"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2023

Jurisprudência 2022 (216)


Petição inicial;
causa de pedir; ininteligibilidade*


1. O sumário de RL 10/11/2022 (1247/21.1T8AMT.L1-2) é o seguinte:

I - É inepta a Petição Inicial em que o Autor, com vagas e confusas alegações de facto e de direito, ainda que complementadas pelos documentos juntos, peticiona a condenação da Ré a indemnizá-lo, alegando, em suma, que um determinado banco, que veio entretanto a ser adquirido e a fundir-se com aquela, intentou contra si, em 2005, uma execução, fundada no incumprimento de contrato de mútuo com hipoteca do veículo cuja aquisição foi financiada, vindo a ser aí paga a dívida e a exequente a proceder à penhora do veículo, o que configurou um enriquecimento sem causa, tendo aquele sofrido danos, designadamente o da privação do uso do veículo – cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC.

II - Sendo substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender, com o mínimo de rigor, o que poderá ter sucedido na ação executiva, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir, ficando mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado).

III - Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, ante a natureza subsidiária deste instituto.

IV - Para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Sendo evidente, no presente processo, que a Ré não alcançou qual possa ser a causa de pedir, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, incluindo quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º, n.º 3, do CPC). Tão pouco tendo cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).

A única questão a decidir é a de saber se a Petição Inicial é inepta.

No despacho saneador recorrido, teceram-se, na fundamentação, as seguintes considerações (sublinhado nosso):

“Procurando apreciar a questão suscitada, cumpre salientar que ineptidão é um vício de conteúdo da petição inicial, que impede a função conformadora do objeto do processo.
No caso da causa de pedir, no dizer de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Código de Processo Civil Anotado, Volume, 1.º, 4.º edição, Almedina, pág. 373 e seguintes, a ininteligibilidade verifica-se sempre que o pedido não seja a consequência do instituto jurídico alegado na causa de pedir, isto é, que haja oposição entre o pedido e causa de pedir.

Ora, no caso vertente o excesso de penhora no âmbito de uma execução é manifestamente um caso de responsabilidade civil, a qual poderá ser simultaneamente do exequente (art. 819.º do CPC 2013), do agente de execução, ou até do Estado, por falta de controlo da execução, neste sentido, Ac. TRC de 13.05.2014, relatado por Inês Moura, Ac. RL de 09.07.2015, relatado por Ezaguy Martins, disponíveis em http://www.dgsi.pt.

O tribunal competente será o do lugar onde o processo de execução teve lugar e não o da sede da antiga exequente, carecendo de ser alegados os requisitos da responsabilidade civil previstos no art. 483.º do Cód. Civil.

Ora, caso vertente foram deduzidos pedidos próprios de uma obrigação de indemnização (art. 562.º do Cód. Civil), quando no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, o único pedido admissível é o da restituição do valor do empobrecimento, nos termos dos art. 473.º, n. 2 e art. 479.º, ambos do Cód. Civil, vg. Ac. TRC de 20.10.2015, relatado por Maria João Areias e disponível em http://www.dgsi.pt.

Logo, existe uma incompatibilidade entre a causa de pedir invocada (enriquecimento sem causa), e os pedidos invocados, pelo que se verifica uma ininteligibilidade da causa de pedir e uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, que impede a definição do objeto do processo e o prosseguimento da causa.

Neste conspecto, note-se que apesar de o Autor considerar que a Ré compreendeu a petição inicial, é notório a dificuldade da mesma em compreender o valor do excesso de penhora (não alegado), a sua relação com a medida do empobrecimento, e qual a conduta que lhe é concretamente imputada a si ou aos seus representantes na execução (não alegada), pelo que não poderemos deixar de considerar que o Autor alegou uma causa de pedir incompatível com os pedidos formulados, e que o Réu não a compreendeu adequadamente.

Afigura-se deste modo, que ocorre uma ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade e contradição entre a causa de pedir e o pedido, a qual é geradora de nulidade de todo o processo.

Neste conspecto, afigura-se-nos que o Autor deverá aproveitar o despacho como uma oportunidade, para estruturar novamente a sua causa de pedir, propondo a ação no tribunal competente e concretizando precisamente os fundamentos da causa de pedir, enquadrando os requisitos da responsabilidade civil, as datas e valores das penhoras, onde existiu excesso, alegando o motivo pelo qual o direito não se encontra prescrito (art. 482.º e 498.º, n.º 1 e 4 CPC), entre outros formulando os pedidos agora apresentados, e deduzindo subsidiariamente, o pedido de enriquecimento sem causa, pelo valor do empobrecimento, sob pena de improcedência por se demonstrar que poderia ter obtido a sua pretensão de outro modo, atento a natureza subsidiária do instituto invocado, nos termos do art. 474.º do Cód. Civil.”

Vejamos.

A nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória nominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição dos réus da instância - cf. artigos 186.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. b), todos do CPC.

Nos termos do art. 186.º, n.ºs 1 e 2, do CPC da petição, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, sendo inepta a petição “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

De forma sintética, e tendo presente o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 3 e 4, do CPC, podemos dizer que o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter e a causa de pedir corresponde ao conjunto de factos jurídicos/factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão, o que significa que o autor deve concretizar os factos em que baseia a sua pretensão, em termos inteligíveis, não sendo suficiente o apelo a conclusões jurídicas, conceitos legais ou a invocação do direito sem indicação da sua origem. De referir que o conceito de causa de pedir acolhido no art. 186.º do CPC se reporta a um conjunto de factos essenciais, nucleares ou principais, não abrangendo os factos que, embora essenciais (em sentido amplo), são complementares ou concretizadores daqueles.

No tocante à falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, lembramos, pela sua notável clareza, as palavras de Alberto dos Reis, no seu “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 371-372 (anotação ao art. 193.º do Código então vigente), obra que, nesta parte, mantém plena atualidade. Explicava este autor que, tal como sucedia quanto à nulidade por “desconhecimento do pedido”, esta outra nulidade “pode cometer-se:

1) Por omissão;
2) Por obscuridade.

Com efeito, podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir.

Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão: é o caso de a petição omissa quanto ao pedido ou à causa de pedir; mas aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucedeu é que a acção naufraga.

(…) Por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descabam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito”.

Efetivamente, nem sempre é fácil distinguir uma petição inepta, por falta de causa de pedir, de uma petição deficiente, por insuficiência na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, somente no primeiro caso sendo aplicável o disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC, com a consequente nulidade de todo o processo. [...]

Também Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 379-380, se referia à posição do réu perante uma petição inepta por “desconhecimento da causa de pedir”, referindo que a jurisprudência das cautelas aconselhava a que não se limitasse a arguir a ineptidão, para não correr o risco de ficar sem defesa se a arguição viesse a ser julgada improcedente; afirmava que o juiz não podia deferir a arguição de ineptidão sem ouvir previamente o autor, porque “pode suceder que o réu tenha dado à petição o seu verdadeiro sentido, e em tal caso não há motivo para o tribunal a considerar inepta. Se, apesar da obscuridade ou ambiguidade do pedido ou da causa de pedir, o réu pôde elaborar a sua contestação, isso quer dizer que lhe foi possível interpretar de certa maneira o pedido ou a causa de pedir; tudo está agora em saber se a interpretação dada pelo réu é exacta ou, noutros termos, se o sentido atribuído ao pedido ou à causa de pedir corresponde fielmente àquilo que o autor quis exprimir.

