"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2023

A eficácia preclusiva da não dedução de embargos pelo executado


1. O sumário de STJ 3/5/2023 (1704/21.0T8GRD.C1.S1) é o seguinte:

I - Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente.

II - Efetivamente, não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e tal ónus também não é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6, ambos do CPC, o que significa, não estando consagrado tal ónus de embargar, que não ficam precludidos os fundamentos não invocados (e que não há preclusão decorrente da não dedução de embargos).

III - O sentido do atual art. 732.º/6 do CPC é o de deixar claro que uma decisão de mérito proferida nos embargos é dotada da força geral do caso julgado material em relação à causa de pedir e aos fundamentos que ali foram invocados (não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir), ou seja, o caso julgado que se constitui é restrito à causa de pedir invocada e, em consequência, não há preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos.

2. O acórdão do STJ pronuncia-se sobre uma questão que tem vindo a ser discutida na jurisprudência e na doutrina. O acórdão acaba por concluir pelo efeito não preclusivo da não dedução de embargos de executado (ou do que não for alegado em embargos de executado que tenham sido deduzidos), invocando como argumento principal o seguinte:

"Sucede – é o ponto – que não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e também não nos parece que se possa/deva afirmar que tal ónus é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6 ambos do CPC."

Perante o que tem sido defendido neste Blog (e que, aliás, é referido no acórdão do STJ), não é surpreendente que, salvo o devido respeito, se discorde da orientação nele defendida.

Para que não se suscitem nenhumas dúvidas, o que agora está em causa é exactamente o que estava em causa no acórdão: admitir-se que o executado possa, em acção autónoma, "invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução". Se o problema for o de saber se se pode admitir que o ex-executado possa vir a invocar, em processo autónomo, meios de defesa que são supervenientes em relação ao processo executivo, o problema é, como é claro, completamente diferente.

3. A dedução de embargos pelo executado não é uma faculdade que essa parte pode utilizar conforme entender, mas antes um ónus que incide sobre essa parte.

O argumento de que "que não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar" não parece poder ser considerando procedente. Importa começar por uma observação geral: a situação subjectiva que é típica de qualquer processo é o ónus, pelo que, por definição, a parte não tem nem a mera faculdade de praticar um acto, nem o dever de o praticar; o que a parte tem é, salvo disposição legal em contrário, o ónus de o praticar. É por isso que a ideia de uma faculdade de defesa -- e não de um ónus de defesa -- é contrária à essência do processo civil.

Passando ao caso concreto dos embargos de executado, lembre-se que estes embargos são um meio de oposição à execução para o qual a lei estabelece um prazo normal (art. 728.º, n.º 1, CPC) e um prazo para a hipótese de a oposição ser superveniente (art. 728.º, n.º 2, CPC). Concluir que há prazo para a prática de um acto e que não há nenhuma preclusão se o acto não for praticado não é a coisa mais evidente em processo civil. "Prazos peremptórios não preclusivos" é algo que o disposto no art. 139.º, n.º 3, CPC rejeita de forma clara.

Veja-se também como a solução adoptada no acórdão conduz a soluções estranhas. Suponha-se que os embargos de executado são rejeitados por serem extemporâneos (art. 732.º, n.º 1, al. a), CPC). Segundo aquela solução, o indeferimento liminar (que, para além do mais, demonstra que os prazos para a dedução dos embargos são preclusivos) não impede a alegação dos fundamentos então invocados nos embargos em acção de restituição do indevido.

A preclusão decorrente da perda do prazo para a dedução de embargos pelo executado tem de operar tanto no âmbito do processo executivo, como fora deste processo. Não seria lógico que, por ter decorrido o prazo estabelecido no art. 728.º, n.º 1 e 2, CPC, o executado deixasse de se poder opor à execução e depois concluir-se que nada estava precludido, porque o que deixou se ser possível invocar no processo executivo pode, afinal, ser alegado em processo autónomo. A preclusão processual conduz inevitavelmente a uma preclusão extraprocessual. A orientação do acórdão em análise contraria esta correspondência: admite a preclusão processual, porque, segundo se julga, impõe o respeito dos prazos estabelecidos no art. 728.º, n.º 1 e 2, CPC, mas não a preclusão extraprocessual, porque aceita que o que não foi invocado no processo executivo, podendo tê-lo sido, possa vir a ser alegado num processo autónomo.

