"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2023

Jurisprudência 2023 (46)


Prova; princípio inquisitório;
princípio do contraditório*


1. O sumário de RC 7/2/2023 (1878/10.5TBVIS-A.C1) é o seguinte:

I. O processo civil é regido por ciclos dentro dos quais se exercem determinados direitos processuais sob pena de preclusão, como, por exemplo, nos incidentes da instância (artigo 293.º do CPC), a indicação da prova no requerimento inicial ou na respetiva oposição.

II. O juiz, ao abrigo do disposto no artigo 411.º do CPC – princípio do inquisitório –, pode e deve realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.

III – Neste caso, a parte interessada, se pretender contradizer esta nova prova, pode sugerir ao tribunal, ao abrigo do disposto nos artigos 4.º (igualdade substancial entre as partes) e 411.º, ambos do CPC, a produção de outra prova e o tribunal deve ordená-la, mas apenas se esta nova prova respeitar ao mesmo facto e mostrar ter implicações em relação à prova oficiosamente ordenada, no sentido de a contrariar ou tornar duvidosa, e só se ter mostrado necessária devido à produção da prova oficiosamente ordenada.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"(I) Vejamos então se o despacho proferido na audiência do dia 14 de junho de 2022, o qual indeferiu os meios de prova indicados pelos executados, padece de nulidade por violação do disposto nos artigos 4.º e 411.º do C.P.C.

(a) O artigo 4.º (Igualdades das partes) do Código de Processo Civil diz o seguinte:

«O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.»

E o artigo 411.º (Princípio do inquisitório), do mesmo código, tem esta redação:

«Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.»

Sobre esta problemática, no domínio da legislação processual anterior, mas idêntica à atual, Lopes do Rego referiu que estamos aqui perante um «…poder-dever do juiz realizar oficiosamente quaisquer diligências probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos…» e que «…a qualificação dos poderes instrutórios autónomos do julgador como revestindo a natureza de um pode-dever, tendente à plena realização do fim do processo – a justa composição do litígio – implicará que constitui nulidade a ostensiva e injustificada omissão de diligência essencial e patentemente necessária ao apuramento da verdade dos factos: tratando-se, porém, de nulidade secundária, é evidente que sempre cumprirá à parte interessada reclamá-la tempestivamente, reiterando ao juiz a essencialidade das diligências   probatórias pretensamente omitidas, nos termos dos artigos (…), sob pena de a mesma se dever considerar naturalmente precludida» - Comentário ao Código de Processo Civil. Coimbra, Almedina, 1999, págs. 207/208.

(b) Vejamos o contexto processual descrito nas alegações, no âmbito do qual foi proferido o despacho sob recurso.

Os exequentes, através do requerimento com a referência 42247094, em momento anterior ao dia da audiência de julgamento, solicitaram a inquirição de quatro testemunhas, a inspeção ao local e a junção de três documentos, sendo um deles uma fatura.

O tribunal indeferiu este requerimento, invocando o disposto no artigo 293.º, n.º 1, a contrario, do CPC.

Na sessão da audiência de julgamento de 26 de maio de 2022 e no decurso do depoimento da testemunha EE, última testemunha das indicadas para serem inquiridas, a testemunha fez menção aos valores de aquisição dos bens que equiparam o estabelecimento comercial da executada, bens que foram posteriormente objeto de penhora nos autos, e a uma fatura relativa à aquisição de parte desses bens.

O tribunal, com oposição dos executados, considerou a junção dessa fatura imprescindível para a descoberta da verdade material, pelo que, invocando os deveres/poderes de averiguação oficiosa, determinou a junção dessa fatura aos autos.

Nesta mesma audiência, por se ter afigurado ao tribunal que a sua inquirição se mostrava também «…essencial para a descoberta da verdade…», foi determinada a inquirição, como testemunha, do agente de execução (DD), autor do auto de penhora.

Na audiência do dia 14 de junho de 2022, depois da inquirição de DD, os executados requereram a junção de documentos e arrolaram mais duas testemunhas, nos termos referidos supra nos factos provados.

Este requerimento probatório foi indeferido, nos termos já atrás referidos, e daí o presente recurso.

(c) Estabelecido o contexto processual, vejamos então se ocorreu violação das normas constantes dos artigos 4.º e 411.º do Código de Processo Civil, normas acima já reproduzidas, das quais resultam duas regras:

Uma – Igualdade substancial entre as partes.

