"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/11/2023

Jurisprudência 2023 (52)


Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RL 2/3/2023 (102/22.2T8VLS.L1-2) é o seguinte:

I) A causa de pedir na ação de divisão de coisa comum – que não constitui uma ação real - é integrada pela existência de situação de comunhão, não estando em questão a propriedade sobre a coisa ou direito, mas a relação de comunhão em que os consortes estão envolvidos e o poder – de provocar a sua cessação mediante divisão - resultante dessa relação.

II) O processo especial para divisão de coisa comum comporta duas fases fundamentais: Uma declarativa - que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão invocado, que só se desenvolve quando haja contestação ou, inexistindo esta, quando a revelia do requerido seja inoperante (artigo 926.º, n.º 2, do CPC) - e uma executiva – em que se materializa, fundamentalmente por meio de perícia, o direito já definido na fase declarativa ou afirmado sem contestação pelo autor (se a coisa for divisível, procedendo-se ao seccionamento em substância da coisa, à sua divisão mediante a formação em quinhões, de acordo com as quotas dos comproprietários, e à subsequente adjudicação desses quinhões; ou, se a coisa for indivisível, procedendo-se à sua adjudicação a um dos consortes e ao preenchimento em dinheiro das quotas dos restantes, ou à venda executiva da coisa com a repartição do produto da venda pelos interessados, na proporção das respetivas quotas).

III) Na contestação da ação, o requerido poderá, nomeadamente: impugnar a compropriedade (arrogando-se, por exemplo, proprietário exclusivo da coisa); negar o direito do requerente a uma quota-parte; contrariar o volume de quotas indicado pelo requerente; suscitar a questão da indivisibilidade material da coisa; suscitar questões que tenham a ver com as características físico-materiais da coisa, como sejam confrontações, áreas, etc.

IV) No caso de se suscitar alguma destas questões, o Tribunal terá de as conhecer e decidir na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, ou por meio incidental (cfr. artigo 926.º, n.º 2, do CPC) se a questão revestir simplicidade, ou, ordenando o prosseguimento dos autos, segundo a tramitação prevista para o processo comum, se entender que a questão não pode ser sumariamente decidida (cfr. artigo 926.º, n.º 3, do CPC).

V) Na ação de divisão de coisa comum de prédio, onde não se discute a sua indivisibilidade, nem a situação de comunhão ou as quotas dos contitulares, deve o juiz autorizar a apreciação da reconvenção do requerido – na qual este pretende obter o reconhecimento a seu favor, de crédito emergente de pagamentos de prestações de empréstimo bancário contraído para a aquisição do prédio objeto da ação e de benfeitorias resultantes de obras realizadas no mesmo, sobre a requerente, a fim de obter a compensação do mesmo, na partilha do valor correspondente, através da adjudicação do imóvel - , de harmonia com o disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º. 2, do CPC, por não ocorrer uma tramitação manifestamente incompatível – daí não derivando a prática de atos processuais contraditórios, antinómicos ou inconciliáveis - na apreciação de tal pretensão em conjunto com a da requerente.

VI) Nessa situação, apesar de os pedidos da ação e da reconvenção seguirem formas de processo diferentes, há interesse relevante na apreciação conjunta das pretensões, que se afigura indispensável para a composição justa do litígio, servindo-se, concomitantemente, os princípios da celeridade e de economia processuais – num mesmo processo e evitando a propositura de outra ação para que o reconvinte veja o seu direito reconhecido – , com intervenção do dever de gestão processual e de adequação formal (cfr. artigos 6.º e 547.º do CPC), devendo adaptar-se o processado – cfr. artigo 37.º, n.º 3 do CPC – e ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum, de harmonia com o previsto no artigo 926º nº 3, do CPC.

VII) Tal encontro entre o deve e o haver entre as partes deve cingir-se à aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum e derivados da contitularidade do imóvel cuja divisão se peticiona e não reportar-se a quaisquer outros direitos creditícios que não tenham qualquer interferência ou reflexo na reivindicada divisão da coisa comum.

VIII) Inexistindo norma que dispense tributação (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do RCP), deve ser apurada a responsabilidade tributária decorrente da instância gerada e do facto de se ter desenvolvido atividade jurisdicional relevante para efeitos de custas, dos eventuais encargos assumidos e das custas de parte que poderá ter determinado.

