"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/05/2022

Jurisprudência 2021 (199)


Providência cautelar não especificada;
requisitos


1. O sumário de RP 23/9/2021 (401/21.0T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - Para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.

II - A sequela é uma faculdade inerente aos direitos reais pelo que é impossível a existência de um direito de sequela na esfera do Recorrente quando nem direito real tem a seu favor.

III - O Recorrente convoca a aquisição dos bens futuros em “emptio rei speratae” e “emptio spei”.
No primeiro caso, estamos perante bem a produzir, sendo que só depois da produção ocorrerá naturalmente o efeito translativo e aquisição do direito real.
No segundo caso, o contrato extingue-se por impossibilidade de cumprimento, dando tão-só ao adquirente a faculdade de reaver o preço pago.
No caso vertente, o Recorrente reconduz a situação em apreço à “emptio rei speratae” quando a deveria ter reconduzido à “emptio spei”.

IV - No caso vertente, a Recorrida nunca praticou qualquer acto que não permitisse a venda acordada. Com efeito, a viatura em causa nos autos não é a encomendada por si, nem tem as especificações que este indicou a Agosto de 2020, sendo certo que é a especificação que confere identidade ao veículo automóvel, e só com aquela ocorre a sua determinação. Só então o Recorrente poderia eventualmente arrogar-se no direito a um certo e determinado veículo automóvel e não a um dentro do seu género.”.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte;

"Na decisão recorrida entendeu-se não estarem verificados os requisitos para deferimento da providência cautelar.

Deste entendimento dissente o recorrente.

Vejamos, então.

Ora, preceitua o n.º 1, do artigo 362.º do Código de Processo Civil que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.

Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2 do mesmo normativo). [...]

Como se sabe a providência cautelar não especificada visa a tutela provisória de um direito ameaçado, sendo instrumental de um processo principal instaurado ou a instaurar - cf. artigo 364.º do Código de Processo Civil.

Afirma Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, I Vol, pág. 623 que “A providência cautelar surge como antecipação e preparação duma providência ulterior: prepara o terreno e abre caminho para uma providência final. A providência cautelar, nota Calamandrei, não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substancial, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material. Portanto, a providência cautelar é posta ao serviço duma outra providência, que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Este nexo entre a providência cautelar e a providência final pode exprimir-se assim: aquela tem carácter provisório, esta tem carácter definitivo”.

No que diz respeito à apreciação do requisito da titularidade do direito, a lei contenta-se com a emissão de um juízo de probabilidade ou verosimilhança, exigindo, todavia, que tal probabilidade seja justa e séria - cf. L.P. Moitinho de Almeida, in Providências Cautelares Não Especificadas, pg. 19 e segs.

Já no que concerne ao segundo requisito supra referido, o do fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, pressupõe a providência que aquele que a solicita se encontre perante meras ameaças. Se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, por falta de função útil, porque não há que evitar ou acautelar um prejuízo se este já se produziu, a não ser que a violação cometida seja o prelúdio de outras violações, que se mantenham actuais - cf. Moitinho de Almeida, in ob. cit.

Por outro lado, a violação receada não será qualquer uma, mas aquela que "modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito" - cf. Manuel Rodrigues in Processo Preventivo e Conservatório, pg. 67.

Ou seja, não basta, para o deferimento da providência, que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano. Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil.

Este último requisito há-de aferir-se já não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza.

Em suma, o que está em causa, em última análise, é obviar-se ao "periculum in mora".

Ou seja, a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.

Sabido é, que estamos no âmbito de procedimento cautelar, em termos de composição provisória do litígio, indiciada como necessária para assegurar a utilidade da decisão, para que se obtenha a efectiva tutela jurisdicional, garantindo o efeito útil da acção.

Assim sendo, e não visando resolver questões de fundo, mas antes acautelar os efeitos práticos da acção proposta ou a propor, basta um juízo de verosimilhança, afirmando-se a suficiência de uma prova sumária, assente num grau de probabilidade razoável, e não uma convicção que se poderá designar de plena, a concretizar em sede de acção, aquando do conhecimento do próprio litígio.

Ou seja, para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, nos termos do artigo 381.º, do Código de Processo Civil, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.