Nas palavras de Manuel de Andrade, o princípio da igualdade das partes «Consiste em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida» - Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra Editora/1979, pág. 380.

Outra – O juiz deve realizar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio.

Destas duas regras logo resulta que, não sendo formalmente conflituantes, pois em abstrato é possível manter a igualdade entre as partes quando o juiz leva a cabo as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, podem entrar em conflito quando são exercitadas em situações concretas, pois, não podendo ambas as partes sair totalmente vencedoras, qualquer diligência que o tribunal faça irá beneficiar ou tenderá a beneficiar uma parte e prejudicar a outra.

Ou seja, quando o tribunal decide intervir, dessa intervenção poderá resultar um benefício para uma das partes e, logicamente, um prejuízo para a outra, podendo-se dizer, face ao resultado dessa atuação, que não respeitou a igualdade entre as partes e não foi imparcial.

Mas não é assim, a igualdade e a imparcialidade não exigem para que se possa dizer que são respeitadas, que não haja prejuízo para alguma das partes, pois havendo litígio e existindo uma decisão sobre ele, uma das partes, inevitavelmente, há de ficar vencida, no todo ou em parte, ou até mesmo ambas as partes.

A igualdade e a imparcialidade dizem aqui apenas respeito ao modo como deve proceder o tribunal no caminho que leva à decisão.

Se o tribunal nada fizesse quando o caso exigisse intervenção, desrespeitaria o dever de apurar a verdade e chegar à justa composição do litígio, composição essa que, para ser justa, exige que assente sobre a verdade, sobre uma correspondência entre os factos afirmados como provados e a realidade histórica, o que exige, por vezes, investigação.

Por conseguinte, exigindo a lei a aplicação conjunta destas regras está a exigir que elas se conjuguem entre si no caso concreto, observando a igualdade para chegar à verdade, com vista a alcançar a justiça.

Mas estas duas regras não são as únicas a observar.

Há outras, como as que estabelecem preclusões, relevando neste caso as normas que estabelecem preclusões quanto à indicação dos meios de prova a produzir.

No caso dos autos, a norma a observar é a do artigo 293.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que nos diz que «No requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova.»

Ou seja, depois de decorrido este momento processual a parte não pode requerer a produção de meios de prova.

Isto é assim porque o processo para avançar e ser célere tem de se reger por etapas estanques, por vezes preclusivas, pois como referiu Manuel de Andrade, «Há ciclos processuais rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques. Por isso os actos (maxime as alegações de factos ou meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos [...].

O princípio traduz-se portanto, essencialmente, na preclusão das deduções das partes» - Ob. cit., pág. 382.

Ou seja, o processo civil é regido por ciclos dentro dos quais se exercem determinados direitos processuais sob pena de preclusão, como, por exemplo, nos incidentes da instância (artigo 293.º do CPC), a indicação da prova no requerimento inicial ou na respetiva oposição.

Por conseguinte, em vez de duas passamos, agora a ter estas três regras:

– Igualdade substancial entre as partes;

– Dever de o juiz realizar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio.

– Vinculação dos requerimentos sobre a produção de provas a determinadas fases do processo, ficando precludida, em regra, a possibilidade da sua apresentação em momento posterior.

Mas esta última regra aplica-se às partes, não ao tribunal.

Porém, resulta destes princípios que ordenando o juiz oficiosamente uma diligência destinada a apurar a verdade (entenda-se por «verdade» o que acima se disse, isto é, a correspondência entre a factualidade histórica efetivamente ocorrida e a descrição que dela é feita nos factos provados e não provados), tenha de observar a igualdade e imparcialidade que o caso concreto exigir.

Como referem os autores Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 411.º do CPC, «… pelo menos nos casos em que não haja razões para afirmar a existência de comportamentos processuais abusivos, cumpre ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição. Almedina, 2022, pág. 524.

O caso concreto dos autos poderá fazer essa exigência ou não, consoante resulte claro ou provável que o meio de prova a produzir beneficiará uma parte e prejudicará outra.

Neste caso, para observar a igualdade, a parte potencialmente afetada pela diligência oficiosa, se dispuser de algum meio de prova com capacidade para contrariar ou colocar em dúvida a prova que resultará da produção desse meio de prova, oficiosamente ordenado pelo juiz, deve poder sugerir ao juiz, fundamentando adequadamente essa sugestão, a produção desse outro meio de prova.