IX) Se no momento em que é proferido acórdão não é possível afirmar que o desfecho da apelação de decisão interlocutória, ainda que revogando o decidido em 1ª instância, se reflete negativamente na esfera das partes, em termos do seu decaimento e não é possível determinar que o proveito do recurso é encontrado relativamente a qualquer delas, impõe-se relegar a decisão sobre a responsabilidade tributária inerente à instância do presente recurso para aquela que decida sobre a responsabilidade tributária da decisão final.


2. Na fundamentação (talvez excessiva...) do acórdão afirma-se o seguinte:

"Conclui o apelante que a decisão recorrida, que considerou inadmissível a reconvenção que apresentou, viola os aludidos normativos, tendo alinhado, em suma, a seguinte linha de argumentação:

- A reconvenção é admissível quando está em causa o pedido de reembolso, por compensação, relativo a valores pagos em amortização de créditos reportadas à aquisição da coisa comum ou à realização de benfeitorias no imóvel, nos termos do artigo 266.º, n.º 2, alíneas, b) e c), do CPC;

- Os pedidos reconvencionais formulados encontram-se relacionados com a coisa comum;

- A reconvenção sempre se subsumiria à hipótese prevista nas als. b) e c), permitindo-se que o recorrente pudesse provar que contribuiu em maior medida para a satisfação de despesas (crédito bancário) para a aquisição e para a realização de benfeitorias na coisa comum;

- O único obstáculo para a convolação do processo especial em processo comum seria o da forma de processo, mas de acordo com o disposto nos artigos 37.º, n.ºs. 2 e 3 e 266.º, n.º 3, do CPC, o juiz pode autorizar a convolação;

- As formas de processo especial e comum, correspondentes aos pedidos da Requerente e do Requerido, não seguem uma "tramitação manifestamente incompatível" (pratica de actos contraditórios/inconciliáveis), pois o art.º 926.º, n.º 3, do CPC, prevê a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum; e

- Os princípios da garantia de acesso aos tribunais (art.º 2.º, n.º 2, do CPC) e do dever de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1 do CPC) imporiam que tivesse sido admitida a reconvenção.

Vejamos: [...]

A presente ação consiste num processo especial de divisão de coisa comum, regulado pelos artigos 925.º a 930.º do CPC. [...]

O processo especial para divisão de coisa comum comporta duas fases fundamentais:

“I – Uma de natureza declarativa que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão invocado. Esta fase só se desenvolve quando haja contestação ou, inexistindo esta, quando a revelia do(s) réu(s) seja inoperante (artigo [926.º], n.º 2, do CPC).

II – Uma de índole executiva em que se materializa, fundamentalmente por meio de perícia, o direito já definido na fase declarativa ou afirmado sem contestação pelo autor.
Nesta fase, procede-se:
a) nos casos de seccionamento em substância da coisa, à sua divisão mediante a formação em quinhões, em princípio em conformidade com as quotas dos comproprietários, e à subsequente adjudicação desses quinhões;
b) nos casos de indivisibilidade material, à adjudicação da coisa a um dos consortes e ao preenchimento em dinheiro das quotas dos restantes, ou à venda executiva da coisa com a repartição do produto da venda pelos interessados, na proporção das respectivas quotas” (assim, Luís Filipe Pires de Sousa; Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra Editora, 2011, pp. 88-89). [...]
 
Naturalmente, questiona-se se, no âmbito deste processo especial, a dedução de reconvenção pelo requerido, respeitante a pedido a que corresponda processo comum, é admissível, ou se, tal não sucede.

De facto, constituindo a ação de divisão de coisa comum um processo especial e cabendo à ação reconvencional em causa o processo comum, coloca-se a questão da admissibilidade desta, à luz dos artigos 266.º e 37.º do CPC, designadamente, quando inexista divergência entre as partes relativamente à existência de contitularidade do direito, quanto à natureza indivisível da coisa e não seja invocado qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a determinar o imediato prosseguimento dos autos para a fase executiva do processo.

A jurisprudência dos tribunais superiores não tem sido uniforme nesta matéria.