Em caso afirmativo, o juiz deve indeferir a arguição do réu; em caso negativo, deve deferi-la. Na verdade, se, ouvido o autor, este declarar que a sua petição tem o sentido que o réu lhe atribuiu, a obscuridade ou confusão fica desfeita. O pedido ou a causa de pedir passará a ter, por acordo das partes, a significação e o alcance expresso na contestação. Se, pelo contrário, o réu tiver atribuído à petição sentido diferente do que o autor quis exprimir, a ineptidão torna-se inevitável”.

Portanto, para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Com efeito, constituiria ato inútil, em ostensiva violação do princípio da limitação dos atos (cf. art. 130.º do CPC), a realização pelo Tribunal de atos de instrução para depois proferir uma decisão de mérito, concluindo pela improcedência da ação em virtude da falta de alegação e prova de factos constitutivos do direito do autor (cf. artigos 5.º, n.º 1, 410.º e 411.º do CPC e art. 342.º do CC).

Quanto à contradição entre o pedido e a causa de pedir, continuamos a recordar as palavras de Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 380-381: “a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado duma conclusão; a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão.

A petição inicial, para ser uma peça bem elaborada e construída, deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). O autor, ao preparar e organizar a petição, há-de raciocinar como raciocinará mais tarde o juiz, na sentença, para julgar procedente a acção. O esqueleto da petição terá de ser forçosamente um silogismo, sob pena de não poder desempenhar convenientemente a função que lhe é própria. Não quer isto dizer, é claro, que o silogismo apareça explicitamente enunciado no articulado; o que pretendemos significar é que, se a petição não puder transformar-se, em substância, num silogismo, se não tiver sido concebida e elaborada sobre a base dum silogismo mentalmente formulado, há-de ser fatalmente uma peça infeliz e comprometedora.

Pois bem. É da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada.

Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir.”

Há agora que transpor estas considerações para o caso dos autos, atentando na Petição Inicial, tendo presente que na sua interpretação, como das demais decisões judiciais, são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, as regras da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos artigos 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado. De referir ainda a relevância de que se revestem os documentos juntos pelas partes, não apenas no plano probatório, mas também para clarificar o sentido das alegações feitas nos articulados, podendo servir para colmatar algumas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, conforme vem sendo pacificamente aceite pela jurisprudência – neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 07-11-2019, proferido na Revista n.º 6414/16.7T8VIS.C1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, mormente a seguinte passagem do respetivo sumário: “I - A remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos que sustentam o pedido.”

O Autor, de forma pouco clara, mas ainda assim inteligível, peticiona a condenação da Ré no pagamento de pagamento de indemnização por alegados danos patrimoniais e morais, incluindo o atinente à “privação do uso do veículo” de que é proprietário. Mas, desde já adiantamos, que não logramos descortinar qual possa ser a respetiva causa de pedir (nem identificamos causas de pedir subsidiárias), ou seja, quais os factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão. Aliás, mesmo as razões de direito invocadas como fundamento da ação estão expostas de forma confusa, com a citação de alguns artigos do Código Civil que dizem respeito a diferentes institutos, desde o enriquecimento sem causa (a que é dado maior destaque), ao cumprimento de obrigações e à restituição do respetivo título, e ainda à responsabilidade civil extracontratual.

Parece, é certo, que o Autor se pretende prevalecer daquele instituto, que se encontra consagrado nos artigos 473.º a 482.º do CC. [...] 

Mais lembramos que a natureza subsidiária da obrigação de restituir se encontra expressamente prevista na lei, dispondo o art. 474.º do CC, que “(N)ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.” [...]

Atentando no que é alegado na Petição Inicial, não vislumbramos, nem, aliás, a Ré o descortinou, que possa ter existido uma qualquer situação propiciadora do enriquecimento desta, pois que não foi alegado que, na pendência da aludida ação executiva movida pelo Interbanco, S.A., a Ré chegou a assumir a posição de exequente e tivesse recebido qualquer quantia ou que a então exequente tivesse recebido algo mais para além da quantia exequenda. Note-se, que a Ré, na sua Contestação, na parte em que invoca a exceção de ilegitimidade, até alega que o contrato de financiamento foi cedido à Fénix Cartera SARL por contrato celebrado a 22-12-2007, nada tendo sido alegado, por qualquer uma das partes, que permita configurar um enriquecimento injustificado da Ré, designadamente que esta beneficiou de um aumento do ativo patrimonial, de uma diminuição do passivo, do uso ou consumo de coisa alheia ou do exercício de direito alheio, suscetíveis de avaliação pecuniária, de poupança de despesas …

O Autor, porventura para minimizar o risco de ser condenado como litigante de má fé, limitou-se a fazer algumas afirmações vagas e abstratas, alegando, no que ora importa, que o veículo automóvel hipotecado foi indicado à penhora, pela Exequente e que, na sequência das diligências de penhora efetuadas no âmbito daquele processo executivo - sem que tenha alegado que diligências foram essas -, a dívida exequenda ficou satisfeita; mas que, não obstante isso, a Ré “procedeu, ainda, à penhora do veículo que constituía o objeto do contrato de financiamento”.

Ora, esta afirmação é desprovida de sentido e conteúdo útil, não só porque nada foi alegado que permita considerar que a Ré fosse então exequente, mas também porque do próprio requerimento executivo junto pelo Autor resulta ter sido logo nomeado à penhora, como não podia deixar de ser (cf. art. 835.º, n.º 1, do anterior CPC), o veículo hipotecado, pelo que, das duas uma: ou o veículo foi penhorado e vendido e com o produto da venda foi paga (ainda que apenas uma parte) da quantia exequenda - o que não parece ser o caso, já que, se bem se percebe, o Autor continua a considerar-se proprietário do veículo (de cujo uso ficou alegadamente privado); ou o veículo não chegou sequer a ser penhorado.

Seja como for, a penhora nunca podia logicamente, nos termos da lei, ter sido efetuada pela parte, mas apenas pelo Agente de Execução (cf. art. 808.º do anterior CPC), havendo que interpretar o alegado na Petição Inicial (complementada pelos documentos juntos) como querendo significar que a penhora do veículo foi requerida pela então Exequente (que, repete-se, nada indica que seria a ora Ré), mas, na realidade, não chegou a ser efetuada (pelo menos o Autor não alega que o foi e dos documentos que junta nada indica, antes pelo contrário, que tenha sido penhorado o veículo hipotecado).

Assim, a alegação de que a ação executiva serviu para enriquecer a Ré a expensas do Autor constitui uma afirmação puramente conclusiva e genérica, estando a Petição Inicial desprovida de substrato fáctico que nos remeta para a figura do enriquecimento sem causa.

Tão pouco se poderá entender que a pretensão do Autor, a ser indemnizado, esteja fundada em factos subsumíveis à responsabilidade civil, mormente por factos ilícitos. [...]

