"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/11/2023

Jurisprudência 2023 (42)


Competência internacional;
Reg. 2201/2003


1. O sumário de RL 23/2/2023 (4398/21.9T8LSB.L1-8) é o seguinte:

I - O Regulamento (CE) 2201/2003, de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis) -substituído pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, com efeitos a partir de 01.08.2022 - aplica-se directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, pelo que a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar acções de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no respectivo art.º 3.º, n.º 1, als. a) e b), que prevalecem sobre os critérios internos previstos nos art.ºs 62.º e 63.º do CPC;

II – O referido Regulamento (CE) 2201/2003, tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a União Europeia;

III – Assim, por aplicação do critério da nacionalidade previsto art.º 3.º, n.º 1 al. b) do referido Regulamento (CE) 2201/2003, os tribunais portugueses são competentes para decretar o divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa, ainda que ambos sejam residentes na Suíça (Estado não membro) e que tenham ocorrido neste local os factos que constituem a causa de pedir do divórcio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Vejamos, então, se os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes para preparar e julgar a presente acção de divórcio.

O tribunal a quo considerou que não, assentando tal entendimento, basicamente, em três ordens de argumentos:

1.º não estarem verificados os elementos de conexão previstos no art.ºs 62.º e 63.º do CPC:
«O artigo 72.º, estabelece que é competente para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é o tribunal do domicílio ou da residência do autor, estando assim afastado o primeiro elemento de conexão, pois o Autor assumidamente vive na Suíça.

A factualidade que é causa de pedir na presente ação é a violação dos deveres de respeito e separação de facto, que ocorre na Suíça, onde viviam e vivem ambos os membros do casal, pelo que também está afastada o elemento de conexão da alínea b).

Por fim inexiste, pela evidente possibilidade de os Tribunais Suíços apreciarem a ação, o elemento de conexão residual previsto na alínea c) decorrente do princípio da necessidade.
Pela matéria em causa, direitos pessoais, não estão preenchidos nenhum dos elementos de conexão do artigo 63º previstos para matérias de diversa natureza, do âmbito dos direitos reais ou societários».

2.º não se aplicar ao caso o Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11:

«(…) certo é que se nos afigura que não sendo a Suíça Estado Membro da EU, não será automática a aplicação do Regulamento, quando tal aplicação é manifestamente contestado pela Ré residente»;

«em face do exposto e não sendo a Suíça, Estado Membro da União Europeia cremos que dificilmente, de modo automático, poderá ser aplicado a cidadãos portugueses naquele país residentes, o artigo 3 do referido Regulamento»;

«faltando o primeiro dos pressupostos, a integração do Estado da ordem jurídica competente para apreciar a questão, o Estado Suíço, na U.E, não se aplica à situação em apreço o referido Regulamento, reconduzindo-nos às normas que a lei processual civil prevê sobre tal matéria e das quais conforme se concluiu está afastada a competência dos Tribunais portugueses»;

3.º ter corrido termos e ter sido proferida sentença no processo referido no n.º 3 dos factos provados:

«A Ré veio invocar não só a incompetência internacional, como veio afirmar e juntar prova de que a relação jurídica colocada à apreciação deste Tribunal é já objeto apreciação nos Tribunais Suíços, que sobre a mesma definiu já a cessação de deveres inerentes à conjugalidade e parentalidade, decretando a separação. (…) É certo que não foram aqueles tribunais chamados a dissolver o vínculo matrimonial, que é o pedido destes autos de divórcio. Mas, aceitando-se a competência dos tribunais portugueses, como compatibilizar a mesma, em caso de convolação por divórcio por mútuo consentimento, com as questões já colocadas à apreciação dos tribunais suíços, onde se decidiu casa de morada de família, e guarda do filho menor?».

Não acolhemos este entendimento, como passaremos a demonstrar.

4.2. Como é consabido, a competência internacional respeita ao exercício do poder jurisdicional de um Estado em relação a um conflito que tenha um ou mais elementos de conexão com o estrangeiro, isto é, com uma ou várias ordens jurídicas distintas. [...]

4.4. Chegamos, assim, ao Regulamento (CE) 2201/2003 de 27.11 (Regulamento Bruxelas II bis), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

O referido Regulamento foi, como se sabe, revogado pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, com efeitos a partir de 01.08.2022 (cfr. respectivo art.º 104.º, n.º 1), mas este último só é aplicável às acções judiciais intentadas, aos actos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 01.08.2022 ou numa data posterior (cfr. respectivo art.º 100.º, n.º 1).

Em face da data da propositura da presente acção de divórcio (19.02.2021), releva, pois, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, em cujo n.º 3 se dispõe que:

«1. São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
- a residência habitual dos cônjuges, ou
- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou
- a residência habitual do requerido, ou
- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou
- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio';
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do 'domicílio' comum.
2. Para efeitos do presente regulamento, o termo 'domicílio' é entendido na acepção que lhe é dada pelos sistemas jurídicos do Reino Unido e da Irlanda».
 
Os critérios de competência enumerados no referido art.º 3.º são, inequivocamente, alternativos, não sendo estabelecida qualquer ordem de precedência entre uns e outros. [...]

E, se assim é, então a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar, nomeadamente, acções de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no art.º 3º, nº 1, als. a) e b), do Regulamento 2201/2003.

Com efeito, os critérios de atribuição de competência previstos do Regulamento (CE) 2201/2003 aplicam-se de forma plena e obrigatória, no que se refere, nomeadamente, a matéria de divórcio, prevalecendo e substituindo, portanto, os critérios previstos nos art.ºs 62.º e 63.º do CPC.

Por conseguinte, ainda que não se esteja perante um conflito de jurisdições ou ainda que mais nenhuma das jurisdições em jogo, para além de Portugal, seja a de um Estado-Membro da União Europeia, o referido Regulamento tem aplicação, sendo de acordo com o mesmo que deve ser aferida a competência dos tribunais portugueses.

É que, como se viu, tal regulamento não visa regular conflitos de jurisdições (entre Estados-Membros), mas atribuir competência internacional aos tribunais dos diversos Estados-Membros para decidir das matérias nele previstas.

Com efeito, o Regulamento nº 2201/2203 tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a UE. [...]

Temos, pois, que, apesar de a Suíça não ser Estado-Membro da União Europeia, à luz da definição de Estado-Membro contida no art. 2.º, n.º 3, do Regulamento nº 2201/2003, o caso vertente não pode deixar de estar coberto pelo âmbito espacial deste Regulamento, na medida em que, sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente acção tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido respectivo art.º 3.º, n.º 1, als. a) e b), e nunca à luz da legislação processual civil interna (nomeadamente, os art.ºs 62.º e 63.º do CPC).

Ora, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 3.º do Regulamento n.º 2201/2003, a nacionalidade comum de ambos os cônjuges é, por si só, suficiente para conferir competência internacional aos tribunais do Estado-Membro de que ambos os cônjuges sejam nacionais.

Donde se conclui, inequivocamente, pela competência internacional do tribunal recorrido para preparar e julgar a presente acção, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio."

[MTS]