"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2023

Jurisprudência 2023 (62)


Simulação; prova;
prova testemunhal; poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 21/3/2023 (2375/21.9T8STR.E1.S1) é o seguinte:

I. — O ónus da alegação e da prova de que estão preenchidos os pressupostos da excepção do art. 1381.º, alínea a), do Código Civil recai sobre o alienante e/ou sobre o terceiro adquirente do prédio.

II. — O art. 394.º do Código Civil deve ser objecto de uma interpretação restritiva, admitindo-se a valoração de prova testemunhal como prova complementar de um início de prova escrita, desde que esta constitua, só por si, um indício que torne verosímil a existência de simulação.

III. — O alegado erro do Tribunal da Relação sobre se um determinado documento torna ou não verosímil a existência de simulação é, só pode ser, um erro na apreciação das provas — e um erro na apreciação das provas não pode ser objecto do recurso de revista.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"29. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil determina que

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

30. Como se escreve, p. ex., nos acórdãos do STJ de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018  — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.]

“… está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.].

31. Em todo o caso, o alcance do art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil deve esclarecer-se. O Supremo Tribunal de Justiça pode pronunciar-se sobre a interpretação e sobre a integração das disposições de direito probatório relevantes e pode sindicar o juízo probatório do Tribunal da Relação desde que tenha sido dado como provado um facto sem que tivesse sido feita prova da espécie que a lei considera necessária, ou desde que tenham sido dados como provados ou como não provados factos em violação das regras sobre a força dos meios de prova [---]. Entre os corolários do art. 674.º, n.º´1, in fine, está o de que o Supremo Tribunal de Justiça pode e deve pronunciar-se sobre a interpretação e a integração das disposições legais relevantes para determinar se é ou não admissível prova testemunhal — designadamente, das disposições dos arts. 393.º e 394.º do Código Civil [---].

31. A doutrina e a jurisprudência discutem se a admissibilidade de prova testemunhal para a prova de que o preço convencionado era superior ao preço declarado em documento autêntico, desde que haja um início de prova ou um princípio de prova por escrito, resulta de uma interpretação restritiva do art. 358.º, n.º 2, em ligação com os arts. 371.º, n.º 1, e 393.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil [---] ou, tão-só, de uma interpretação restritiva do art. 394.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil [---].

32. Em alguma doutrina e, sobretudo, em alguma jurisprudência recente, distingue-se as proibições de prova testemunhal do art. 393.º e do art. 394.º.

O art. 393.º deveria ser objecto de uma interpretação declarativa. Encontrando-se em causa, p. ex., factos provados por confissão, que constasse de documento autêntico, não seria nunca admitida a prova testemunhal [---]. O art. 394.º, e só o art. 394.º, deveria ser objecto de uma interpretação restritiva, “[em termos de se admitir] a valoração de prova testemunhal como prova complementar de um início de prova escrita ou retirada de circunstâncias que revelem a existência da declaração negocial a provar” [---]. Estando em causa, p. ex., a prova do acordo simulatório ou, desde que demonstrado o acordo simulatório, a prova do negócio dissimulado, “a norma do art. 394.º n.º 2 do Código Civil deve[ria] ser interpretada restritivamente, no sentido de que, existindo um princípio de prova por escrito, é lícito aos simuladores recorrer à prova testemunhal para completar a prova documental existente, desde que esta ‘constitua, por si só, um indício que torne verosímil a existência de simulação’” [Cf. acórdão do STJ de 9 de Julho de 2014 — processo n.º 5944/07.6TBVNG.P1.S1.].

33. Embora a doutrina e a jurisprudência discutam se a admissibilidade de prova testemunhal desde que haja um início de prova ou um princípio de prova por escrito resulta de uma interpretação restritiva do art. 358.º, n.º 2, em ligação com os arts. 371.º, n.º 1, e 393.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil ou, tão-só, de uma interpretação restritiva do art. 394.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, a discussão pode, por agora, permanecer em aberto.

34. O caso concreto é o de uma simulação relativa, sobre o preço, em que há algum consenso sobre a interpretação restritiva das proibições legais [---].

35. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que a prova testemunhal só pode ser “complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de ‘fumus boni juris’” [---], ou seja, que de um documento que, só por si, torne verosímil a simulação [Expressão, p. ex., dos acórdãos do STJ de 9 de Julho de 2014 — processo n.º 5944/07.6TBVNG.P1.S1 —, de 9 de Março de 2021 — processo n.º 2891/18.0T8BRG.G1.S1 — ou de 14 de Setembro de 2021 — processo n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1.]