Atentando na Petição Inicial, é verdade que o Autor invocou danos, mas é também evidente que deixou de alegar os factos essenciais atinentes aos demais pressupostos da responsabilidade civil, designadamente o facto ilícito que a Ré possa ter praticado (por ação ou omissão). De referir que, no desenvolvimento hipotético do que o Autor parece afirmar, tal matéria poderia, quando muito, reportar-se a uma penhora indevida, realizada após integral pagamento da quantia exequenda, o que, conforme bem assinala o Tribunal recorrido, seria passível de configurar um caso de responsabilidade civil, designadamente do exequente, do agente de execução ou até do Estado.

Mas, ante o cariz subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa - que o Autor considera ser aplicável à situação que, de forma tão lacunar e confusa, descreve -, seria substancialmente incompatível alegar, do mesmo passo (e não como causa de pedir subsidiária), para fundar a obrigação pecuniária a que se julga com direito, por um lado, a falta de causa de um suposto enriquecimento da Ré e, por outro lado, uma atuação desta que a teria feito incorrer em responsabilidade civil.

Em conclusão, sendo inócuos e substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender minimamente o que poderá ter sucedido na ação executiva indicada, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir. Pelo menos não logramos discernir qual possa ser, ficando-nos mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado). Por outras palavras, o Autor não alegou, de forma inteligível, os factos essenciais integrantes da causa de pedir, isto é, os factos substantivamente relevantes constitutivos do direito que se arroga, não tendo carreado para os autos matéria fáctica passível de ser subsumida na previsão das normas que enformam o instituto do enriquecimento sem causa ou do regime da responsabilidade civil.

Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, o que o Autor/Apelante continua sem perceber, face às afirmações confusas feitas na sua alegação recursória (designadamente quando afirma que “pretende a restituição/indemnização fundada no instituto do enriquecimento sem causa” e que o “pedido indemnizatório foi equitativo e baseou-se na medida do empobrecimento do Autor alegada na PI”).

E não se diga que a Ré percebeu qual é a causa de pedir, sendo caso para aplicar o disposto no art. 186.º, n.º 3, do CPC. Pelo contrário, é evidente que a Ré não o alcançou, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, designadamente quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, pelo que, na esteira das considerações supra, para as quais remetemos, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.

Finalmente, esclareça-se que nenhuma razão assiste ao Apelante quando aventa a possibilidade de um convite ao aperfeiçoamento da Petição Inicial. Com efeito, resulta claro da lei que não tem cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta, conforme vem sendo afirmado pacificamente pela doutrina e na jurisprudência. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 18-10-2016, no processo n.º 203848/14.2YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário, pelo seu interesse, se passa a citar: “Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al. b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.” Portanto, apesar do carácter vinculado do despacho atinente ao aperfeiçoamento fáctico dos articulados, o mesmo não tem lugar quando o vício da petição inicial seja insanável, sob pena de violação do princípio dispositivo consagrado designadamente nos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem a questão da ineptidão da petição inicial.

Segundo se consegue intuir, parece que teria havido um excesso de penhora no anterior processo executivo, dado que, apesar de ter sido penhorado (e vendido?) o veículo hipotecado, a quantia exequenda teria sido satisfeita por quantias e valores depositados num Banco. 

É claro que, mesmo que venha a ser ultrapassada num outro processo a ineptidão da petição inicial, ainda haverá que tirar as consequências da não invocação do excesso de penhora no processo executivo. Quanto a este aspecto, há que partir do pressuposto de que os meios de defesa do executado não correspondem a meras faculdades que essa parte pode utilizar se quiser (e em alternativa à utilização de meios extraprocessuais), mas antes a verdadeiros ónus causadores de preclusões.

Parafraseando um título célebre, tornado, entretanto, um lugar-comum, há que levar a sério o processo executivo.

MTS


29/06/2023

Jurisprudência 2022 (215)


Divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RP 8/11/2022 (5744/20.4T8MTS.P1) é o seguinte:

I - Numa acção de divisão de coisa comum, na qual o réu formula pedido reconvencional para reconhecimento e compensação da sua maior contribuição para a aquisição desse bem, não há uma tramitação idêntica, para a discussão e decisão do objecto de cada um dos pedidos – da acção e da reconvenção – mas elas são complementares e podem ser agregadas, por inexistência de incompatibilidade intrínseca.

II - Não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.

III - Nessa hipótese, os poderes de gestão processual do juiz permitirão definir os termos da tramitação a observar, acolhendo a reconvenção sob a forma de processo comum, definindo o conteúdo dos direitos em litígio e prevenindo a necessidade de instauração de outras acções.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A primeira questão colocada pelo apelante, refere-se à decisão de fixação das quotas dos consortes, que a decisão em crise afirma resultar também do acordo do réu, sendo de metade do direito de propriedade para cada um.

Sendo essa a pretensão da autora, isso equivaleria, nessa parte, a uma confissão do pedido.

Porém, apesar de o réu não ter posto em causa o conteúdo do negócio de que resulta a compropriedade, descrito supra enquanto facto provado, o que se constata é que ele põe em causa que daí resulte necessariamente que a sua quota no direito de propriedade seja equivalente à da autora. Alega que ela deve ser fixada na proporção daquilo que pagou, que refere ter sido o triplo do que pagou a autora.

Assim, em primeiro lugar, não pode dar-se imediatamente por adquirido que as quotas de ambos os consortes sejam iguais.

Por consequência, deve discutir-se sobre se pode ser admitida a pretensão do réu a que a sua quota seja fixada em valor superior. Seguidamente, sendo caso disso e quando for oportuno, deverá decidir-se qual a proporção de cada uma das quotas.

Note-se que, para se discutir a proporção da quota de cada um dos consortes, não carece de ser admitida a reconvenção do réu. Com efeito, dos arts. 925º e 926º, nº 2 do CPC resulta que, desde que impugnadas as quotas indicadas pelo autor, deve o tribunal decidir tal questão, produzidas as provas necessárias.

Assim, de resto tal como entendeu dever fazê-lo o tribunal recorrido, cabe decidir, no âmbito da apreciação do próprio pedido da autora, qual a proporção de cada uma das quotas (sua e do réu).

Sobre esta matéria, o art. 1403º, nº 2 do C. Civil dispõe: “2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”

No caso, tal como resulta da escritura pública de aquisição do imóvel por ambas as partes, a venda foi-lhes feita “em comum e partes iguais”, tendo sido com esse conteúdo que ambos aceitaram o negócio.

É, assim, inequívoco que o direito de propriedade foi adquirido por ambos e em partes iguais, ou seja, adquirindo cada um deles uma quota desse direito quantitativamente igual à do outro.

Esta realidade de forma alguma se altera caso qualquer deles, para satisfação dos custos inerentes à aquisição, tenha aplicado maior ou menor capital próprio nessa função. Isso poderá gerar um direito de crédito de um sobre o outro, mas jamais é apto a alterar a proporção da quota de cada um deles.

Pelo exposto, sem prejuízo de uma fundamentação não inteiramente coincidente, não deixa de confirmar-se a decisão recorrida no respeitante à fixação das quotas de cada um dos sujeitos nesta acção de divisão de coisa comum: são iguais, correspondendo cada uma a metade do direito de propriedade sobre a fracção em causa.

