolamento a lei não prevê expressamente se essa providência cautelar deve ser decretada sem a audiência prévia do requerido.
III – Deve, por conseguinte, o juiz, através de despacho fundamentado, decidir dispensar ou não essa audiência prévia, consoante entenda que a mesma é ou não suscetível de comprometer a urgência ou o efeito útil da providência.
IV – O que está subjacente ao arrolamento é sempre o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos e a necessidade de prevenção desse risco no sentido de assegurar a manutenção e conservação desses bens (ou documentos) de modo a garantir a efetividade do direito (ou interesse) a que o Requerente se arroga e que lhe venha a ser reconhecido na ação da qual o arrolamento é dependência.
V – Sendo que o objetivo do arrolamento não se reconduz – ou não se reconduz apenas – à identificação dos bens sobre os quais incide o direito da Requerente (no caso, os bens futuramente a partilhar), visando essencialmente assegurar a permanência e conservação desses bens até à realização da partilha e prevenir o risco de extravio, ocultação ou dissipação desses bens com vista a assegurar que a Requerente do arrolamento possa tomar posse efetiva dos bens que lhe venham a caber nessa partilha.
VI – À luz das regras gerais da experiência, e pelas particularidades do caso concreto (tal como apresentado e delineado), existe um risco sério e real de extravio, ocultação ou dissipação dos montantes monetários em causa enquanto a descrição, avaliação e depósito respetivo não estiver efetivamente operada, e particularmente no que a este último diz respeito, se encontre salvaguardado que não mais tenha lugar a sua livre movimentação pelo Requerido.
VII – O que tudo permite legitimamente concluir no sentido de que, enquanto preliminar do divórcio, a citação do Requerido, antes do decretamento da providência cautelar de arrolamento, conduz ao justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de dinheiros existentes em contas bancárias do ainda casal, por parte do mesmo.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Consabidamente, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob administração do outro (nº 1 do art. 409 do n.C.P.Civil).
Ora, na medida em que relativamente ao procedimento cautelar de arrolamento, o Código de Processo Civil, ao invés do que sucede com o arresto (cf. art. 393º, nº 1 do n.C.P.Civil) e com a restituição provisória de posse (cf. art. 378º do mesmo normativo), nada dispõe quanto à dispensa de audiência prévia do requerido, aplica-se o regime geral do art. 366º, nº 1, devendo, consequentemente, o juiz, através de despacho fundamentado, decidir dispensar ou não essa audiência prévia, consoante entenda que a mesma é ou não suscetível de comprometer a urgência ou o efeito útil da providência.
Mas quais devem ser os critérios para esse efeito?
Comecemos pelo que nos é apresentado “legalmente”, a saber:
«1 - os consagrados na norma geral do nº 1 do art. 366º - pôr a audiência do requerido, em “risco sério” o “fim ou a eficácia da providência” (isto é verificar-se um perigo de lesão objetivo e substancial);2 - o que subjaz às providências de arresto e de restituição provisória de posse, que levou o legislador a concluir pela necessidade de excluir, nesses procedimentos cautelares, sempre, o contraditório prévio.A enunciação de critérios de referência para o afastamento do contraditório prévio do requerido passa pelo apurar do que é suscetível de afetar o efeito útil do procedimento cautelar, sendo que o diferimento do contraditório apenas é permitido na medida do indispensável à preservação de tal efeito útil. Sempre que a audiência prévia do requerido seja suscetível de importar diminuição ou eliminação do efeito útil decorrente do procedimento cautelar, deve ser derrogada tal audição, para que se logre obter plenamente o fim útil que se tem em vista com o procedimento.Assim, em situações de urgência particularmente acentuada (acrescida relativamente à normal urgência que já caracteriza os procedimentos cautelares) que traduzam necessidade de adotar e executar, de modo muito célere e num período de tempo muito curto (urgência presente), a medida cautelar requerida para que possa surtir o seu efeito útil, impõe-se que seja conferida tutela jurisdicional, com prolação de decisão (a qual é, contudo, transitória) e execução da mesma, diferindo-se para momento posterior a audição do requerido. A razão determinante da dispensa de audição prévia é, pois, neste caso, exigência de encurtamento da tramitação processual até à decisão cautelar e execução da mesma, imposta pela necessidade de acautelar imediatamente a própria situação a tutelar, com vista a que a providência cautelar realize cabalmente o seu fim.Outra situação a reclamar e justificar o afastamento do contraditório prévio abarca os casos em que o perigo para o efeito útil do processo cautelar resulte do conhecimento, pelo requerido, de que foi instaurado procedimento cautelar, impondo que se atue sem que o mesmo esteja a contar, para que não possa desencadear atos suscetíveis de frustrar o efeito útil que o procedimento visa tutelar, criando uma urgência futura a que já se não consiga, em tempo útil, dar resposta, com o inerente desencadear do frustrar da eficácia da providência (havendo, neste caso, imperiosa necessidade de atribuição de carácter secreto ao procedimento).No primeiro caso (de acentuada urgência de tutela da situação concreta internamente perspetivada), está em causa o próprio fim da providência e, no segundo caso (de necessidade de atuar com desconhecimento do requerido para obviar a uma urgência futura a que podia, posteriormente, não se conseguir dar resposta), está em causa a eficácia da providência a decretar.» [Citámos EUGÉNIA MARIA DE MOURA MARINHO DA CUNHA, em estudo publicado na Revista Jurídica Portucalense / Portucalense Law Journal N.º 21 | 2017, a págs. 46-47].