Isso mesmo foi, com clareza, mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, rel. JOSÉ RAINHO), considerações que se transcrevem:

“Alguma jurisprudência tem enveredado por uma visão restritiva da admissibilidade da reconvenção por pedido a que corresponda processo comum na ação de divisão de coisa comum. Assim, no acórdão da Relação de Coimbra de 21 de outubro de 2003 (processo n.º 1460/03, disponível em www.dgsi.pt) defende-se que, em princípio, é possível deduzir reconvenção no processo de divisão de coisa comum sempre que haja contestação; se, no entanto, as questões deduzidas na contestação, no confronto com o pedido inicial, forem decididas sumariamente sem que haja de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção só é admissível se também dessa forma poder ser decidida. Igual entendimento é adotado no acórdão da Relação de Lisboa de 4 de março de 2010 (processo n.º 1392/08.9TCSNT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt)”.

Nesse sentido, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-10-2003 (Pº 1460/03, rel. COELHO DE MATOS) que: “Em princípio é possível deduzir reconvenção no processo de divisão de coisa comum sempre que haja contestação. Se, no entanto, as questões deduzidas na contestação, no confronto com o pedido inicial, forem decididas sumariamente sem que haja de prosseguir a causa nos termos do processo comum, a reconvenção só é admissível se também dessa forma poder ser decidida”. [...]

Em polo diverso situa-se outra jurisprudência de pendor “menos formalista” - como se dá conta no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, rel. JOSÉ RAINHO) cujas considerações, a esse propósito, se transcrevem: “Assim, nos acórdãos da Relação de Guimarães de 25 de setembro de 2014 (processo n.º 260/12.4TBMNC-A.G1), da Relação de Guimarães de 25 de julho de 2017 (processo n.º 1242/09.9TJVNF-B.G1) e da Relação de Lisboa de 24 de setembro de 2015 (processo n.º 2510/14.3T8OER-A.L1.2 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), entende-se que na ação de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção em que o demandado formule pedido de indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser admitida, ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos do processo comum. No acórdão da Relação de Évora de 22 de março de 2018 (processo n.º 151/17.2T8ODM.E1, disponível em www.dgsi.pt) também se aceita que é admissível a dedução de reconvenção na ação de divisão de coisa comum, esclarecendo apenas que (como é óbvio) tal apenas poderá suceder nos casos taxativamente fixados nas als. a) a d) do n.º 2 do art.º 266.º do Código de Processo Civil. Ainda, no acórdão da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019 (processo n.º 764/18.5T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt) entende-se (sumário) que: “I- Sendo as diversas formas de processo - especial e comum -, o único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio. II - Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro, o poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide. III – Esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o único fundamento da demanda.” [...]

Acolhendo esta última orientação, concluiu-se, no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, rel. JOSÉ RAINHO) que: “Tramitação “manifestamente incompatível”, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes. Na ação de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção tendente a obter indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser autorizada, ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil (…)”.

Neste âmbito, tem-se considerado ser possível e desejável a adaptação do processo pelo juiz, ao abrigo dos princípios da gestão processual e da adequação formal, nos termos previstos nos artigos 6.º e 547.º do CPC: [...].

Nesta mesma orientação e em comentário ao Acórdão da Relação de Lisboa de 25-06-2020 (Pº 329/18.1T8FNC-A.L1-8, rel. TERESA SANDIÃES), refere Teixeira de Sousa (https://blogippc.blogspot.com/2021/01/jurisprudencia-2020-122.html) que:

“a) O problema decidido pela RL não tem uma solução linear, mas, salvo o devido respeito, propende-se para uma orientação diferente.

Ao contrário do entendimento da RL, não parece impossível aplicar, numa acção de divisão de coisa comum, o disposto, quanto ao pedido reconvencional relativo a benfeitorias, no art.º 266.º, n.º 2, al. b), CPC. No fundo, o que o autor dessa acção pretende é a entrega da parcela que tem na coisa indivisa, pelo que não é impossível entender que, se a parte demandada tiver direito a benfeitorias por obras que realizou na coisa indivisa, possa fazer valer esse direito na acção pendente. Portanto, o requisito da conexão objectiva entre os pedidos encontra-se preenchido.