Somos, assim, remetidos para a segunda ordem de questões: sobre se deve aceitar-se nesta causa, por via da admissão do pedido reconvencional deduzido pelo réu, a discussão sobre um eventual crédito do réu sobre a autora, por ter satisfeito em quantidade superior o preço do bem adquirido por ambos, para que uma tal realidade seja levada em conta na divisão a concretizar, designadamente em sede do cálculo das tornas que qualquer deles deva satisfazer ao outro.

Recorde-se que o tribunal rejeitou essa possibilidade por duas razões: não proceder tal pretensão do réu/reconvinte, do mesmo facto de que emerge o pedido da autora; e haver incompatibilidade entre as formas de processo adequadas à apreciação de cada uma das pretensões.

No que respeita ao primeiro obstáculo, só podemos concordar com o apelante.

Com efeito, o facto de que procedem quer a pretensão de divisão (da autora), quer a subsequente pretensão de repartição do produto da divisão em termos não equivalentes (do réu) é o mesmo, embora surja complementado por outros, no caso da pretensão do réu. Esse facto é a compropriedade do imóvel, a que se irá pôr fim. Depois, para se discutir e decidir da pretensão do réu, haverão [sic] se se apurar e apreciar outros factos, designadamente os que alega quanto à diferença assinalável de contribuição para a aquisição do mesmo imóvel. Mas isso não exclui a identidade do facto jurídico de que emerge cada uma das pretensões.

Podemos, pois, considerar preenchido o requisito da al. a) do nº 2 do art. 266º do CPC.

Quanto ao segundo obstáculo, cumpre igualmente discordar da decisão do tribunal a quo, de resto em concordância para com a jurisprudência mais actual, quer do STJ, quer das várias Relações, que o apelante cita com pertinência.

Dispõe o nº 3 do art. 266º do CPC: “Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.” E dispõe o nº 2 do art. 37º: “Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio."

Do regime assim fixado resulta que a reconvenção deve ser admitida ainda que ao pedido do réu corresponda forma de processo diferente, desde que não haja uma manifesta incompatibilidade da tramitação desse pedido e a do autor, e nisso se identifique um interesse relevante ou uma necessidade para a obtenção de uma justa composição do litígio.

No caso, a tramitação da pretensão da autora é meramente a da divisão do imóvel comum, que tenderá a implicar a adjudicação deste a um deles e a composição do quinhão do outro em dinheiro, ou a venda do imóvel, com repartição do capital que isso gerar. A do réu, a montante dessa, é a de que lhe seja reconhecido que contribuiu em medida muito superior para a aquisição do bem a dividir (alega ter pago 475.231,52€, numa proporção de três vezes mais do que pagou a autora – cfr. art. 46º da contestação), devendo ser-lhe reconhecido, a esse título, um crédito sobre a autora, o qual haverá de ser levado em conta nesse momento da adjudicação do imóvel ou da repartição do produto da venda, para que desse acréscimo seja compensado.

Assim, para acomodar ambas as pretensões, e considerando o que até agora já se processou (decisão de indivisibilidade e fixação das quotas) o processo poderá tramitar de seguida sob os termos do processo comum numa fase anterior à da conferência de interessados, para se definir o direito do reconvinte, sendo caso disso; sucessivamente, o processo haverá de tramitar com os termos próprios da acção de divisão de coisa comum, nos termos do disposto no art. 929º do CPC, sem prejuízo de, em momento próprio, em sede de pagamento de tornas ou divisão dos proventos da venda, se levar em conta o que houver de ser decidido quanto ao conteúdo dos direitos de cada um dos consortes.

Ou, segundo o que for entendido pela Sra. Juiz, no exercício dos seus poderes de gestão processual, a opção poderá ser a da realização da conferência de interessados de imediato e, na falta de acordo, fazer tramitar os ulteriores termos da causa como processo comum, para definição dos direitos de cada um dos consortes, mais tarde se procedendo à adjudicação do imóvel à determinação de tornas ou à venda e distribuição do respectivo produto segundo o que for definido quanto àqueles direitos.

De resto, isso mesmo se decidiu no Ac. desta secção do TRP, no acórdão de 27/4/2021 (Proc. nº 5962/20.9T8VNG.P1, em dgsi.pt), subscrito por dois dos juízes desembargadores do presente colectivo: “(…) entendemos poder em ordem a salvaguardar o processado, em obediência a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas, dever fazer improceder a exceção dilatória alegada pelo réu.

Donde, os autos devem prosseguir segundo os termos do processo declarativo comum para apuramento dos contributos de cada um dos comproprietários, salvaguardando-se, em sede de gestão processual, a admissibilidade do pedido reconvencional deduzido. Deste modo, pode promover-se uma audiência prévia, para os efeitos do art. 929º, nº 2 do CPC, e, na falta de acordo sobre a adjudicação, proceder à instrução e julgamento em sede de processo comum das questões controvertidas relativas às quotas detidas por cada uma das partes litigantes, analisando as causas de pedir atinentes a estes pedidos de cada um dos comproprietários, e após decisão final sobre esta matéria, fixados os quinhões, promover-se eventualmente a respetiva venda.

Miguel Teixeira de Sousa abordou igualmente esta polémica no seu blog defendendo uma solução que vai ao encontro daquela por nós sufragada (leia-se https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html ).

Por esta via, agora devidamente detalhada, afigura-se-nos possível, ainda que com o ónus da acrescida complexidade processual, compaginar numa só ação a apreciação dos pedidos vertidos no petitório e na contestação, sem que ocorra a prática de atos processuais inconciliáveis, “manifestamente incompatíveis”, logrando-se, então, cumprir princípios processuais fundamentais do nosso Código (vide epígrafe do Título I) no que concerne à garantia de acesso aos tribunais e ao dever, que impende sobre os tribunais, de gestão processual (artigos 2º e 6º do CPC)

Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.”

Vê-se, assim, que não há uma tramitação idêntica, para a discussão e decisão do objecto de cada um dos pedidos – da acção, sob forma de processo especial, e da reconvenção, sob a forma de processo comum – mas que que são complementares e podem ser agregadas, por inexistência de incompatibilidade entre elas. Não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.

Por outro lado, é claro o interesse nessa solução: previne a necessidade de que as partes desenvolvam novo litígio, noutro processo, para o exercício de direitos que aqui podem ser exercidos e decididos de imediato.

Conclui-se, pois, inexistir qualquer obstáculo, existindo pelo contrário conveniência e utilidade, na admissão do pedido reconvencional deduzido pelo réu."

[MTS]



28/06/2023

Bibliografia (1078)


-- AAVV, Processo Civile e Costituzione / Omaggio a Nicolò Trocker (Giuffrè: Milano 2023)


Jurisprudência 2022 (214)


Impugnação pauliana;
registo; oponibilidade*


1. O sumário de RG 10/11/2022 (2356/17.7T8VNF-A.G1) é o seguinte:

A eventual transmissão do prédio em momento posterior ao registo da ação de impugnação pauliana é inoponível em relação ao ora exequente, em virtude de ter sido assumidamente realizada após o registo da ação de impugnação pauliana que havia sido interposta pelo exequente relativamente ao mesmo prédio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tal como decorre do preceituado no artigo 342.º, n.º 1, do CPC, os embargos de terceiro constituem um meio processual de oposição contra a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, que se traduza na ofensa da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa.