A esta luz, salvo o devido respeito, pode-se considerar como apodítico que é prioritária a observância do contraditório nas providências cautelares, constituindo a não audiência excepção que só deve ocorrer quando, em concreto, se afigure ao julgador real e sério o risco de, com ela, se frustrar o fim ou a eficácia da providência, e tal, nesses casos, compreende-se porque a audiência retarda o decretamento da providência, potencia o periculum in mora, eliminando a audiência o efeito surpresa da medida, bem podendo o requerido, nesse interim, agir por forma a inutilizar todo o interesse da medida cautelar.
É precisamente com referência ao argumento por último referido – o exercício prévio do contraditório elimina o efeito surpresa da medida, bem podendo o requerido, nesse intervalo temporal, agir por forma a inutilizar o interesse da medida cautelar – que é possível divisar o fundamento para se dar acolhimento ao recurso, isto é, que é de se dispensar o contraditório prévio do requerido num procedimento cautelar de arrolamento instaurado como preliminar da ação de divórcio, atenta a natureza e as finalidades desta providência cautelar.
Com efeito, o arrolamento visa impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens ou de documentos, razão pela qual, considerando as finalidades desta providência, a mesma deve, por norma, ser decretada sem o contraditório prévio do requerido, sob pena de se comprometer, de forma irremediável, o efeito útil do arrolamento.
Atente-se que conhecendo o requerido, de antemão, a pretensão do requerente, corre-se o risco de aquele praticar os atos de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos que a requerente pretendia precisamente evitar através do recurso a esta providência cautelar.
E nem se argumente – como invocado na decisão recorrida – que na circunstância esse risco não existe posto que o arrolamento nem sequer tem como escopo uma apreensão efetiva dos bens em causa, isto é, dos montantes existentes em dinheiro (que serão bens comuns) em diversas contas bancárias (que estão somente em nome do requerido).
Temos presente o entendimento de que o arrolamento não implica o bloqueio do saldo bancário, podendo o requerido continuar a dispor livremente desse saldo [---].
Contudo, parece-nos muito mais curial e fundado o entendimento de que tendo o arrolamento recaído sobre um saldo de um depósito bancário, este deve ficar bloqueado, por aplicação subsidiária do regime da penhora de saldos bancários, previsto no artigo 780º do n.C.P.Civil.
Nesse preciso sentido, já foi doutamente sustentado que «se o arrolamento recair sobre um saldo de um depósito bancário, esse saldo deve ficar bloqueado, por aplicação subsidiária do art. 780.º. É que, se assim não se entendesse, a providência cautelar de arrolamento não cumpriria a sua finalidade, qual seja a de garantir a conservação dos bens em caso de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação dos mesmos, razão pela qual o requerente ver-se-ia forçado a complementar o arrolamento com o pedido de decretamento de uma outra providência cautelar (não especificada), tendente a impedir a movimentação da respetiva conta bancária – sob pena de, não procedendo deste modo, o requerido poder dissipar todo o dinheiro depositado na instituição bancária –, solução que não se afigura minimamente razoável ou sustentável.». [Assim por MARCO GONÇALVES, in texto da intervenção proferida no Centro de Estudos Judiciários no dia 16 de março de 2018, no âmbito da ação de formação contínua Temas do Direito Civil e Processual Civil, https://elearning.cej.mj.pt/course/view.php?id=760, p. 15; na jurisprudência, vide neste mesmo sentido, inter alia, os acórdãos do TRL de 23.4.2015 (proferido no proc. nº 3376/14.9T8FNC-A.L1) e de 2.7.2015 (proferido no proc. nº 4899/14.5T2SNT.L2-2), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.]
