Competência material;
concorrência desleal
1. O sumário de RL 14/3/2023 (7293/22.0T8LSB.L1-7) é o seguinte:
Pertence aos Juízos Cíveis e não ao Tribunal da Propriedade Intelectual, a competência material para a preparação e julgamento de uma ação em que é formulado um pedido de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência da alegada prática de atos de concorrência desleal, mas em que não está em causa a violação de direitos privativos da propriedade industrial, como é caso dos que tutelam as invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"[...] considerando a relação material controvertida tal como os autores a configuram, assim como o pedido pelos mesmos formulados, desde já nos adiantamos, afirmando que, em nosso entender, materialmente competente para apreciar e julgar a presente ação é o tribunal onde ela foi instaurada, o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, como entendem os autores, e não o TPI, como entendem, quer as rés, quer o tribunal recorrido.
Vamos ver porquê!
Estamos perante uma ação de indemnização por alegados danos patrimoniais que tem como causa de pedir a alegada prática de atos ilícitos com violação das regras da concorrência.
É a partir desta certeza que se determinará qual o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.
Na Lei n.º 3/99, de 13.01 (Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOFTJ), existiu, desde a sua versão original e até à entrada em vigor da Lei n.º 46/2011, de 24.06, uma norma, contida na al. f) do n.º 1 do seu art.º 89.º, com o seguinte teor: «Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar (...) as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial.»
A Lei n.º 46/2011, de 24.06, criou o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, introduzindo alterações da LOFTJ.
O art.º 1.º da Lei n.º 46/2011, de 24.06, revogou a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º da LOFTJ.
O art.º 2.º da mesma Lei, aditou à LOFTJ, o art.º 89.º-A, cuja al. j) do seu n.º 1, dispunha o seguinte: «Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»
A Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), revogou a LOFTJ (art.º 187.º, al. c)).
Dispunha o art.º 111.º, n.º al. j), LOSJ, na sua primeira versão, que «compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»
Este preceito foi alterado pela Lei n.º 110/2018, de 10.12 (atual Código da Propriedade Industrial).
Por via dessa alteração, a al. j) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, versão original, passou a constituir a al. n) do mesmo preceito, com a seguinte redação: «Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal ou de infração de segredos comerciais em matéria de propriedade industrial.»
Como adiante se verá, este curto percurso histórico será determinante para a compreensão do atual art.º 111.º, n.º 1, al. n), LOSJ, e, consequentemente, para a decisão do recurso.
Estando em causa uma competência especializada, ela reveste caráter excecional em face da regra atributiva de competência geral aos juízos de competência genérica (art.ºs 80.º, n.º 2, e 130.º, n.ºs 1 e 2, LOSJ), pelo que, não sendo admitida a aplicação analógica da norma atributiva de competência (art. 11.º CC), o TPI só é competente para preparar e julgar as ações e recursos previstos no art.º 111.º LOSJ. [...]
Não tendo os tribunais de comércio outra competência em matérias atinentes a aspetos penais e contra-ordenacionais em sede de concorrência (e nenhuma em sede penal e contra-ordenacional relativa à propriedade industrial), ficou assim estabelecida, no art. 89 LOFTJ, a competência dos tribunais de comércio, para, na parte que nos ocupa, preparar e julgar «as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre a propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial» (al. f) do n.º 1), bem como «as acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial» (al. h) do n.º 1), e ainda para julgar «os recursos de decisões que, nos termos previstos no Código da Propriedade Industrial, concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de qualquer dos direitos privativos nele previstos» (al. a) do n.º 2).
Não subsistem dúvidas que tanto as ações de nulidade e de anulação como os recursos previstos no art.º 89.º LOFTJ, tinham por referência os direitos privativos da propriedade industrial: as primeiras, tendo em vista a declaração de nulidade (art.ºs 32.º, 120.º, 137.º e 164.º, do CPI de 1995, então vigente) ou a anulação (art.ºs 5.º, 33.º, 214.º, 226.º, 244.º e 248.º, do mesmo código) do registo de direitos privativos; os segundos, atacavam as decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial no sentido de efetuar ou recusar o registo, bem como de declarar a caducidade de registo efetuado (art.ºs 36.º, 121.º, 138.º, 216.º, 227.º, 245.º, 248.º e 256.º do mesmo código) ou de anotar a renúncia a registo (cf. art.º 198 do mesmo código).
E quanto às ações declarativas (de simples apreciação, de condenação ou constitutivas) previstas na al. f) do n.º 1 do mesmo artigo?
O que deveria entender-se por «causa de pedir que verse sobre a propriedade industrial»?
E por «modalidades previstas no código da propriedade industrial»?
Versaria sobre propriedade industrial uma causa de pedir que integrasse o conceito de concorrência desleal? [...]
Como se viu, a Lei n.º 46/2011, de 24.06, criou o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, tendo:
- o seu art.º 1.º, revogado a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º da LOFTJ;- o seu art.º 2.º, aditado à LOFTJ, o art.º 89.º-A.
É certo que com esta alteração legislativa passou a constar expressamente do texto da lei de organização judiciária, ou seja, da citada al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, que a competência do TPI abrange as ações, incluindo, portanto, as declarativas de condenação, cuja causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal.
Mas que atos de atos de concorrência desleal?
O próprio preceito respondia à questão: os atos de concorrência desleal «em matéria de propriedade industrial.»
Ora:
- dispor a al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, «em matéria de propriedade industrial»,ou,- dispor a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º, LOFTJ, versão originária, «em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial»,
vai dar exatamente ao mesmo.
