"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/11/2023

Jurisprudência 2023 (51)


Interesse processual;
falta; consequências


1. O sumário de RL 7/3/2023 (523/22.0T8BRR.L1-1é o seguinte:

I. O contitular de uma quota social (co-herdeiro do sócio falecido) tem legitimidade processual para invocar a nulidade de deliberação social por falta de convocação para a realização da assembleia geral da sociedade – artigo 56.º, n.º 1, al. a) do CSC e artigo 286.º do CC.

II. Não obstante, consistindo a deliberação impugnada na apresentação à insolvência pela sociedade, e tendo tal insolvência sido declarada por sentença, entretanto transitada em julgado, deixou de existir interesse processual do referido contitular para prosseguir com a acção por si intentada, já que nenhuma utilidade da mesma poderá extrair.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Concordamos com o autor quando defende que, estando em causa a arguição da nulidade de deliberação social, a legitimidade para a impugnar é mais alargada, devendo ser aferida “em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo autor” (Conclusões 10 e 11), valorando-se, para tanto, o disposto no artigo 286.º do CC - “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”.

Não se poderá, contudo, deixar de realçar que, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, interessado para efeitos do artigo 286.º do CC será “o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio.” [Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra editora, 4.ª edição, revista e actualizada, 1987, pág. 263. Defendendo aqui a aplicação do artigo 286.º do CC, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 14/06/2018 (Proc. n.º 7071/17.9T8VNF-F.G1, relator Pedro Damião e Cunha), segundo o qual, “(…) VI – A legitimidade para a instauração de uma acção de declaração de nulidade de uma deliberação social não se mostra atribuída em exclusivo aos sócios da Sociedade Comercial. VII – Com efeito, à nulidade das deliberações sociais, enquanto negócios jurídicos, é aplicável o regime comum dos negócios jurídicos nulos (…)”.]

Será essa a situação do autor?

Como decorre do artigo 56.º, n.º 1, al. a), do CSC, “São nulas as deliberações dos sócios (…) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados.

No caso, invoca o autor não ter sido convocado para a assembleia geral que se realizou no dia 30/11/2021 (nem na mesma tendo estado presente), nessa medida reputando como nula a deliberação que nessa assembleia foi aprovada (segundo a qual a primeira ré se iria apresentar à insolvência).

Considerando a preterição invocada pelo autor como sendo causa de nulidade da deliberação - não convocação da assembleia -, sempre estaremos perante uma nulidade de procedimento, sendo que os vícios de procedimento são passíveis de ser sanados – cfr. artigo 62.º, n.º 1 do mesmo código. Daí que Menezes Cordeiro refira que, em “rigor, a não convocação de um sócio dá lugar a anulabilidade: cabe ao sócio atingido decidir se anula, ou não, o que tenha sido deliberado”. [Vide, MENEZES CORDEIRO, [Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, 4.ª edição, revista e actualizada, 2021], pág. 295, nota 4.]

Contudo, como se defendeu no acórdão da Relação de Guimarães de 18/01/2018 [Proc. n.º 5728/15.8T8VNF.G1, relatora Sandra Melo.], está previsto “no artigo 57º nº 1 e nº 4 do Código das Sociedades Comerciais que o órgão de fiscalização da sociedade deve dar a conhecer a nulidade aos sócios, em assembleia geral e que nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, os deveres supra mencionados são incumbidos a qualquer gerente. Daqui é patente a vontade que o sistema jurídico tem de expurgar as deliberações sociais nulas (e podendo estas serem sanadas, que tal ocorra) do seu universo, a par do seu conhecimento oficioso e alargamento da legitimidade para a sua invocação a qualquer interessado. É ainda pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que estas normas, especialmente previstas no artigo 57º do Código das Sociedades Comerciais, não afastam o regime geral previsto no artigo 286º, do Código Civil: a mesma nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente (…) também aqui não há razões para afastar o regime legal que permite o conhecimento oficioso da nulidade e a pedido de qualquer interessado, atenta a elevada ilicitude de que padece o ato nulo. Enfim, nos termos do artigo 286º do Código Civil, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”

