"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/11/2023

Jurisprudência 2023 (54)


Processo de inventário;
relação de bens; facto superveniente

1. O sumário de RC 28/2/2023 (270/21.0T8PBL-A.C1) é o seguinte:

I - Se num inventário judicial para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio, a que se aplica o CPC com a reforma introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, depois de ter havido reclamações da relação de bens, já decididas, um interessado requer “seja relacionado como bem comum - por referência à verba nº 3 da relação de bens, quota social de que o ex-casal é titular na sociedade “X e Z Lda.”, de que o outro interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente - o direito de crédito aos lucros da mesma empresa, isto é, aos resultados ou dividendos relativos ao exercício da actividade desde a data de 27/3/2016, data da separação de facto entre os cônjuges fixada na sentença de divórcio nos termos do artº 1789º nº 2 do CC., e até efectiva partilha”,

II - Pode entender-se não ser caso para indeferimento liminar por extemporaneidade, com base no efeito preclusivo de já ter havido reclamação à relação de bens,

III - E entender-se a pretensão como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3.

Em tudo um raciocínio semelhante ao plasmado no artigo 265º, 2 do CPC ao estatuir sobre a livre ampliação do pedido na 1ª instância.

IV - O artigo 1110º, 1, a) do CPC prevê haver lugar a despacho saneador com o propósito de resolver todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sendo a que agora nos ocupa uma delas, certamente, pelas implicações que pode ter.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se-se o seguinte:

"A decisão recorrida entendeu a pretensão da ora Apelante como sendo uma nova reclamação à relação (embora actualizada) de bens a partilhar. Entendeu que com a reforma do processo especial de inventário operada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro só é admissível nova reclamação se invocada a superveniência do seu conhecimento. Entendeu-se que tal requisito se não verificava, e a pretensão foi indeferida por extemporaneidade.

Para melhor entendimento desta argumentação podemos socorrer-nos do Ac. TRG, de 15 de Junho de 2021, proferido no processo nº 556/20.1T8CHV-A.G1 (Conceição Sampaio), acessível no site da dgsi.net., onde, para uma situação diferente da nossa, seguiu argumentação tirada a papel químico.

Nesse aresto – para uma situação diferente – escreveu-se:

A nova lei que veio regulamentar o processo de inventário procurou instituir um novo paradigma com o objectivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais, introduzindo um princípio de concentração associado a um princípio de preclusão.

Nas palavras de Lopes do Rego, “Do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão (…). Ou seja, adopta-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respectiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal” - Carlos Lopes do Rego, A Recapitulação do Inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 12.

Da imposição deste modelo procedimental resulta que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objectiva ou subjectiva, na fase da oposição, com indicação de toda a prova.

Por outro lado, como afirma o autor, a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica igualmente que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão -  Carlos Lopes do Rego, A Recapitulação do Inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 13.

Com esta tramitação pretendeu-se dar resposta às questões processuais que, no anterior regime, constituíam um verdadeiro “convite ao entorpecimento”, impondo-se agora uma rígida disciplina processual, de molde a acabar com a tramitação sinuosa e permissiva do processo de inventário.

Foi a consciência de que uma significativa responsabilidade pela morosidade do processo de inventário “cabia” à própria tramitação, que motivou a necessidade imperiosa de se procurar dotar o processo de uma tramitação que permitisse que o mesmo fluísse e não proporcionasse um uso menos apropriado por parte dos interessados - Neste sentido, Pedro Pinheiro Torres, Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redacção dada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro, pág. 14, CEJ, eb-inventário, 2020.

Com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de actos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último - Lopes do Rego, ob. cit. pág. 14.

Dito isto, não vindo invocada a superveniência, nenhuma justificação se prefigura como atendível, no sentido da admissibilidade do requerimento apresentado pelos reclamantes, tendo sido bem decidido o seu indeferimento.


*
O processo principal, de que este apenso A é o de recurso em separado -, trata de Processo de Inventário para partilha subsequente ao divórcio, previsto no artigo 1133º do CPC, regulado nos termos aí previstos, aplicando-se em tudo o que for omisso, as disposições relativas ao inventário para pôr termo à comunhão hereditária do artigo 1097º e ss, do m. d., na redacção operada pela Lei n.º 117/2019 de 13 de Setembro.

Teve lugar uma audiência prévia - cfr. artigo 1109º do CPC -, diligência que foi dada por finda, e que conseguiu o objectivo de conciliar os interessados em pontos específicos sobre o que estavam desavindos, culminando pela notificação do cabeça-de-casal para entregar, em prazo, uma relação de bens actualizada. 

Não consta da respectiva acta que os Interessados ficaram sem divergências.

A Requerente não refere vir reclamar da relação de bens. Não se compromete com a figura incidental da reclamação.

O que a Requerente vem dizer é que a verba nº 3 da relação de bens é constituída por quota social de que o ex-casal é titular na sociedade A... Lda., de que o interessado e cabeça-de-casal é sócio-gerente.

Vem dizer subentendidamente que a exploração da sociedade comercial se fazia em proveito do ex-casal.

Uma vez que já passou muito tempo entre o momento a que se reportam os efeitos patrimoniais do divórcio – 27-3-2016 - e ainda passará até ao momento da efectiva partilha, deve ser relacionado o lucro líquido, de cada exercício, correspondente à quota em causa.

Entende-o como uma consequência do decurso do tempo relativamente à titulação da participação social, algo acessório que flui naturalmente com o decurso do tempo e o prosseguimento da exploração da sociedade, uma espécie de desenvolvimento ou ampliação da relacionação da referida verba nº 3.

Em tudo um raciocínio semelhante ao plasmado no artigo 265º, 2 do CPC ao estatuir sobre a livre ampliação do pedido na 1ª instância.

À partida uma pretensão destas não parece ser de rejeitar liminarmente por extemporaneidade, uma vez também se prevê no artigo 1110º, 1, a) do CPC haver lugar a despacho saneador com o propósito de resolver todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sendo a que agora nos ocupa uma delas, certamente, pelas implicações que pode ter."

[MTS]