"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/05/2022

Jurisprudência 2021 (194)


TJ; reenvio prejudicial;
regime


1. O sumário de RG 30/9/2021 (3470/14.6TBLRA-A.G1) é o seguinte:

I - A competência do TJUE para decidir a título prejudicial implica, necessariamente, a verificação de dois requisitos essenciais: que, em processo pendente perante um órgão jurisdicional de um Estado-Membro se suscite uma questão respeitante à interpretação dos Tratados ou à aferição da validade e interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União; que o órgão jurisdicional nacional entenda que tal questão é necessária ao julgamento da causa.

II - Não se verificam os pressupostos para o recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial se a fundamentação da decisão assentou de forma direta na análise e ponderação de normas legislativas internas do Estado Português, sendo que a apelante apenas suscita, de forma expressa, a questão da interpretação ou validade das normas dos arts. 4.º, n.º 1, al. c), e 5.º do RGPTC, as quais configuram disposições de direito interno.

III - A avaliação das condições em que se processa a audição da criança em processo tutelar cível de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais deve ser sempre feita casuisticamente, em função da idade e maturidade da criança, bem como do seu estado psicológico e da situação concreta vivenciada pela criança e pelos progenitores, no âmbito das competências que a lei atribui ao juiz e dentro dos parâmetros previstos no artigo 5.º do RGPTC.

IV - O artigo 5.º do RGPTC, ao reafirmar, no seu n.º 1, o direito da criança a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse impõe ao julgador a valoração efetiva das declarações prestadas pela criança, ainda que atendendo, em conjunto, a todos os fatores relevantes que são determinantes na prossecução do seu superior interesse, não esquecendo a ponderação crítica da opinião revelada pela criança em função da sua idade, da maturidade revelada, bem como da relevância dos motivos ou das razões apresentadas pela criança na exposição das preferências ou opiniões manifestadas.

V - Cabe ao julgador refletir e valorar criticamente a vontade expressamente transmitida pela criança através da respetiva audição, tendo como limite e critério orientador a prossecução de outros direitos ou princípios essenciais, entre os quais o do superior interesse da criança, o qual pode não coincidir integralmente com a opinião manifestada.

VI - Não podem ser definidos critérios rígidos para definir com quem a criança deverá residir habitualmente, antes se decidindo em cada caso, conforme for adequado, correto e melhor corresponder às suas necessidades, sempre de harmonia com o seu superior interesse, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente, a capacidade revelada pelos progenitores para prover à satisfação das necessidades básicas de subsistência, proteção, aprovação, ensino, estimulação e afeto, consistentes e apropriados ao interesse da criança, bem como a disponibilidade revelada por cada um dos progenitores para promover relações habituais do filho com o outro.

VII - O recurso à providência tutelar cível de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais pressupõe o incumprimento por ambos os pais do acordo ou decisão final atinente ao regime da regulação do exercício das responsabilidades parentais ou a ocorrência de circunstâncias de facto supervenientes que justifiquem essa alteração.

VIII - Resultando dos factos dados como provados que a progenitora não só tem revelado incapacidade para prover à satisfação das necessidades básicas de subsistência, proteção, aprovação, ensino, e estimulação consistentes e apropriados ao interesse da sua filha, incumprindo com as medidas de promoção e proteção aplicadas em benefício da criança no correspondente processo, as quais oportunamente subscreveu, verifica-se uma relevante alteração superveniente das circunstâncias, com reflexo na segurança, saúde, educação, bem-estar, equilíbrio emocional e desenvolvimento integral da criança, justificativa da fixação da residência habitual da criança junto do pai.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.2. Nas conclusões XLVII e XLVIII das alegações vem a apelante suscitar o incidente de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), no sentido de esclarecer: «Qual o valor a ser atribuído às declarações da Menor, em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais, no âmbito da decisão a ser proferida pelo Tribunal», tendo em conta o preceituado nas normas dos arts. 4.º, n.º 1, al. c), e 5.º do RGPT.

Estabelece o referenciado artigo 267.º do TFUE, no que aqui releva:

«Artigo 267.º
(ex-artigo 234.º TCE)
O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.(…)».
 
Tal como resulta de forma expressa do citado preceito, o TJUE tem competência para decidir, a título prejudicial sobre a interpretação dos Tratados e relativamente à validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Deste modo, a competência do TJUE para decidir a título prejudicial implica, necessariamente, a verificação de dois requisitos essenciais: que, em processo pendente perante um órgão jurisdicional de um Estado-Membro se suscite uma questão respeitante à interpretação dos Tratados ou à aferição da validade e interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União; que o órgão jurisdicional nacional entenda que tal questão é necessária ao julgamento da causa.