Mais resulta do confronto entre o preceituado nos artigos 344.º a 348.º e o artigo 350.º, todos do CPC, que os embargos de terceiro podem revestir uma função repressiva ou uma vertente preventiva, pressupondo aqueles a efetiva realização da penhora ou da diligência pretensamente ofensiva do direito do embargante.

Por outro lado, conforme prevê o artigo 601.º do Código Civil (CC), pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, consistindo a impugnação pauliana num meio conservatório da garantia patrimonial do credor, tal como previsto nos artigos 610.º a 618.º do CC.

Deste modo, a impugnação pauliana consiste na «faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos actos válidos, ou mesmo nulos, celebrados pelos devedores em seu prejuízo» (Cf., Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 857).

Atendendo aos requisitos gerais da impugnação pauliana, tal como previstos nos artigos 610.º e 612.º do CC, «são susceptíveis de impugnação os atos jurídicos - nos quais se incluem os negócios jurídicos unilaterais (como, p. ex. a promessa pública) e os contratos - que envolvam uma diminuição da garantia patrimonial do crédito, que não é senão o património do devedor, entendido como a universalidade de bens susceptíveis de penhora que o constituem (arts. 736.º a 739.º do CPC), sem prejuízo do regime da separação de patrimónios (art. 601.º). (…)

A diminuição da garantia patrimonial do crédito pode verificar-se tanto pela diminuição do ativo, como pelo aumento do passivo (p. ex., com a constituição de obrigações ou de garantias), desde que, em qualquer dos casos e a este respeito, se encontre preenchido o requisito qualitativo previsto na al. b)» (Cf., Gonçalo dos Reis Martins, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 627-628) (do artigo 610.º do CC).

Nos termos do artigo 616.º, n.º 1 do CC, julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

No caso em análise verifica-se que a sentença exequenda condenou a 3.ª ré (JP. -Unipessoal, Limitada) a ver o prédio (que entretanto foi penhorado nos autos principais) restituído à situação anterior à escritura de Compra e Venda de 2007-01-22, fls. 86, Livro 51-A, do Cartório Notarial R. T., deste concelho, entre o 1.º réu e 3.ª ré, bem como condenou e todos os réus, o ora embargante inclusivamente, a verem anulados quaisquer registos e atos dos prédios identificados nesta petição.

Por força do dispositivo da sentença proferida no âmbito do processo n.º 2834/07.6TJVNF, que constitui o título executivo na execução embargada - designadamente na parte em que condenou a 3.ª ré a ver o bem mencionado no articulado 36.º da petição restituído à situação anterior à escritura de Compra e Venda de 2007.01.22, fls. 86, Livro 51-A, do Cartório Notarial R. T., deste concelho, entre o 1.º réu e 3.ª ré; e os réus a verem anulados quaisquer registos e atos dos prédios identificados na correspondente petição -, resulta manifesto que a mesma teve um efeito restitutório do bem ao património do devedor (ali 1.º réu), impondo-se, nessa medida, por força dos efeitos da autoridade do caso julgado a todos os réus, entre os quais o ora embargante, o direito da ora embargada/exequente à restituição do concreto bem imóvel objeto dos presentes embargos ao património do devedor (ora 1.º executado) para aí o poder executar, tal como concretizou através da execução a que os presentes embargos se reportam.

Acresce que a aquisição do prédio que vem invocada pelo ora embargante reporta-se a uma transmissão posterior ao registo da ação de impugnação pauliana instaurada pelo ora exequente/embargado, como tal na pendência daquela ação e num momento em que a respetiva aquisição estava inscrita pela AP. 17 de 2007/01/24 a favor da JP. - Unipessoal, Limitada, por compra a J. F., tal como resulta dos autos.

Ora, tratando-se de transmissão posterior à transmissão inicial, relativamente à qual procedeu a impugnação pauliana que lhe foi deduzida, e verificando-se os requisitos da impugnabilidade relativamente à primeira transmissão, conforme decisão devidamente transitada em julgado, a publicidade do registo permite presumir o conhecimento e, ipso facto, colocar o adquirente de má fé (Cf., Gonçalo dos Reis Martins - Obra citada -, p. 795.).

Daí que se venha entendendo que, se a ação pauliana inicial for registada, sendo esse registo anterior ao da aquisição do subadquirente, o credor que obteve ganho na impugnação pode executar o bem alienado, quaisquer que tenham sido as transmissões que entretanto tenham tido lugar, sem necessidade de prova de má fé (Neste sentido, cf. Gonçalo dos Reis Martins - Obra citada -, p. 795, citando, a propósito, Cura Mariano.).

Deste modo, a eventual transmissão do prédio em momento posterior ao registo da ação de impugnação pauliana é inoponível em relação ao ora exequente, em virtude de ter sido assumidamente realizada após o registo da ação de impugnação pauliana que havia sido interposta pelo exequente relativamente ao mesmo prédio.

Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de 30-04-2015 (Relatora Helena Melo, p. 11/10.8TCGMR-A.G1, acessível em www.dgsi.pt.): «(…)2. . Como consequência da procedência da impugnação pauliana a venda ou sucessivas vendas são ineficazes relativamente ao credor impugnante que a pode penhorar, ainda que ela se encontre inscrita em nome de outro titular, como se a venda ou vendas não se tivessem efectuadas. 3. . Pelo que, vendido o imóvel objecto de acção de impugnação pauliana numa execução, o registo da acção não é cancelado por decorrência da aplicação do disposto no artº 824º do CC. 4. . Sendo o registo da acção de impugnação anterior ao registo da venda em acção executiva a favor do apelante, tal venda não lhe pode ser oposta. (…)».

Ora, à luz das considerações jurídicas supra expendidas e em face do quadro fáctico apurado nos autos, cumpre concluir, tal como na 1.ª instância, pela improcedência dos embargos de terceiro, nos exatos termos que constam do dispositivo da decisão recorrida, ainda que por fundamentos não integralmente coincidentes." 


*3. [Comentário] A RG decidiu com razoabilidade, mas contra legem.

O caso só se pode considerar bem decidido se se "esquecer" o disposto no muito infeliz art. 5.º, n.º 4, CRegP, dado que, como a terceira embargante adquiriu o imóvel através de uma venda executiva, não é possível afirmar que a agora exequente e a agora embargante adquiriram o imóvel de um transmitente comum. Dito de outra forma: segundo a concepção restrita de terceiros constante daquele artigo, a exequente não poderia invocar o seu registo contra a agora embargante. 

Conforme já houve oportunidade de referir (clicar aqui), é bem possível que, em contraste com o disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, se esteja a formar -- ou mesmo que já se tenha formado -- um costume jurisprudencial contra legem. Se assim é (ou vier a ser), é algo que não pode deixar de se aplaudir.

MTS

27/06/2023

Bibliografia (1077)


-- Sciandrello, E., ‘Exceptiones in factum’. Contributo allo studio dell’eccezione nel processo formulare. (Jovene: Napoli 2023)


Jurisprudência 2022 (213)


Reconvenção; 
conexão objectiva; admissibilidade


1. O sumário de RG 10/11/2022 (129/21.1T8PBT-A.G1) é o seguinte:

I – Peticionando ao tribunal que declare que as obras executadas pelo réu ocupam uma faixa de terreno público e a condenação deste a deixar o caminho publico livre e desimpedido como se encontrava até à data em que começou a construir a referida obra, visam os AA defender os interesses inerentes ao domínio público de todas as pessoas da comunidade, em que eles se inserem, por estarem, putativamente, impedidas de gozar, na íntegra, das utilidades facultadas pelo dito caminho público.