E, continua, “os contitulares das quotas têm necessariamente interesse no destino da sociedade, nada obstando que cada um no seu interesse, enquanto titular de uma expetativa de aquisição, despolete a simples declaração de nulidade de uma deliberação social. (…) Há, assim, que concluir pela legitimidade dos Autores para a dedução do primeiro pedido, com, obviamente, a causa de pedir formulada na ação: a declaração de nulidade por preterição da convocação para a Assembleia Geral.”

No seguimento do aqui defendido, com o qual se concorda, e reportando à situação dos autos, dir-se-á assistir razão ao autor/apelante quando defende ser interessado para efeitos de peticionar a nulidade da deliberação com fundamento na não convocação para a assembleia geral realizada em 30/11/2021.

E, se assim é, ao contrário do decidido pela 1.ª Instância, é o mesmo parte legítima para intentar a acção com esse fundamento (independentemente de a convocação cuja omissão foi invocada dever ou não ter lugar, o que contende já com o mérito da causa e não com a análise do pressuposto processual de que estamos a cuidar).
Impõe-se, assim, revogar a decisão recorrida.

A revogação da decisão recorrida implicaria o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido deduzido pelo autor.

Porém, como resulta expressamente do artigo 130.º do CPC, não é lícito realizar no processo actos inúteis - “O direito adjetivo não constitui um fim em si mesmo, sendo um mero instrumento para resolução de litígios de acordo com o que emergir do direito material. Daí que no processo em que o litígio se dirime apenas devam ser praticados os atos que se revelem úteis para alcançar aquele desiderato, de forma simples e ágil, como o impõe o art.º 6º.” [ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2.ª edição, reimpressão, 2020, págs. 161-162.]

Ora, no caso, não se vislumbra qual a utilidade que, do prosseguimento da acção, resultaria para o autor.

A ré sociedade foi já declarada insolvente, por sentença transitada em julgado.

Como se referiu expressamente no acórdão proferido no recurso intentado sobre tal sentença (proferido no âmbito do processo n.º 130/22.8T8BRR-C.L1, aí sendo igualmente apelante o aqui autor), C, enquanto gerente da ré sociedade, tinha o dever de diligenciar pela apresentação à insolvência (como sucedeu) – cfr. artigos 18.º e 19.º do CIRE -, independentemente de existir ou não deliberação social a determinar que assim fosse.  

Neste acórdão defendemos:

«No caso, sendo a requerente uma sociedade por quotas, dúvidas inexistem quanto à legitimidade de C para promover a insolvência, tanto mais que a mesma é gerente da sociedade insolvente.

Com efeito, como refere António Menezes Cordeiro, em anotação ao artigo 252.º, n.º 1 do CSComerciais, cabe à gerência, enquanto órgão da sociedade por quotas, formar e exprimir a vontade imputável à pessoa colectiva, “com relevo nas relações internas, perante os demais órgãos sociais, mas com especial relevo nas relações com terceiros.

Já Alexandre Soveral Martins, aludindo em concreto ao caso de apresentação à insolvência, também assim o defende – “Relativamente aos devedores que sejam sociedades comerciais, é importante saber se a decisão de apresentar o devedor à insolvência cabe ao órgão de administração ou se este apenas tem poderes para executar a decisão já tomada. Estando em causa, por exemplo, uma sociedade por quotas, a gerência pode avançar com o requerimento de apresentação à insolvência sem ter apoio em deliberação dos sócios? O art.º 19.º dá a entender que, no plano externo, esse requerimento será válido e eficaz. Com efeito, aquele preceito confere ao órgão social de administração a própria «iniciativa». Isto parece significar que o órgão de administração não tem de esperar pela tomada de decisão de um qualquer outro órgão para poder eficazmente apresentar o pedido de insolvência em representação da sociedade. Por outro lado, uma decisão de sentido contrário à apresentação à insolvência que seja tomada noutro órgão da sociedade também não retira eficácia ao pedido de declaração de insolvência que seja apresentado pelo órgão de administração.”».

