Título executivo; prestações futuras;
meio de prova*
I – Sendo o princípio do contraditório um dos princípios basilares que enformam o processo civil, importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, v.g. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.
II – O princípio da concentração da defesa na contestação/oposição impõe ao réu/oponente o ónus de, nesse articulado, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, salvo os casos excecionais legalmente previstos – exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente –, com sujeição a efeito preclusivo.
III – Para que o documento onde se convencionem prestações futuras – como é o caso do contrato de abertura de crédito – constitua título executivo será necessário que o mesmo seja acompanhado por outros documentos que comprovem as concretas disponibilizações/utilizações efetivas do crédito.
IV – Um extrato bancário da autoria da Apelante/exequente e sem intervenção da Apelada/embargante não permite só por si garantir que a disponibilização ulterior de fundos efetivamente ocorreu a pedido do devedor. Ainda que possa fundar ação declarativa, não tem força executiva bastante para titular execução.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2. – Quanto à validade dos títulos executivos;
Enunciando as normas dos artigos 703.º e 707.º:
Artigo 703.º — Espécies de títulos executivos
1. — À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (…) [...].
Artigo 707.º — Exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados
“Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”. [...]
O documento em que se preveja a constituição de obrigações futuras, configura o chamado título executivo complexo, corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo.
Mergulhemos nos autos.
O contrato de 30-07-2002:
Trata-se de um contrato ao qual se aplica o art.º 707.º, isto é, é um contrato de abertura de crédito no qual se preveem prestações futuras, logo, é exigível a apresentação de documento comprovativo – passado em conformidade com o clausulado no contrato – de que as prestações foram realizadas.
Nas palavras do Acórdão desta Relação de Coimbra de 9.1.2018, pesquisável em www.dgsi.pt, “para que o documento onde se convencionem prestações futuras – como é o caso do contrato de abertura de crédito – constitua título executivo será necessário que o mesmo seja acompanhado por outros documentos que comprovem as concretas disponibilizações/utilizações efetivas do crédito”.
No caso concreto, o contrato prevê que as prestações da Exequente/Embargada seriam efectuadas por crédito em conta bancária titulada pela sociedade financiada mediante pedido escrito da parte da sociedade financiada.
Ora, para cumprir tal formalidade legal, junta a Exequente/Embargada um extracto bancário da operação bancária em causa.
Por isso, também como o entendeu a 1.ª instância, é tal documento manifestamente insuficiente.
Seguindo o seu raciocínio:
“Com efeito, o que foi previsto no contrato é a existência de pedidos escritos da devedora e depósitos/créditos na conta bancária da sociedade financiada. Eram estes os documentos a apresentar, e não outros, para se constituir válido título executivo à luz do art.º 707.º CPC. Não podem, a nosso ver, tais documentos ser substituídos por um documento da exclusiva autoria da Exequente/Embargada que não comprova nem os pedidos da sociedade financiada nem os efectivos créditos na conta bancária da sociedade financiada. Sobre o tema, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2021 (6528/18.9T8GMR-A.G1.S1):
“... III - O título executivo apresentado corresponde a um documento particular de formação composta em dois momentos distintos: por um lado, a celebração do contrato de abertura de crédito, por documento particular; e, por outro lado, a efectiva movimentação das quantias disponibilizadas pelo credor. Deste modo, para que se mostre perfeito enquanto título executivo, para além do contrato, o título teria de integrar também os extractos de conta e os documentos de suporte ou saque. IV - O contrato de abertura de crédito em conta corrente dos autos prevê expressamente a forma do pedido de utilização do crédito: mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à instituição bancária, as quais têm de ser subscritas pela parte devedora ou por quem a represente; daqui resulta que seriam estes os documentos de suporte a juntar para que o documento particular em causa formasse um título executivo perfeito, o que no caso não se verificou.
V - Assim, considera-se não merecer censura o juízo do acórdão recorrido, de acordo com o qual, no caso dos autos, se verifica falta de título executivo, uma vez que, pelos motivos enunciados em III e IV, o mesmo não está completo.”.
Pelo exposto, conclui-se pela inexistência de válido título executivo para a cobrança coactiva das quantias peticionadas com base no contrato de 30-07-2002.
O contrato de 09-12-2014:
Trata-se, também, de um contrato de abertura de crédito ao qual se aplica o art.º 707.º CPC, isto é, é um contrato no qual se prevê uma prestação futura, logo, é exigível a apresentação de documento comprovativo – passado em conformidade com o clausulado no contrato – de que a prestação foi realizada.
No caso concreto, o contrato prevê (Cláusula 7.) que a prestação da Exequente/Embargada seria entregue por crédito na conta de depósito à ordem titulada pela sociedade financiada após o recebimento pela Exequente/Embargada da garantia bancária prevista no contrato e depois de verificada a sua conformidade.
Constata-se que a Exequente/Embargada não juntou qualquer documento comprovativo de que ocorreu o depósito/crédito da quantia em causa na conta bancária da sociedade financiada.
Como escreve a Apelada, o “contrato de abertura de crédito de 09.12.2004 previa a entrega da prestação da ora recorrida na conta de depósito à ordem titulada pela sociedade financiada. Da matéria de facto não resulta que tal quantia tenha efetivamente sido entregue pela exequente à ora recorrida.