II – Perante a estrutura que a lei confere à acção popular (Lei n.º 83/95, de 31.08) e configuração oferecida pelos AA. à sua pretensão, carece de fundamento a alegação da falta dos requisitos legais da ação popular.

III – Os limites objectivos, previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 266º do CPC, traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor; na situação da alínea a) o pedido do réu há-de ter por fundamento o acto ou facto base da acção ou da defesa.

IV – Na acção popular civil em que o autor pede a declaração de que que as obra executadas pelo réu ocupam uma faixa de terreno público e a condenação deste a deixar o caminho público livre e desimpedido como se encontrava até à data em que começou a construir a referida obra, não é admissível a dedução de pedido reconvencional em que o réu pretende que o autor o indemnize, por danos patrimoniais e não patrimoniais, que lhe foram causados em função do comportamento do autor, espoletados com a propositura dessa mesma acção e de uma outra acção judicial.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. Da (ina)admissibilidade do pedido reconvencional formulado sob a al. e).

Na sequência da prolação do despacho saneador, o Mm.º Juiz “a quo” admitiu a reconvenção deduzida pelo R. quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) a d) do petitório, mas não quanto ao pedido reconvencional (indemnizatório) deduzido sob a al. e).

Através deste pedido reconvencional pretende o Réu/reconvinte a condenação dos AA./reconvindos a [e)] “[p]agarem indemnização que se relega para execução de Sentença”.

O apelante discorda do assim decidido na parte em que foi rejeitada essa pretensão reconvencional, aduzindo para o efeito ter alegado «nos artigos 158 a 171 da reconvenção, (…), que sofre e vai sofrer danos patrimoniais e morais que relega para execução de sentença, pois a presente ação, não mais é do que a continuação da perseguição obsessora dos recorridos com a defesa dos seus interesses pessoais”, sendo lícito e expectável que o recorrente, em matéria de defesa do seu direito de propriedade privada, formule pedido de sentido contrário ao dos recorridos e cumulado com pedido de indemnização pelos danos patrimoniais e morais sofridos e que vai continuar a sofrer com a presente ação”.

Vejamos se lhe assiste razão. [...]

Interessam-nos os requisitos de ordem material, os quais constam do n.º 2 do art. 266.º do CPC.

Prevê o citado normativo que “a reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.

Manifestamente não estando em causa a aplicação das hipóteses estabelecidas nas als. b) a d), importa dilucidar a questão à luz do previsto na al. a) do citado normativo.

Como se decidiu no Ac. da RC de 10/12/2013 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt., “[v]erificados os pressupostos de admissibilidade estabelecidos na lei processual civil, a circunstância de estarmos perante uma acção popular cível não obstará a que o demandado deduza pedido reconvencional”; e que “[p]esem embora as especificidades da acção popular cível – que, por definição, envolve um alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa (art.º 3º da Lei n.º 83/95) e cujo objecto transcende (ou deverá transcender) o interesse pessoal dos autores –, será lícito ao demandado, designadamente, em matéria de defesa do direito de propriedade privada, formular pedido de sentido contrário ao dos AA. e eventualmente cumulado com pedido de indemnização”.

No caso sub judice, com vista a estribar o seu pedido reconvencional indemnizatório alegou o réu/reconvinte que, em virtude da instauração deste processo e de um outro procedimento cautelar anteriormente apresentado, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende que sejam liquidados no incidente subsequente à prolação de sentença.

Concretizando: alegou (---), em resumo, que a obra deveria ter sido terminada pelo empreiteiro em maio de 2020, porém, por causa do processo de embargos nº 19/20.5 intentado pelos ora AA contra o ora Réu, a obra foi completamente parada durante meses, tendo sido prorrogada a licença para maio de 2021, com consequente aumento de custos de materiais e de mão de obra.

Os AA embargaram a obra e o R. teve que pedir nova prorrogação de prazo, tendo pago de taxas a quantia de 133,32€.

Com a paragem da obra o réu teve custos acrescidos com materiais e mão-de-obra, no valor de 15.000,00€.

Os AA têm desencadeado uma autêntica perseguição ao réu, desde que souberam que ia reconstruir o seu prédio, desde o embargo até à maléfica intenção da demolição da parede poente, e, em consequência daquele comportamento, o Réu anda angustiado, sofre incómodos e stress que agravam o seu já débil estado de saúde.

Não satisfeitos, os AA recorreram à presente ação popular, um tipo de processo com o qual nenhuma outra pessoa da freguesia se identifica, com o objetivo de alcançarem os seus interesses meramente individuais, alegando factos falsos.

Em consequência do comportamento dos AA tem passado e passa noites sem dormir, angustiado por excessivo stress, com recurso sistemático a medicamentos e consultas médicas, situação que se agravou com o recebimento da p.i. na presente ação, onde, com o maior desplante, os AA pedem para o Réu demolir a parede poente.

Em consequência do comportamento ilícito dos AA, o Réu, que reside em França, fez várias viagens ao país e certamente vai fazer muitas mais para comparecer nas diligências designadas pelo Tribunal.

São danos morais e patrimoniais que devem ser pagos pelos AA., mas que neste momento ainda não podem ser integralmente computados, dado o processo se encontrar no início.

Como se disse, os limites objectivos, previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 266º do CPC, traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor; na situação da alínea a)  aplicável ao caso vertente , o pedido do réu há-de ter por fundamento o acto ou facto base da acção ou da defesa (Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 1982, p. 379 e ss. e Comentário (…), p. 98 e ss.), embora desse acto ou facto jurídico se pretenda, nesse caso, obter um efeito diferente.

Diz-se estar em causa um conceito mínimo de causa de pedir, ao permitir que o réu reconvenha com um pedido que “emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa” (Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 50 e 401.).

Pois bem, perante o descrito enquadramento jurídico, tendo presente a materialidade fáctica alegada e o peticionado pelos AA. e pelo Réu, afigura-se-nos ser inteiramente de manter o despacho recorrido que não admitiu o aludido pedido reconvencional (indemnizatório) formulado sob a al. e).

Como bem se explicitou na decisão impugnada, o facto concreto em que os AA. assentam a acção é, grosso modo, a ocupação, por banda do R., de uma faixa de terreno que faz parte integrante do domínio público da freguesia, enquanto o facto em que o R. assenta o referido pedido reconvencional é, não só o presente processo instaurado contra si pelos AA., mas também outros litígios judiciais em que as mesmas partes intervieram (como seja o procedimento cautelar de embargo de obra nova n.º 19/20), processos esses que, segundo aquele, estiveram na origem dos danos patrimoniais e não patrimoniais que diz ter sofrido.

Como é bom de ver, o referido pedido reconvencional não se funda, sequer parcialmente, na mesma causa de pedir que o pedido dos AA.  primeira hipótese da alínea a) do art. 266º, n.º 2, do CPC.