36. Os Réus, agora Recorrentes, alegam que o documento de fls. 47 e 48, só por si, tornava verosímil a simulação.

37. O acórdão recorrido considerou que “[o]s Réus/apelados não juntaram nenhuma prova documental que possa constituir um princípio de prova de que a declaração por si feita na escritura pública de compra e venda, de que o preço de € 25.000,00 pela transmissão da propriedade do prédio, não correspondia à verdade”.

38. Os Réus, agora Recorrentes, alegam que

14. O acórdão do qual agora se recorre, não tem qualquer fundamento, pois é legalmente admissível prova testemunhal quando o facto a provar, nomeadamente o valor real da venda, surge com alguma verosimilhança, em prova escrita, como em concreto ocorreu, o que constitui exceção à regra prevista no artigo 394º do CC. […]

17. […] os RR juntaram a declaração escrita junta a fls 47 e 48, que importou o convencimento do Tribunal de 1ª Instância quanto à veracidade do preço total pago pela Ré Sociedade compradora ao Réu vendedor, pelo que sempre teria o Tribunal da Relação de admitir assim como admitiu a 1ª instância, a prova testemunhal a fim de interpretar o contexto do documento, que constituiu o indício que tornou verosímil a alegação do preço pago pela Ré sociedade compradora.

39. Ora deve distinguir-se entre a questão da interpretação ou integração dos arts. 393.º e 394.º do Código Civil e a questão da aplicação da lei ao caso concreto — concretizada num juízo de facto sobre a verosimilhança de uma simulação: a primeira é uma questão de direito; pode e deve ser apreciada pelo Supremo; a segunda é uma questão de facto, não pode ou, em todo o caso, não deve ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

40. O alegado erro do Tribunal da Relação sobre se um determinado documento torna ou não verosímil a simulação é, só pode ser, um erro na apreciação das provas — e um erro na apreciação das provas não pode ser objecto do recurso de revista.

41. A resposta dada à segunda questão prejudica a terceira — e, ainda que a resposta dada á segunda questão não a prejudicasse, sempre a resposta à terceira questão teria de ser determinada pelo art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

42. O Tribunal da Relação considerou que “nenhuma testemunha depôs com o mínimo rigor e consistência” e que, em consequência, a prova testemunhal não teria, em qualquer circunstância, a virtualidade de demonstrar “que a declaração […] de que o preço de € 25.000,00 pela transmissão da propriedade do prédio, não correspondia à verdade” — e o Supremo Tribunal de Justiça não pode substituir-se ao Tribunal da Relação para decidir que alguma testemunha depôs com rigor e consistência, ou que a prova testemunhal tem a virtualidade de demonstrar que a declaração não correspondia à verdade."

*3. [Comentário] Com a devida consideração, o acórdão não deixa de suscitar alguma perplexidade. Por um lado, afirma-se que

35. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que a prova testemunhal só pode ser “complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de ‘fumus boni juris’” [---], ou seja, que de um documento que, só por si, torne verosímil a simulação [Expressão, p. ex., dos acórdãos do STJ de 9 de Julho de 2014 — processo n.º 5944/07.6TBVNG.P1.S1 —, de 9 de Março de 2021 — processo n.º 2891/18.0T8BRG.G1.S1 — ou de 14 de Setembro de 2021 — processo n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1.].

Por outro, nega-se ao STJ a possibilidade de controlar a aplicação do critério que ele próprio definiu.

Há aqui qualquer coisa que não joga: se o STJ pode definir as condições em que a prova testemunhal é admissível para a demonstração da simulação, então tem também de se admitir que o STJ pode controlar a aplicação desse critério. A partir do momento em que o STJ definiu um critério para a prova da simulação, tem de se aceitar o controlo da aplicação desse critério pelo STJ. 

Mais até: se o STJ definiu em que condições é que a simulação pode ser demonstrada por prova testemunhal, é porque entendeu que a matéria pertencia à sua competência decisória. Se assim não fosse, o STJ ter-se-ia limitado a afirmar que a matéria não se incluía na sua competência e a abster-se de firmar qualquer critério quanto a essa demonstração.
 
Aliás, toda a jurisprudência do STJ que é acima transcrita não fez outra coisa se não controlar a aplicação desse critério. É o que resulta, por exemplo, do sumário do acórdão de 14/9/2021:

[...] III - Saber se é ou não admissível exclusivamente prova testemunhal para a demonstração do preço simulado numa escritura pública é matéria que se inscreve na previsão legal dos arts. 682.º, n.º 2, e 674.º, n.º 3, do CPC por constituir indagação de ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal). [...]

IV - Quando houver princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória ou a qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo da escritura, é admissível prova testemunhal para complementar a demonstração, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, o que decorre da interpretação do art. 394.º do CC.

MTS