Ou seja, a expressão «em matéria de propriedade industrial» tem exatamente o mesmo significado que «em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial».
Quer isto dizer que a expressão «em matéria de propriedade industrial»:
- aponta no sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, ou, como vimos ser explicado por Lebre de Freitas, aos modos distintos de ser do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logotipo, etc. que constituem bens incorpóreos distintos, sobre eles se constituindo diferentes direitos (quanto ao objeto e também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial;- tem o mesmo significado de «modalidade» ou «categoria» dos direitos privativos da propriedade industrial previstos de regulados no CPI.
Tendo a expressão «em matéria de propriedade industrial» o mesmo significado que «modalidades da propriedade industrial», é inequívoco que ela se reporta também, apenas e só, aos direitos privativos da propriedade industrial, como tal qualificados no CPI.
Por conseguinte, o que a al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, veio dizer foi isto:
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de direitos privativos da propriedade industrial consagrados no Código da Propriedade Intelectual.»
Como explica Lebre de Freitas, nos termos que se deixaram expostos, e aqui se recorda, compreende-se porquê: «os factos constitutivos de concorrência desleal entre empresas, ou entre uma empresa e os seus administradores ou funcionários, ou ainda entre uma empresa e um terceiro sobre o qual impenda um dever de sigilo ou confidencialidade, geram responsabilidade em virtude de normas gerais de direito civil, como as que regem a responsabilidade extra-obrigacional e as que impõem boa fé e lealdade na negociação dos contratos, que normalmente os tribunais de competência genérica aplicam», e tanto assim que:
- nem o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03;- nem o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018, de 10.12,diretamente configuram as respetivas causas de pedir enquanto tais, mas, apenas:
- o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03, no seu art.º 317.º; e,- o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018, de 10.12, no seu art.º 311.º,os factos, no dizer de Lebre de Freitas, integradores de ilícitos penais.
Artigo 317.º do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03 | Artigo 311.º do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018 |
Concorrência desleal 1 - Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente: a) Os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue; b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma actividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes; c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios; d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas actividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela; e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adoptado; f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento. 2 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 338.º-I. | Concorrência desleal 1 - Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente: a) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue; b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes; c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios; d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela; e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado; f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento. 2 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 345.º |
Como se vê, é exatamente igual a redação de ambos os preceitos, salva, como é óbvio, a referência atualizada à norma para que remete o n.º 2 de cada um deles.
À luz da norma contida na al. f) do n.º 1 do art.º 89.º, LOFTJ, versão originária, nos termos que resultam dos ensinamentos de Lebre de Freitas, competente para preparar e julgar a presente ação, seria o tribunal onde a mesma foi instaurada.
Esse tribunal não deixaria de ser o competente:
- à luz da norma contida na al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06;- e à luz da norma contida na al. j) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, que reproduz na integra a al. j) do n.º 1 do art.º 89-ºA, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06.Veja-se:
Artigo 89.º-A, n.º 1, al. j) LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06. | Artigo 111.º, n.º 1, al. n), LOSJ, versão original |
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.» | «Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.» |
E o mesmo não pode deixar de suceder à luz da atual al. n) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, na redação introduzida pela Lei n.º 110/2018, de 10.12, que, em relação à anterior versão, se limitou a acrescentar «(...) ou de infração de segredos comerciais (...)».
Assim, tendo presente todo o excurso que antecede, o que a atual al. n) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, diz é isto:
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos:
- de concorrência desleal; ou,- de infração de segredos comerciais,em ambos os casos, em matéria de propriedade industrial.»
Por isso, competente para a preparação e julgamento da presente ação é o tribunal onde a mesma foi instaurada, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de Lisboa (distribuída pelo Juiz-13), e não o Tribunal da Propriedade Intelectual.
A este propósito, decidiu-se no Ac. da R.C. de 24.04.2018, Proc. n.º 4228/17.6T8LRA.C1 (Luís Cravo), in www.dgsi.pt: [...].
Em suma, o caso em apreço, tal como retratado pelos autores na petição inicial, configura uma daquelas situações de concorrência desleal que não envolve, não implica, manifestamente, a ofensa de direitos privativos de propriedade industrial.
Não sendo, tal como defende Oliveira Ascensão, a concorrência desleal, ela própria, em si mesma, propriedade industrial, mas «antes a sanção de formas anómalas de concorrência» [Concorrência Desleal, AAFDUL, 1994, p. 266.], para a preparação e julgamento de ações fundadas em atos de concorrência desleal que não impliquem a violação de direitos privativos da propriedade industrial, como é caso dos direitos que tutelam as invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos, é materialmente incompetente o TPI, tal como o eram, antes da criação deste tribunal de competência territorial alargada, os tribunais de comércio.
Assim sendo, estando em causa alegados comportamentos das rés que, embora integrando atos de concorrência desleal, extravasam os estritos direitos privativos da propriedade industrial, bem andaram os autores, no caso concreto, ao instaurarem a ação no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa (onde foi distribuída pelo Juiz 13), o materialmente competente para a sua preparação e julgamento, e não no Tribunal da Propriedade Intelectual, este sim, materialmente incompetente para o efeito.
Em conclusão: a decisão recorrida não pode subsistir, devendo ser revogada e substituída por outra que, em vez do TIP, declare materialmente competente para preparação e julgamento o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa, onde foi distribuída pelo Juiz 13."
[MTS]