Concluir que o acto fica precludido -- que é, in casu, a dedução de embargos pelo executado -- e que a alegação do que podia ter sido invocado nesse acto não fica precludido não é também algo que seja admissível em processo civil. Se a parte perdeu a oportunidade de interpor um recurso ordinário, é claro que fica precludida a alegação do que a parte podia ter invocado nesse meio de impugnação. Como é evidente, a parte não pode intentar uma nova acção para nesta alegar o que não chegou a alegar no recurso que deixou de poder interpor. Portanto, a preclusão do acto implica a preclusão da invocação do que podia ter sido alegado nesse acto.

4. Também é muito significativa a consagração explícita de um prazo para a dedução dos embargos na hipótese de oposição superveniente (art. 728.º, n,º 2, CPC). Suponha-se que, durante a pendência de uma acção declarativa, o réu paga a dívida até ao fim da audiência final, mas não alega, em articulado superveniente, esse pagamento (art. 588.º, n.º 3, CPC). O que sucede? Naturalmente, a preclusão da alegação do pagamento. Suponha-se agora que, durante a pendência do processo executivo, o executado paga a dívida e não alega o pagamento nesse processo (mesmo que seja por mero requerimento). O que sucede? Segundo a orientação do acórdão, nada. A justificação para a diferença de soluções não é evidente. Qual a razão para, no primeiro caso, não se admitir a restituição por enriquecimento sem causa e no segundo se admitir essa restituição, quando parte deixou de fazer exactamente o mesmo nas duas situações? 

Repare-se ainda que a fixação de um prazo para a oposição superveniente se destina precisamente a estabelecer a preclusão da alegação do meio de defesa do executado. Efectivamente, se não se pretendesse determinar essa preclusão, não teria sentido estabelecer aquele prazo. Quer dizer: se a lei estabelece um prazo para a oposição superveniente, é porque "quer" que esta oposição seja deduzida no processo executivo. Não se compreende que a lei tenha o cuidado de estabelecer um prazo para a oposição superveniente e depois concluir que a não utilização desse prazo não tem nenhumas consequências e que o que podia ser alegado no processo executivo como meio de defesa do executado também pode vir a ser invocado fora dele.

5. Segundo o disposto no art. 729.º, al. g), CPC, se a execução se fundar em sentença, só pode invocar-se, como fundamento dos embargos de executado, uma excepção peremptória que seja posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância. O sentido do regime é relativamente claro: se a excepção tiver ocorrido antes do encerramento da discussão em 1.ª instância, a mesma deve ser invocada, sob pena de preclusão, no processo declarativo; se a excepção ocorrer depois desse encerramento, não pode ser alegada no processo declarativo e o executado tem o ónus de a alegar no processo executivo. Em contraste com esta simplicidade, a orientação defendida no acórdão em análise possibilita a invocação dessa excepção superveniente (em relação ao processo declarativo), à escolha do executado, quer no processo executivo, quer em posterior processo autónomo. Em última análise, é a função e a eficiência do processo executivo que ficam comprometidas com esta solução.

Aliás, cabe perguntar por que razão o mesmo não acontece quanto a outros meios de defesa do executado. Por exemplo: por que razão o executado tem o ónus de se opor à penhora (art. 784.º e 785.º CPC), e não há-de poder opor-se à penhora e à consequente venda executiva num posterior processo autónomo? Repare-se que, seguindo a orientação adoptada no acórdão, também se poderia dizer que "
não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus" de oposição à penhora pelo executado.

6. Em conclusão: 

-- Não é verdade que "que não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar": se há um prazo para a dedução da oposição à execução, existe uma preclusão decorrente da não dedução desse oposição, porque os prazos peremptórios são necessariamente prazos preclusivos;

-- A dedução de embargos pelo executado é um ónus que recai sobre esta parte; o não cumprimento deste ónus nos prazos estabelecidos na lei tem as habituais consequências preclusivas; para que assim não sucedesse, seria necessária uma expressa estatuição legal;

-- O acórdão em análise não só descurou todos os indícios de que o CPC atribui ao executado efectivamente um ónus de embargar, como não conseguiu demonstrar nenhuma excepção à eficácia preclusiva (processual e extraprocessual) que decorre da falta da dedução de embargos pelo executado (ou da falta da alegação de um dos fundamentos desses embargos pelo executado).


MTS