Sendo assim, o que importa analisar é se permanecem outros obstáculos à admissibilidade do pedido reconvencional relativo a benfeitorias na acção de divisão de coisa comum.

A alternativa à inadmissibilidade da dedução do pedido reconvencional relativo a benfeitorias é, naturalmente, a necessidade de fazer valer esse direito numa acção autónoma. Por isso, o que, em termos de exercício dos poderes de gestão processual, tem de ser ponderado é se é justificado "complicar" a acção de divisão de coisa comum para permitir a resolução definitiva da situação das partes e evitar uma acção autónoma. É claro que a acção de divisão se "complica"; mas o que tem de ser ponderado é se essa "complicação" evita outras "complicações".

Atendendo especialmente ao disposto no art.º 929.º, n.º 2, CPC (aplicável no caso sub iudice pela circunstância de a coisa ser indivisível), era desejável que, no acerto de contas entre as partes, pudesse tomar-se em consideração o eventual direito a benfeitorias da parte demandada.

Pelo exposto, nada impediria que, através da aplicação dos poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1, e 547.º CPC), o pedido reconvencional relativo às benfeitorias fosse considerado admissível. Note-se que o exercício desses poderes pode ir para além do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º CPC, para o qual remete o art.º 266.º, n.º 3, CPC.

b) Num outro plano, pode ainda perguntar-se se, na hipótese de o direito a benfeitorias pertencer à parte demandante, seria impensável admitir que esse direito pudesse ser feito valer na acção de divisão de coisa comum. Se não se descortinam razões para considerar inadmissível essa cumulação de pedidos pela parte demandante, então, por imposição do princípio da igualdade das partes, também a dedução de um idêntico pedido pela parte demandada não pode ser inadmissível”.

Finalmente, conforme se referiu no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-06-2021, Pº 13686/20.0T8LSB.L1-7, rel. CRISTINA COELHO): “Entendem outros, que não existe qualquer tramitação manifestamente incompatível, porquanto, por um lado, a tramitação comum está prevista neste processo especial, e, por outro, trata-se tão só da introdução da tramitação do processo comum na fase declarativa do processo especial, retomando-se, depois, na fase executiva, a tramitação do processo especial, estando em causa princípios de economia processual, relevando o interesse de ver discutidas e decididas todas as questões que, para além da divisão, envolvem os prédios dividendos - ver os Acs. do STJ de 26.1.2021, P. 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1 (Maria João Vaz Tomé), da RL de 15.3.2018, P. 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8 (António Valente), da RE de 17.1.2019, P. 764/18.5T8STB.E1 (Albertina Pedroso), e da RE de 23.4.2020, P. 1449/18.8T8PTM-A.E1 (Cristina Dá Mesquita), todos em www.dgsi.pt”.

Especificamente, ao nível da apreciação dos requisitos materiais da reconvenção no âmbito da ação de divisão de coisa comum, alguma jurisprudência tem considerado que não há reciprocidade entre o direito de exigir a divisão e o exercício de direito de crédito ou a benfeitorias pelo outro contitular. Assim, decidiram o:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-03-2013 (Pº 86/11.2TBVZL-A.C1, rel. SÍLVIA PIRES) que: “Pretendendo os Autores tão só pôr termo à indivisão do prédio de que são co-proprietários com a Ré, situação que não tem fundamento na existência de qualquer direito de crédito, não é admissível a dedução de pedido reconvencional baseado na compensação”; [...]

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15-09-2022 (Pº 249/21.2T8VVC.E1, rel. VITOR SEQUINHO DOS SANTOS): “Não se verifica o factor de conexão estabelecido no artigo 266.º, n.º 2, al. c), do CPC, se, em acção com processo especial de divisão de coisa comum, a ré deduz um pedido reconvencional de reconhecimento de um direito de crédito, contra o autor, correspondente a metade das quantias que alega ter pago para amortização do empréstimo contraído com vista à aquisição do prédio a dividir, nos seguintes termos: 1) Na hipótese de o prédio lhe ser adjudicado, o direito de crédito que invoca deve ser compensado com o direito de crédito que o autor vier a adquirir a título de tornas; 2) Na hipótese de o prédio ser adjudicado ao autor, aquele direito de crédito acrescerá às tornas que a ré tiver direito a receber; 3) Na hipótese de o prédio ser vendido a terceiro, aquele direito de crédito acrescerá ao valor que a ré tiver direito a receber”.