Explicando a razão de ser do sistema instituído relativamente à interpretação do Direito Comunitário e da apreciação da validade dos atos das instituições comunitárias, refere João Mota de Campos (Cf. Direito Comunitário, II Vol., - O Ordenamento Jurídico Comunitário, 5.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa – p. 439): «o objectivo visado é não só evitar divergências na interpretação ou apreciação de validade das normas comunitárias mas, também, não sobrecarregar o TJCE com uma massa considerável de casos menores - como certamente aconteceria se todos os tribunais, qualquer que fosse o seu nível hierárquico, fossem obrigados a submeter-lhe, a título prejudicial, questões dessa natureza suscitada perante eles».

Com efeito, tal como esclarece ainda o citado Autor, «o facto de o direito comunitário poder ser invocado num litígio pendente nos tribunais nacionais não tem por efeito conferir ao Tribunal das Comunidades Europeias a competência para dele conhecer. Bem diversamente: como tivemos ocasião de expor, o Tribunal de Justiça dispõe, apenas, de uma competência de atribuição, enquanto os tribunais nacionais constituem as jurisdições de direito comum habilitadas a aplicar o direito comunitário aos casos concretos que lhe são submetidos.

E, como noutra oportunidade tivemos também ensejo de sublinhar, o Tribunal Comunitário, que não é hierarquicamente superior aos Tribunais nacionais, em caso algum funciona como tribunal de recurso das decisões por ele proferidas» (Cf. João Mota de Campos - Obra citada - p. 435).

Por outro lado, importa ainda sublinhar que, mesmo no âmbito do reenvio obrigatório, ou seja, naqueles casos em que a decisão do tribunal nacional não é passível de recurso (o que não sucede no caso em apreciação), «vem sendo consensualmente entendido que perante uma norma de direito comunitário cuja interpretação não suscite nenhuma dúvida razoável, por respeitar a um caso em que, embora outras interpretações sejam possíveis, qualquer jurista ainda que pouco informado sempre optaria pela solução do juiz nacional, haverá lugar à dispensa da obrigação de reenvio» (Cf., o Ac. TRL de 18-06-2019 (Relator: José Capacete), p. 30690/15.3T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, é jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que «as jurisdições nacionais gozam de um amplo poder de apreciação sobre se uma decisão sobre um ponto de Direito Comunitário lhes é necessária para os habilitar a julgar o litígio. Esse poder de apreciação é extensivo à determinação da fase ou momento processual em que há lugar ao reenvio ao Tribunal de Justiça da questão prejudicial» (Cf. João Mota de Campos - Obra citada - p. 454).

Do exposto resulta claro que «é ao juiz do processo que cabe decidir se na apreciação do caso em litígio se coloca alguma questão de interpretação ou de apreciação de validade de norma comunitária aplicável que justifique o pedido de intervenção do T.J.U.E., caso em que então formulará ele próprio as questões que entenda necessitarem de ser esclarecidas pelo referido Tribunal.

As quais formulará e enviará no momento em que considerar mais oportuno – de acordo com critérios de economia e utilidade processual. (…)

Por outro lado, o Tribunal de Justiça da União Europeia não tem competência, face ao disposto no citado artigo 267º do T.F.U.E., para se pronunciar sobre a compatibilidade de uma disposição nacional com o Direito Comunitário, nem para interpretar disposições legislativas nacionais» (Cf., o Ac. TRP de 07-05-2018 (Relator: Augusto de Carvalho), p. 440/16.3T8FLG.P1, disponível em www.dgsi.pt).

Efetivamente, como refere João Mota de Campos (Obra citada - p. 465): «se o tribunal nacional considerar que o litígio subjudice não deve ser decidido de acordo com as normas comunitárias mas tão-somente na conformidade das disposições do direito interno, parece evidente que não pode ser-lhe imposta a obrigação de solicitar a interpretação ou apreciação da validade de uma norma comunitária desprovida de interesse para o julgamento da causa - e isto ainda que alguma das partes tenha indevidamente invocado e suscitado a questão da sua interpretação ou validade.

É que, num caso assim configurado, a questão da interpretação ou da apreciação de validade é totalmente desprovida de pertinência (…)».

Em síntese, a propósito do regime jurídico do mecanismo do reenvio prejudicial, que vem suscitado pela apelante em sede de alegações de recurso, podemos assentar nas seguintes conclusões, tal como enunciadas no Ac. TRL de 18-06-2019, antes citado:

«Resulta de tudo quanto antecede que no âmbito do reenvio prejudicial não se colocam questões:
- relativas à interpretação ou apreciação das normas legislativas ou regulamentares de direito interno;
- relacionadas com a compatibilidade destas normas ou regulamentos com o direito comunitário;
- respeitantes à validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais».

E, porque assim, resulta evidente a falta de fundamento da pretensão de reenvio prejudicial para o TJUE no caso em análise, porquanto se verifica que a fundamentação que foi expressa na sentença recorrida reporta-se de forma direta à análise e ponderação de normas legislativas internas do Estado Português.

Aliás, mesmo a apelante apenas suscita, de forma expressa, a questão da interpretação ou validade das normas dos arts. 4.º, n.º 1, al. c), e 5.º do RGPTC, as quais configuram disposições de direito interno.

Não há, pois, lugar ao reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE."

[MTS]