A segunda hipótese, como observa Lebre de Freitas (Cfr. Introdução Ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais À Luz Do Novo Código, 4ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 217 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pp. 531/532), refere-se ao pedido reconvencional que se funda nos mesmos factos em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial.

Como tem sido entendido, não basta que o réu alegue qualquer acto ou facto jurídico para que logo dele possa extrair-se um outro efeito jurídico que se pretenda fazer valer através do pedido reconvencional; necessário se torna que o facto invocado, a verificar-se, produza efeito útil defensivo, ou seja, tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.

Nesse sentido, a hipótese prevista na segunda parte da al. a) do n.º 2 do art. 266º do CPC tem o sentido de a reconvenção só ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor e com base nesse acto ou facto – ou parte dele – que serve de fundamento à sua defesa, deduza o pedido reconvencional (---).

Isto é, o facto jurídico que serve de fundamento à defesa e ao pedido reconvencional terá de se enquadrar na noção de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal.

No caso sub judice, o réu-reconvinte não deduziu qualquer excepção peremptória e, por impugnação, negou directamente ter invadido qualquer parcela de terreno integrada no domínio público.

Fundou o pedido reconvencional em discussão no facto de os AA./recorridos terem proposto a acção popular contra ele, bem como numa outra que nenhuma conexão tem com a que se discute nestes autos, com as consequências daí derivadas que alegou.

Ou seja, está em causa o exercício do direito de acção em termos que Réu reputa como abusivo (“uma autêntica perseguição”).

Assim sendo, também não se verifica aquela segunda hipótese (Cfr., em sentido similar, julgando não ser admissível, em reconvenção, pedir indemnização pelos danos causados ao réu pela propositura da ação, os Acs. do STJ de 18/12/2003 (relator Afonso de Melo) e de 9/09/2010 (relator Barreto Nunes) e o Ac. da RL de 2/06/2016 (relatora Maria José Mouro), in www.dgsi.pt.; Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. III, Excepções da Instância, 2007, Quid Juris, p. 843. Como decidiu o Ac. da RP de 20/12/2004 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt., “invocando os AA. como causa de pedir, o facto dos RR. terem violado o estatuto da propriedade horizontal do prédio onde todos vivem, ligando a realização de obras não autorizadas pelo condomínio, e outras condutas dos RR., à violação de direitos de personalidade, não pode ser admitida reconvenção se os RR. alegam, como causa de pedir, "perseguição" dos AA., pelo facto destes, insistentemente, os demandarem, pedindo uma indemnização por pretensos danos causados por essa litigiosidade que reputam infundada e persecutória, (…)”, pois que “a causa de pedir no caso em apreço não tem qualquer afinidade com a causa de pedir e os pedidos da acção”.).

Como vimos, malgrado a admissibilidade do pedido reconvencional se justificar por razões de economia processual, a verdade é que este princípio não permite que toda e qualquer pretensão autónoma possa ser apresentada pelo réu contra o autor, com prejuízo do andamento regular do processo.

Ora, no caso, o recorrente fundou o aludido pedido reconvencional em factos que não só não se relacionam com a causa principal, como igualmente carecem de virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o(s) pedido(s) formulado(s) pelos autores.

O que significa que tal pedido reconvencional não se funda no facto jurídico que serve de fundamento à ação ou no que serviu de base à alegação da defesa.

Nesta conformidade, a decisão impugnada que rejeitou o pedido reconvencional (indemnizatório) deduzido sob a al. e) está em conformidade com as normas legais e tem de ser confirmada."

*3. [Comentário] A RG decidiu bem.

Em tese (e, naturalmente, sem nenhum pré-juízo), o que se poderia discutir seria se a conduta do autor popular poderia eventualmente constituir uma situação de litigância de má fé por utilização reprovável dos meios processuais (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC),

MTS

26/06/2023

Jurisprudência 2022 (212)


Título executivo; prestações futuras;
meio de prova*


1. O sumário de RC 25/10/2022 (475/21.4T8SRE-A.C1) é o seguinte:

I – Sendo o princípio do contraditório um dos princípios basilares que enformam o processo civil, importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, v.g. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.

II – O princípio da concentração da defesa na contestação/oposição impõe ao réu/oponente o ónus de, nesse articulado, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, salvo os casos excecionais legalmente previstos – exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente –, com sujeição a efeito preclusivo.

III – Para que o documento onde se convencionem prestações futuras – como é o caso do contrato de abertura de crédito – constitua título executivo será necessário que o mesmo seja acompanhado por outros documentos que comprovem as concretas disponibilizações/utilizações efetivas do crédito.

IV – Um extrato bancário da autoria da Apelante/exequente e sem intervenção da Apelada/embargante não permite só por si garantir que a disponibilização ulterior de fundos efetivamente ocorreu a pedido do devedor. Ainda que possa fundar ação declarativa, não tem força executiva bastante para titular execução.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. – Quanto à validade dos títulos executivos;

Enunciando as normas dos artigos 703.º e 707.º:

Artigo 703.º — Espécies de títulos executivos

1. — À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (…) [...].

Artigo 707.º — Exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados

“Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”. [...]

O documento em que se preveja a constituição de obrigações futuras, configura o chamado título executivo complexo, corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo.

Mergulhemos nos autos.

O contrato de 30-07-2002:

Trata-se de um contrato ao qual se aplica o art.º 707.º, isto é, é um contrato de abertura de crédito no qual se preveem prestações futuras, logo, é exigível a apresentação de documento comprovativo – passado em conformidade com o clausulado no contrato – de que as prestações foram realizadas.

Nas palavras do Acórdão desta Relação de Coimbra de 9.1.2018, pesquisável em www.dgsi.pt, “para que o documento onde se convencionem prestações futuras – como é o caso do contrato de abertura de crédito – constitua título executivo será necessário que o mesmo seja acompanhado por outros documentos que comprovem as concretas disponibilizações/utilizações efetivas do crédito”.

No caso concreto, o contrato prevê que as prestações da Exequente/Embargada seriam efectuadas por crédito em conta bancária titulada pela sociedade financiada mediante pedido escrito da parte da sociedade financiada.

Ora, para cumprir tal formalidade legal, junta a Exequente/Embargada um extracto bancário da operação bancária em causa.

Por isso, também como o entendeu a 1.ª instância, é tal documento manifestamente insuficiente.

Seguindo o seu raciocínio:

“Com efeito, o que foi previsto no contrato é a existência de pedidos escritos da devedora e depósitos/créditos na conta bancária da sociedade financiada. Eram estes os documentos a apresentar, e não outros, para se constituir válido título executivo à luz do art.º 707.º CPC. Não podem, a nosso ver, tais documentos ser substituídos por um documento da exclusiva autoria da Exequente/Embargada que não comprova nem os pedidos da sociedade financiada nem os efectivos créditos na conta bancária da sociedade financiada. Sobre o tema, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2021 (6528/18.9T8GMR-A.G1.S1):

“... III - O título executivo apresentado corresponde a um documento particular de formação composta em dois momentos distintos: por um lado, a celebração do contrato de abertura de crédito, por documento particular; e, por outro lado, a efectiva movimentação das quantias disponibilizadas pelo credor. Deste modo, para que se mostre perfeito enquanto título executivo, para além do contrato, o título teria de integrar também os extractos de conta e os documentos de suporte ou saque. IV - O contrato de abertura de crédito em conta corrente dos autos prevê expressamente a forma do pedido de utilização do crédito: mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à instituição bancária, as quais têm de ser subscritas pela parte devedora ou por quem a represente; daqui resulta que seriam estes os documentos de suporte a juntar para que o documento particular em causa formasse um título executivo perfeito, o que no caso não se verificou.