Das conclusões formuladas pela exequente não resulta que tenha impugnado a decisão sobre a matéria de facto, designadamente por defeito. Atenta matéria assente, não provada a entrega da prestação pela ora recorrente, logo não existindo o documento complementar a que alude o artigo 707.º do CPC, não foi trazido aos autos título executivo bastante para suportar a cobrança coativa as quantias peticionadas com base no contrato de 09.12.2014.
A recorrente motivou o seu recurso (cfr. conclusão 5.ª) com base numa garantia bancária que não se encontra refletida na matéria de facto dada como assente e com a qual se conformou e não impugnou. De qualquer modo, sempre cabia à ora recorrente o ónus de alegar e de carrear para os autos os meios de prova destinados a provar os factos constitutivos do seu direito.
Porém, como a própria reconheceu nas alegações do seu recurso, não o fez (cfr. parágrafo final da p. 7 das alegações de recurso). Estando em causa facto essencial da sua demanda, não poderia o Tribunal substituir-se à recorrente, suprindo a sua omissão com base em facto instrumental não alegado nem provado, sob pena de violação do princípio do dispositivo”.
Um extracto bancário da autoria da ora Apelante e sem intervenção da Apelada/embargante não permite só por si garantir que a disponibilização ulterior de fundos efetivamente ocorreu a pedido do devedor: ainda que possa fundar ação declarativa, não tem força executiva bastante para titular execução como a presente - A garantia suficiente da existência da dívida terá sempre de assentar num comportamento do devedor do qual resulte o reconhecimento daquela devendo a intervenção expressa daquele estar plasmada num documento complementar.
Ou seja, não for junto tal documento complementar, que deve obedecer às condições estabelecidas no documento que constitui o título base, não há prova da existência de obrigação dotada de força executiva.
Concluindo, os documentos apresentados não constituem um perfeito e válido título executivo, à luz do citado art.º 707.º.
Avançando.
Não tendo o executado AA deduzido embargos à execução, a decisão do apenso declarativo, deduzido pela embargante BB, aproveita-lhe?
A 1.ª instância entendeu que sim, escrevendo:
“A procedência da Oposição à Execução implica a extinção da Acção Executiva quanto à Executada/Embargante na sua totalidade e, também, quanto ao Executado AA em relação ao contrato de 30-07-2002, uma vez que se trata de contrato com garantia real de hipoteca sobre imóvel que integra a comunhão conjugal dos Executados, logo não pode prosseguir sem que estejam na lide todos os proprietários do imóvel hipotecado cuja execução é pretendida”.
Diz a Apelante que “o facto de um crédito exequendo estar garantido por hipoteca sobre bem que pertence à comunhão conjugal não impede que a execução seja instaurada ou prossiga somente contra um dos cônjuges proprietário do imóvel, pois que o que revel [sic] é o título executivo e não a garantia”.
Com todo o respeito, entendemos que a solução apresentada pelo Juízo de Execução de Soure, é a mais correcta e adequada ao Direito.
Senão vejamos.
Nos termos do artigo 34.º n.º 3 devem ser propostas contra ambos os cônjuges as acções emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as acções compreendidas no n.º 1 - as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.
No caso de litisconsórcio necessário, há uma única acção com pluralidade de sujeitos - artigo 35.º -, sendo que, porque movida a execução “ab initio” contra os cônjuges, já não tem aplicação o disposto na norma do artigo 740.º - citação do cônjuge do executado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.
Por isso, processualmente falando, como ficamos?
Entendemos que a matéria discutida nos embargos terá de aproveitar ao executado/embargante não contestante, evitando-se julgamentos de mérito em sentido discrepante em relação à mesma situação factual e jurídica.
Seja por via da aplicação da norma do artigo 568.º al. a) - não se aplica o disposto no artigo anterior – situação de revelia - quando, “havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar -.
No âmbito de uma acção/execução intentada sobre o mesmo pedido contra dois réus/executados, no quadro da pluralidade subjetiva necessária prevista no artigo 34.º, ocorre interesse comum entre os demandados, dispondo um dos réus/executados de legitimidade para assumir a defesa do outro (s) réus/executados.
Seja pelo entendimento de que o apelo à aplicação do consagrado na alínea a) do artigo 568.º, com referência à figura da revelia, é manifestamente irrelevante. [...]
Isto é, pelos embargos, o executado assume a autoria dum processo declarativo, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção, donde decorre necessariamente que relativamente ao executado que não deduz oposição à execução não ocorre um cenário de revelia nos termos preceituados para a acção declarativa. Na verdade, a revelia apenas teria efeito em sentido inverso.
Improcede, pois, o recurso."
*3. [Comentário] Em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (2022), 698, ensaia-se uma outra justificação para estender os efeitos da decisão de procedência proferida nos embargos de executado ao co-executado não embargante: essa extensão verifica-se se o litisconsórcio que se constituiria entre os vários executados, se todos eles tivessem embargado, fosse um litisconsórcio unitário.
É precisamente isso que ocorreria no presente caso: atendendo ao fundamento da decisão de procedência dos embargos (inexistência de título executivo por não cumprimento do disposto no art. 707.º CPC), se ambos os executados tivessem embargado, a decisão de procedência teria de ter sido a mesma para ambas as partes, não sendo imaginável que essa procedência se verificasse em relação a uma delas e não ocorresse necessariamente em relação à outra.
MTS