Noutra aproximação, tem-se considerado ser de admitir a reconvenção que o reconvinte formule e onde peticione o reconhecimento de um crédito que invoca sobre o requerente, em razão de benfeitorias ou de despesas efetuadas (v.g. valores despendidos com empréstimo contraído para aquisição ou obras no imóvel, IMI, seguros, quotas do condomínio) com o prédio cujo processo é objeto da ação de divisão, ou para exercício de compensação de créditos com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente (entendendo-se que, para assegurar a justa composição do litígio, a ação deverá prosseguir os termos do processo comum, para decisão dessas questões, só após se entrando na fase executiva do processo). Disso são exemplo os seguintes arestos:

- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2018 (Pº 2886/15.5T8CSC.L1.L1-8, rel. ANTÓNIO VALENTE): “Em acção de divisão de coisa comum, impugna a requerida na contestação o valor atribuído ao prédio pelo requerente, suscitando em sede de reconvenção os créditos que tem sobre o requerente por ter efectuadas despesas quer no pagamento do empréstimo bancário para aquisição do prédio, quer de impostos, que em seu entender incumbiam em partes iguais a ambos. Suscitando assim a compensação do seu crédito com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente. Perante isso, e para assegurar a justa composição do litígio, a acção deverá seguir os termos do processo comum, para que sejam decididas tais questões, só então se entrando na fase executiva do processo com a conferência de interessados”; [...]

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2022 (Pº 1342/22.0T8CSC.L1-2, rel. JORGE LEAL): “É admissível que os comproprietários discutam na ação de divisão de coisa comum os créditos que para eles emerjam do pagamento além da respetiva quota parte de despesas como a liquidação de empréstimos contraídos para aquisição da coisa comum, em especial se um dos comproprietários pretender compensar o seu alegado crédito com o crédito de tornas que advenha ao outro ou outros comproprietários em virtude da adjudicação do bem comum ao credor ativo”. [...]

Considerando o objeto do processo, os interesses em presença e não obstante a diferença de formas de processo a que correspondem os pedidos formulados por requerente e requerido, afigura-se-nos que, em geral, a melhor interpretação normativa é a que considera ser de admitir a reconvenção, nos moldes que se vêm referindo, para apreciação de crédito reclamado pelo reconvinte, com fundamento em despesas ou benfeitorias tidas com a coisa objeto do processo de divisão de coisa comum (como sejam os pagamentos efetuados relativamente a empréstimo bancário para a aquisição da mesma), com vista à sua adjudicação.

De facto, deverá ter-se em consideração que, apesar de os pedidos da ação e da reconvenção seguirem formas de processo diferente, não se verifica que a mesma seja manifestamente incompatível, havendo, para além disso, interesse relevante para a apreciação conjunta das pretensões, a qual se afigura indispensável para a composição justa do litígio, servindo-se, concomitantemente, os princípios da celeridade e de economia processuais – num mesmo processo – , com intervenção do dever de gestão processual e de adequação formal (cfr. artigos 6.º e 547.º do CPC), pelo que, deverá ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37º nºs 2 e 3 e 926º nº3 do CPC.

Neste ponto, acolhe-se o entendimento expresso por este Tribunal da Relação, no Acórdão de 24-03-2022 (Pº 823/20.4T8CSC-A.L1-2, rel. ARLINDO CRUA, em coletivo integrado pelo ora relator), onde, após profusa análise, se concluiu o seguinte:

“I - Na acção de divisão de coisa comum surge como incontroverso que, determinando-se o seu prosseguimento sob os termos do processo comum, na efectivação da faculdade prevista no nº. 3, do art.º 926º, do Cód. de Processo Civil, em virtude das questões suscitadas pelo pedido de divisão não poderem ser sumariamente decididas, nada impede a dedução da reconvenção, pois, nesta situação, tudo se passa, até certo ponto, como se existisse identidade de forma do processo;

II - não é de sufragar a posição que admite a dedução de reconvenção (apresentada em sede de contestação) apenas na situação em que as questões deduzidas possam ser decididas sumariamente, nos quadros do nº. 2, do mesmo art.º 926º, sem necessidade de prosseguimento da causa sob a forma do processo comum;

III - sendo antes de adoptar o entendimento de admissibilidade da dedução de reconvenção, de forma a assegurar a justa composição do litígio, nas situações em que tenha sido suscitada a compensação de reclamado crédito, por despesas suportadas para além da quota respectiva sobre a coisa dividenda, com o crédito de tornas que venha a ser atribuído ao requerente da divisão; [...]