V - Assim, considera-se não merecer censura o juízo do acórdão recorrido, de acordo com o qual, no caso dos autos, se verifica falta de título executivo, uma vez que, pelos motivos enunciados em III e IV, o mesmo não está completo.”.

Pelo exposto, conclui-se pela inexistência de válido título executivo para a cobrança coactiva das quantias peticionadas com base no contrato de 30-07-2002.

O contrato de 09-12-2014:

Trata-se, também, de um contrato de abertura de crédito ao qual se aplica o art.º 707.º CPC, isto é, é um contrato no qual se prevê uma prestação futura, logo, é exigível a apresentação de documento comprovativo – passado em conformidade com o clausulado no contrato – de que a prestação foi realizada.

No caso concreto, o contrato prevê (Cláusula 7.) que a prestação da Exequente/Embargada seria entregue por crédito na conta de depósito à ordem titulada pela sociedade financiada após o recebimento pela Exequente/Embargada da garantia bancária prevista no contrato e depois de verificada a sua conformidade.

Constata-se que a Exequente/Embargada não juntou qualquer documento comprovativo de que ocorreu o depósito/crédito da quantia em causa na conta bancária da sociedade financiada.

Como escreve a Apelada, o “contrato de abertura de crédito de 09.12.2004 previa a entrega da prestação da ora recorrida na conta de depósito à ordem titulada pela sociedade financiada. Da matéria de facto não resulta que tal quantia tenha efetivamente sido entregue pela exequente à ora recorrida.

Das conclusões formuladas pela exequente não resulta que tenha impugnado a decisão sobre a matéria de facto, designadamente por defeito. Atenta matéria assente, não provada a entrega da prestação pela ora recorrente, logo não existindo o documento complementar a que alude o artigo 707.º do CPC, não foi trazido aos autos título executivo bastante para suportar a cobrança coativa as quantias peticionadas com base no contrato de 09.12.2014.

A recorrente motivou o seu recurso (cfr. conclusão 5.ª) com base numa garantia bancária que não se encontra refletida na matéria de facto dada como assente e com a qual se conformou e não impugnou. De qualquer modo, sempre cabia à ora recorrente o ónus de alegar e de carrear para os autos os meios de prova destinados a provar os factos constitutivos do seu direito.

Porém, como a própria reconheceu nas alegações do seu recurso, não o fez (cfr. parágrafo final da p. 7 das alegações de recurso). Estando em causa facto essencial da sua demanda, não poderia o Tribunal substituir-se à recorrente, suprindo a sua omissão com base em facto instrumental não alegado nem provado, sob pena de violação do princípio do dispositivo”.

Um extracto bancário da autoria da ora Apelante e sem intervenção da Apelada/embargante não permite só por si garantir que a disponibilização ulterior de fundos efetivamente ocorreu a pedido do devedor: ainda que possa fundar ação declarativa, não tem força executiva bastante para titular execução como a presente - A garantia suficiente da existência da dívida terá sempre de assentar num comportamento do devedor do qual resulte o reconhecimento daquela devendo a intervenção expressa daquele estar plasmada num documento complementar.

Ou seja, não for junto tal documento complementar, que deve obedecer às condições estabelecidas no documento que constitui o título base, não há prova da existência de obrigação dotada de força executiva.

Concluindo, os documentos apresentados não constituem um perfeito e válido título executivo, à luz do citado art.º 707.º.

Avançando.

Não tendo o executado AA deduzido embargos à execução, a decisão do apenso declarativo, deduzido pela embargante BB, aproveita-lhe?

A 1.ª instância entendeu que sim, escrevendo:

“A procedência da Oposição à Execução implica a extinção da Acção Executiva quanto à Executada/Embargante na sua totalidade e, também, quanto ao Executado AA em relação ao contrato de 30-07-2002, uma vez que se trata de contrato com garantia real de hipoteca sobre imóvel que integra a comunhão conjugal dos Executados, logo não pode prosseguir sem que estejam na lide todos os proprietários do imóvel hipotecado cuja execução é pretendida”.

Diz a Apelante que “o facto de um crédito exequendo estar garantido por hipoteca sobre bem que pertence à comunhão conjugal não impede que a execução seja instaurada ou prossiga somente contra um dos cônjuges proprietário do imóvel, pois que o que revel [sic] é o título executivo e não a garantia”.

Com todo o respeito, entendemos que a solução apresentada pelo Juízo de Execução de Soure, é a mais correcta e adequada ao Direito.

Senão vejamos.

Nos termos do artigo 34.º n.º 3 devem ser propostas contra ambos os cônjuges as acções emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as acções compreendidas no n.º 1 - as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.

No caso de litisconsórcio necessário, há uma única acção com pluralidade de sujeitos - artigo 35.º -, sendo que, porque movida a execução “ab initio” contra os cônjuges, já não tem aplicação o disposto na norma do artigo 740.º - citação do cônjuge do executado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.

Por isso, processualmente falando, como ficamos?

Entendemos que a matéria discutida nos embargos terá de aproveitar ao executado/embargante não contestante, evitando-se julgamentos de mérito em sentido discrepante em relação à mesma situação factual e jurídica.

Seja por via da aplicação da norma do artigo 568.º al. a) - não se aplica o disposto no artigo anterior – situação de revelia - quando, “havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar -.

No âmbito de uma acção/execução intentada sobre o mesmo pedido contra dois réus/executados, no quadro da pluralidade subjetiva necessária prevista no artigo 34.º, ocorre interesse comum entre os demandados, dispondo um dos réus/executados de legitimidade para assumir a defesa do outro (s) réus/executados.

Seja pelo entendimento de que o apelo à aplicação do consagrado na alínea a) do artigo 568.º, com referência à figura da revelia, é manifestamente irrelevante. [...]

Isto é, pelos embargos, o executado assume a autoria dum processo declarativo, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção, donde decorre necessariamente que relativamente ao executado que não deduz oposição à execução não ocorre um cenário de revelia nos termos preceituados para a acção declarativa. Na verdade, a revelia apenas teria efeito em sentido inverso.

Improcede, pois, o recurso."

*3. [Comentário] Em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (2022), 698, ensaia-se uma outra justificação para estender os efeitos da decisão de procedência proferida nos embargos de executado ao co-executado não embargante: essa extensão verifica-se se o litisconsórcio que se constituiria entre os vários executados, se todos eles tivessem embargado, fosse um litisconsórcio unitário.

É precisamente isso que ocorreria no presente caso: atendendo ao fundamento da decisão de procedência dos embargos (inexistência de título executivo por não cumprimento do disposto no art. 707.º CPC), se ambos os executados tivessem embargado, a decisão de procedência teria de ter sido a mesma para ambas as partes, não sendo imaginável que essa procedência se verificasse em relação a uma delas e não ocorresse necessariamente em relação à outra.

MTS