Também não é despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado, assegurando consequentemente a efectividade do direito que está a ser posto em causa ou ameaçado, para além do prejuízo decorrente do decretamento da providência não dever exceder o dano que com a mesma se pretende evitar.

Precisando um pouco mais, diga-se que a imposição de uma medida ou providência cautelar pressupõe a existência, embora analisada em termos sumários, de um direito na esfera jurídica do requerente, no momento exacto em que formula a sua pretensão em juízo, pese embora a medida cautelar não perca a sua natureza instrumental relativamente à acção, reafirmando-se também quanto ao receio de lesão grave e dificilmente reparável, a inexigibilidade de um juízo de certeza, bastando um de verosimilhança, ou probabilidade séria.

Em ambos os casos, importa que o juízo a fazer assente numa realidade, ainda que sumariamente evidenciada, e não em considerações sem uma base factual que as suporte, devendo verificar-se, no que concerne ao justo receio, a ocorrência de prejuízos reais e certos, em termos de uma prudente avaliação de tal realidade, e não uma apreciação ou juízos de cariz meramente subjectivo, emocionalmente determinados.

Ora, nas situações, como a dos autos, em que a decisão tem como fundamento a inexistência dos requisitos para o decretamento da providência deduzida, traduzindo-se assim num julgamento antecipado sobre o mérito da mesma, tal decisão, por isso, só deverá ocorrer quando se mostre, por forma evidente e inquestionável, ser desnecessária qualquer instrução ou discussão posterior.

Como invoca a Recorrente, são quatro os requisitos para decretamento de providência cautelar não especificada:

(i) existência aparente do direito (subjetivo) na esfera do Requerente;
(ii) perigo de lesão eminente de tal direito;
(iii) proporcionalidade da medida face ao direito que pretende salvaguardar,
e (iv) inexistência de providência cautelar especificada adequada ao caso.
 
Ora, sem a existência do direito na esfera do Recorrente revela-se desnecessário a análise da existência dos demais requisitos.

Recordando a providência apresentada, é requerido que a Recorrida “se abstenha de, por qualquer meio, entregar a qualquer que seja o veículo automóvel da marca Mercedes, modelo … que a primeira requerida se obrigou a transmitir para o requerente, e que, de igual modo, e em relação ao mesmo veículo automóvel, se abstenham de celebrar com terceiros qualquer contrato de compra ou praticar atos de transmissão, incluindo subscrição de declarações de compra e venda e consequentemente atos de registo automóvel nas conservatórias competentes (…)”

Ora, o Recorrente entende que lhe assiste um direito obrigacional na sequência do contrato que alega que foi celebrado.

Como ponto prévio, importa assinalar que não consta do elenco de factos dados como provados a celebração de um contrato de compra e venda entre as partes, mas tão-só que a Recorrida propôs ao Recorrente a aquisição de um veículo automóvel, tendo este aceite (factos provados 3 e 4).

Portanto, a natureza do acordo entre as partes é dúbia, como sublinha o Tribunal a quo na sua apreciação de direito.

Tal dúvida quanto à qualificação jurídica não impediu, contudo, o Tribunal a quo de declarar como inteiramente improcedente a providência requerida, pois o objeto do suposto negócio nem sequer existe.

Com efeito, atentando no facto provado n.º 21 resulta claro que “Não foi fabricado, e provavelmente não o será, um veículo com as configurações escolhidas pelo requerente da providência.” [...]

A Recorrida nada pode fazer para inverter este mecanismo, sendo que nenhuma diligência que possibilite a produção do veículo desejado está ao seu alcance.

Ademais, a Recorrida nunca praticou qualquer acto que não permitisse a venda acordada.

Com efeito, e ao contrário do que afirma o Recorrente, a viatura que se vem de referir não é a encomendada por si, nem tem as especificações que este indicou a Agosto de 2020 (cfr. Ponto 15).

É a especificação que confere identidade ao automóvel, e só com aquela ocorre a sua determinação. Só então o Recorrente poderia eventualmente arrogar-se no direito a um certo e determinado automóvel e não a um dentro do seu género.

O Recorrente, aliás, nas suas alegações de Recurso aceita tal facto, ao não impugnar o ponto 21 da matéria de facto dada como provada.

Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter a decisão recorrida.

Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação."

[MTS]