XI - desta forma, estando-se perante pedido de divisão de prédio ou fracção urbana, adquirida em comum e utilizada como casa de morada de família, tendo entretanto cessado a vivência em comum entre as partes, não deve ser admitido o pedido reconvencional relativamente a quaisquer putativos direitos de crédito emergentes da contribuição do reconvinte para as demais despesas do agregado familiar de ambos, ou na assunção em comunhão de quaisquer outros encargos, que nada tenham a ver com a coisa comum ou com a contitularidade do imóvel cuja divisão se reivindica, o que é igualmente extensível à reclamação de um qualquer direito de crédito decorrente do uso exclusivo que o reconvindo faça do imóvel objecto de divisão.”. [...]

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, afastada está liminarmente a consideração do segmento do pedido reconvencional em questão como passível de enquadramento nas alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC, uma vez que, não ocorre nenhuma das circunstâncias previstas nessas alíneas.

Neste ponto, olhando para a contestação formulada, nela foi alegado, a respeito da pretensão reconvencional, o seguinte:

“(…) II - DA RECONVENÇÃO

26. Conforme alega a Autora no artigo 2.º da P.I., e aceite pelo Réu, o imóvel em causa nos presentes autos foi adquirido com recurso a crédito bancário para aquisição de habitação, cuja quantia em dívida na presente data é de €17.437,65 (dezassete mil quatrocentos e trinta e sete euros e sessenta e cinco cêntimos), cfr. DOC.1, junto. [...]

29. A par do activo a dividir, Réu e Autora têm também passivo que está directamente relacionado com o bem imóvel comum em causa e que dele não pode ser dissociado. [...]

34. Todo o saldo e depósitos de dinheiro existentes desde a celebração do crédito bancário para aquisição do imóvel na referida conta bancária era e é resultante do trabalho e rendimentos do Réu. [...]

38. A Autora deveria ter procedido ao pagamento de 50% das 81 prestações mensais (capital liquidado, comissões bancárias, juros de mora e impostos) referentes ao referido contrato de mútuo – no entanto nunca o fez.

39. Deve assim a Autora ao Réu a quantia de €4.258,60 (quatro mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos), correspondente a 50% do valor de €8.517,17, pago exclusivamente pelo Réu além da sua quota parte no crédito habitação para aquisição do imóvel ora em causa cuja divisão se peticiona, desde 24/09/2015 até à presente data. [...]

54. Tem assim o Réu um crédito sobre a Autora no valor de €425,73 (quatrocentos e vinte e cinco euros e setenta e três cêntimos)., o qual deverá ser tido em conta nas tornas que o Réu vier a pagar à Autora aquando a adjudicação do imóvel – o que desde já se requer.
 
55. No total, o Réu tem um crédito sobre a Autora referente a benfeitorias realizadas no imóvel comum no valor de €3.386,66 (três mil e oitenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos).

E, em função desta alegação foi deduzido pelo requerido o pedido reconvencional a que já se aludiu, no qual, o requerido solicitou que fossem abatidos, no valor de eventuais tornas que tivesse de satisfazer, os valores que indicou, respeitantes a benfeitorias e ao contrato de crédito habitação para a aquisição do imóvel dos autos.

Conforme resulta dos trechos transcritos, afigura-se que os valores alegadamente despendidos pelo requerido se encontram relacionados com a aquisição do imóvel (cfr. prestações respeitantes ao mútuo bancário contraído para a aquisição do imóvel) e com benfeitorias respeitantes ao mesmo (os gastos com obras realizadas no imóvel), pelo que, os mesmos podem ser objeto de pretensão reconvencional, no âmbito do presente processo especial de divisão de coisa comum, pretensão essa que deveria ter sido admitida em juízo e que encontra respaldo nos artigos 266.º, n.º 2, als. b) e c) e 37.º, n.ºs. 2 e 3, do CPC.