Aliás, perfilhando um entendimento que se pode considerar intermédio, mas que, no fundo é sensível à mesma ordem de interesses deste segundo grupo por último citado, qual seja, o de a movimentação não ser livre após o arrolamento, pode referenciar-se a decisão no sentido de «Em caso de arrolamento de depósitos bancários, devem nomear-se como depositários desses saldos requerente e requerido, cada um na proporção de metade do respectivo valor» [Assim o acórdão do TRG de 19.6.2014 (proferido no proc. nº 1281/12.2TBEPS-B.G1), também ele acessível em www.dgsi.pt.], ou no sentido de «(…), havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respetiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.» [Citámos, agora, o acórdão do TRC de 27.02.2018, proferido no proc. nº 131/11.1TBVLF-B.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt.].
Sem embargo do vindo de dizer, parece-nos decisivo que «Na apreciação do risco da audiência do requerido, o critério legal de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os da eficácia da Justiça e não esquecendo que, se o princípio do contraditório é a regra (art. 3º, nº 1, do CPC), o domínio das providências cautelares é, já ele, de exceção (nº 2 do mesmo preceito).» [Cf. acórdão do TRE de 12.10.2017, proferido no proc. nº 2952/16.0T8FAR-B.E1, acessível em www.dgsi.pt.].
Ora, a esta luz, não pode deixar de se atentar em que, salvo o devido respeito, o objetivo do arrolamento não se reconduz, apenas, à identificação dos bens sobre os quais incide o direito do requerente, visando, também, garantir a persistência dos bens até lhe ser dado destino na ação principal.
Com efeito, o que está subjacente ao arrolamento é sempre o risco de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos e a necessidade de prevenção desse risco no sentido de assegurar a manutenção e conservação desses bens (ou documentos) de modo a garantir a efetividade do direito (ou interesse) a que o requerente se arroga e que lhe venha a ser reconhecido na ação da qual o arrolamento é dependência.
Por outro lado, é certo que o legislador, na iminência da dissolução do contrato conjugal, dá como assente a verificação de um justo receio, dispensando a respetiva prova, sendo este o alcance do nº3 do atual art. 409º do n.C.P.Civil.
Sucede que o objetivo do arrolamento não se reconduz – ou não se reconduz apenas – à identificação dos bens sobre os quais incide o direito da Requerente (no caso, os bens futuramente a partilhar), visando essencialmente assegurar a permanência e conservação desses bens até à realização da partilha e prevenir o risco de extravio, ocultação ou dissipação desses bens com vista a assegurar que a Requerente do arrolamento possa tomar posse efetiva dos bens que lhe venham a caber nessa partilha.
Aliás, esse risco não termina necessariamente – parece-nos – com a mera descrição dos bens no contexto do divórcio do casal, antes esse risco poderá manter-se, naturalmente, após a identificação/relacionação dos bens, frustrando a expetativa e o direito da Requerente relativamente aos bens que lhe venham a caber em futura partilha.
É que, como já foi doutamente salientado, o arrolamento tem como finalidade garantir a persistência dos bens até lhe ser dado destino na ação principal. [Cfr. ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Volume, a págs. 259]
Ora se assim é, existe um risco sério e real de extravio, ocultação ou dissipação dos montantes monetários em causa enquanto a descrição, avaliação e depósito respetivo não estiver efetivamente operada, e particularmente no que a este último diz respeito, se encontre salvaguardado que não mais tenha lugar a sua livre movimentação pelo Requerido.
Sendo certo que a Requerente alegou enfaticamente no requerimento inicial o temor que tem em relação ao Requerido (seu marido), de este dissipar o património comum do casal, quando se aperceber da intenção daquela de interpor a ação de divórcio, tanto mais que as diversas contas bancárias em causa estarão somente em nome do Requerido...
Por isso que, à luz das regras gerais da experiência, as particularidades do caso concreto, tal como apresentado e delineado, permitem legitimamente concluir no sentido de que, enquanto preliminar do divórcio, a citação do Requerido, antes do decretamento da providência cautelar de arrolamento, conduz ao justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de dinheiros existentes em contas bancárias do ainda casal, por parte do mesmo.
Dito de outra forma: ficará em causa a eficácia do requerido arrolamento, se tiver lugar a citação do Requerido, antes do decretamento dessa providência cautelar.
Nestes termos procedendo a apelação, com a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que, dando deferimento ao expressamente requerido quanto a esse particular, dispensa a audiência prévia do Requerido, por entender que a mesma é suscetível de comprometer o efeito útil da providência."
[MTS]
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