Mais se tendo aí escrito:

«O facto de existirem processos pendentes nos quais esteja em discussão “a legalidade das deliberações que levaram à titularidade dos sócios da devedora” e subsequentes deliberações, sendo que, inclusive, foi já proferida sentença, com trânsito em julgado, a declarar a nulidade da deliberação de cessão de quotas da sociedade ré B … Lda, factos que, no entender do recorrente, acarreta a invalidade da deliberação junta com a petição inicial, também não obsta ao que se acabou de defender.

Como refere Pedro de Albuquerque, “Não falta quem considere que sendo devedor uma sociedade para além das exigências constantes do artigo 24 nº 2, alínea a), se mostraria ainda necessária a apresentação de uma acta da Assembleia Geral (…). E isto porque a dissolução da sociedade depende de deliberação dos sócios (artigos 1007 e 1008 do Código Civil e artigo 383 nº2, do Código das Sociedades Comerciais (...). Com a devida vénia não se vê como acompanhar semelhante exigência (...). Levada às suas naturais consequências, a construção em referência redundaria em exigir uma deliberação dos sócios em todos os casos de dissolução o que é inaceitável. Aliás o artigo 141, nº1, alínea e) do Código das Sociedades Comerciais é claro ao contrapor e distinguir a dissolução por efeito da falência da dissolução por deliberação dos sócios. (...) Acresce não se vislumbrar porque razão se deveria exigir a deliberação dos sócios no caso de apresentação e se não devesse exigir idêntica deliberação nos casos em que processa desencadeado por outra legitimados. Se essa exigência pode faltar nuns casos também o pode nos outros. Nada impõe outro entendimento. Tanto mais quanto é certa a circunstância de no caso das sociedade recair sobre os gestores um dever de apresentação, cujo cumprimento não pode nem deve ficar condicionados por deliberações dos sócios, pela sua diferente leitura da situação ou sequer pelas dificuldades de convocar imediatamente assembleias gerais ou de cumprir o respectivo quorum”.

Conclui-se, assim, poder a apresentação à insolvência ser efectuada pela sua gerente, como sucedeu.»

Como resulta deste aresto, para além de estarem preenchidos os pressupostos para a declaração da insolvência, sempre a mesma podia, e devia ter sido impulsionada nos moldes em que o foi – apresentação à insolvência por intermédio da sua gerente -, não sendo necessária qualquer prévia deliberação social nesse sentido.

Assim, não obstante o autor ter sido considerado parte interessada – independentemente de lhe assistir ou não razão quando alega que deveria ter sido convocado para a assembleia geral (questão que não cumpre aqui conhecer) -, nunca o mesmo poderá (mesmo na hipótese de vir a ser declarada a nulidade da deliberação por preterição da convocação) obstar à declaração de insolvência da primeira ré.

Ordenar o prosseguimento da acção não revestiria qualquer interesse prático (designadamente para o autor). Ou seja, no caso, a necessidade de prosseguir com a acção deixou de existir.

Consistindo o interesse processual na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, o mesmo não se confunde com os restantes pressupostos processuais, designadamente com o referente à legitimidade. [ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra editora, 2.ª edição, revista e actualizada, 1985, pág. 179 e 181. Também PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, Almedina, 3.ª edição, 2020, pág. 98, assim o refere: “O interesse processual não se confunde com a legitimidade, porque o interesse directo em demandar e em contradizer (que caracteriza a legitimidade) refere-se ao objecto da lide, ao conteúdo material da pretensão, enquanto que o interesse em agir respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentada em juízo.”.]

Nestes termos, pese embora se revogue a decisão impugnada (que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa do autor) não deverão os autos prosseguir para conhecimento da invocada nulidade por da mesma não resultar qualquer utilidade para o autor."

[MTS]