Verifica-se, pois, que inexistia motivo para a rejeição da reconvenção, ao invés do que o decidiu o Tribunal recorrido. [...]

Relativamente às consequências que determina para o processo de divisão de coisa comum, a decisão revogatória, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-11-2022 (Pº 5744/20.4T8MTS.P1, rel. RUI MOREIRA) teceram-se considerações que se mostram, igualmente, de acolher nos presentes autos:

“(…) para acomodar ambas as pretensões [de requerente e requerido], e considerando o que até agora já se processou (decisão de indivisibilidade e fixação das quotas) o processo poderá tramitar de seguida sob os termos do processo comum numa fase anterior à da conferência de interessados, para se definir o direito do reconvinte, sendo caso disso; sucessivamente, o processo haverá de tramitar com os termos próprios da acção de divisão de coisa comum, nos termos do disposto no art.º 929º do CPC, sem prejuízo de, em momento próprio, em sede de pagamento de tornas ou divisão dos proventos da venda, se levar em conta o que houver de ser decidido quanto ao conteúdo dos direitos de cada um dos consortes.

Ou, segundo o que for entendido pela Sra. Juiz, no exercício dos seus poderes de gestão processual, a opção poderá ser a da realização da conferência de interessados de imediato e, na falta de acordo, fazer tramitar os ulteriores termos da causa como processo comum, para definição dos direitos de cada um dos consortes, mais tarde se procedendo à adjudicação do imóvel à determinação de tornas ou à venda e distribuição do respectivo produto segundo o que for definido quanto àqueles direitos.

De resto, isso mesmo se decidiu no Ac. desta secção do TRP, no acórdão de 27/4/2021 (Proc. nº 5962/20.9T8VNG.P1, em dgsi.pt) (…): “(…) entendemos poder em ordem a salvaguardar o processado, em obediência a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas, dever fazer improceder a exceção dilatória alegada pelo réu.

Donde, os autos devem prosseguir segundo os termos do processo declarativo comum para apuramento dos contributos de cada um dos comproprietários, salvaguardando-se, em sede de gestão processual, a admissibilidade do pedido reconvencional deduzido. Deste modo, pode promover-se uma audiência prévia, para os efeitos do art.º 929º, nº 2 do CPC, e, na falta de acordo sobre a adjudicação, proceder à instrução e julgamento em sede de processo comum das questões controvertidas relativas às quotas detidas por cada uma das partes litigantes, analisando as causas de pedir atinentes a estes pedidos de cada um dos comproprietários, e após decisão final sobre esta matéria, fixados os quinhões, promover-se eventualmente a respetiva venda.

Miguel Teixeira de Sousa abordou igualmente esta polémica no seu blog defendendo uma solução que vai ao encontro daquela por nós sufragada (leia-se https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html ).

Por esta via, agora devidamente detalhada, afigura-se-nos possível, ainda que com o ónus da acrescida complexidade processual, compaginar numa só ação a apreciação dos pedidos vertidos no petitório e na contestação, sem que ocorra a prática de atos processuais inconciliáveis, “manifestamente incompatíveis”, logrando-se, então, cumprir princípios processuais fundamentais do nosso Código (vide epígrafe do Título I) no que concerne à garantia de acesso aos tribunais e ao dever, que impende sobre os tribunais, de gestão processual (artigos 2º e 6º do CPC)

Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.”

Vê-se, assim, que não há uma tramitação idêntica, para a discussão e decisão do objecto de cada um dos pedidos – da acção, sob forma de processo especial, e da reconvenção, sob a forma de processo comum – mas que que são complementares e podem ser agregadas, por inexistência de incompatibilidade entre elas. Não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.

Por outro lado, é claro o interesse nessa solução: previne a necessidade de que as partes desenvolvam novo litígio, noutro processo, para o exercício de direitos que aqui podem ser exercidos e decididos de imediato.

Conclui-se, pois, inexistir qualquer obstáculo, existindo pelo contrário conveniência e utilidade, na admissão do pedido reconvencional deduzido pelo réu”.

[MTS]