E diz-se «sugerir» porque a parte já não tem, como se disse, por ter precludido, um direito a «requerer» a produção dessa prova.

Mas o tribunal se não acolher uma sugestão bem fundamentada, violará certamente o disposto no referido artigo 4.º, pois se assim proceder o tribunal não está a «… assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes…»

Porém, a igualdade substancial entre as partes também exige que a parte não possa aproveitar este mecanismo para indicar prova que devia ou podia ter apresentado na fase processual a isso destinada.

Podendo, inclusive, esse aproveitamento, se permitido, levar a exceder o número de testemunhas que a parte podia indicar, o que não pode ocorrer.

Por isso, a prova sugerida tem de estar de algum modo vinculada à prova ordenada oficiosamente.

Vinculada no sentido de só se ter tornado necessária devido, precisamente, à produção da prova oficiosamente ordenada, tendo por finalidade contrariar ou tornar duvidosa esta última.

Daqui resulta que a análise do caso concreto, como o presente, implique verificar, primeiro, se a Recorrente sugeriu a produção de prova ou requereu simplesmente a produção de provas; segundo, se mostrou, se fundamentou, a pertinência das novas provas em relação à prova oficiosamente ordenada, mostrando existir alguma probabilidade de as provas indicadas poderem contrariar ou tornar duvidosa a prova oficiosamente ordenada; terceiro, se a prova sugerida só se mostrou necessária devido à produção da prova oficiosamente ordenada.

(d) Passando ao caso concreto.

1 – Vejamos se a Recorrente sugeriu a produção de prova ou requereu simplesmente a produção de provas.

A resposta a esta questão consiste em dizer que a Recorrente não sugeriu, mas sim que requereu.

Dado o princípio da preclusão acima já mencionado, os Recorrentes já não tinham o direito de requerer e, se nada mais se argumentasse, cumpriria encerrar a discussão recursiva julgando o recurso desde já improcedente, com fundamento em que os Recorrentes requereram a produção de provas e esse direito já estava precludido, isto é, não tinham nesse momento esse direito.

No entanto, como o «requerer» contém em si o «sugerir» e o requerimento formal sempre pode ser «convolado para…». Considera-se, por isso, que não é pelo facto da parte ter requerido que o tribunal não convola o requerimento para simples sugestão e como tal o considerará.

É o caso.

Apesar das recorrentes já não poderem requerer, interpreta-se o requerimento como sugestão.

 Se os Recorrentes mostraram, se fundamentaram, a pertinência das novas provas em relação à prova oficiosamente ordenada pelo tribunal, mostrando existir alguma probabilidade das provas indicadas poderem contrariar ou tornar duvidosa a prova oficiosamente ordenada.

A resposta é negativa.

A prova oficiosamente ordenada pelo tribunal consistiu na junção de uma fatura a respeito da qual a testemunha que estava a ser inquirida afirmou respeitar à aquisição de alguns bens cujo valor estava a ser objeto de indagação e julgamento por parte do tribunal.

A prova que a parte poderia sugeria teria de consistir em algo que pudesse contrariar ou tornar duvidosa a prova oficiosamente ordenada.

A parte limitou-se a afirmar que a prova a produzir era importante para a descoberta da verdade, omitindo as premissas suscetíveis de mostrar a verdade ou a falsidade dessa afirmação.

Esta resposta negativa implica que não se possa concluir pela violação do princípio da igualdade, pois o que ocorre é que a própria parte não criou condições formais para que a sua pretensão pudesse ter sido atendida.

3 – Se a prova sugerida só se mostrou necessária devido à produção da prova oficiosamente ordenada.

Não se sabendo o que a Recorrente pretendia demonstrar com a prova, não se pode saber se a prova sugerida só se mostrou necessária devido à produção da prova oficiosamente ordenada.

No entanto, sempre se poderá fazer algum tipo de indagação.

Vejamos.

Consistindo a prova oficiosamente ordenada na fatura que terá documentado a compra de alguns dos bens objeto da avaliação por parte do tribunal, sendo esta fatura considerada pelo tribunal como facto histórico, como realmente existente, então ela contribuirá para formar a convicção do juiz sobre o preço real dos bens na data em que foram adquiridos, servindo esse preço para ajudar a formar a convicção do tribunal sobre o valor dos bens.

Pergunta-se, pois, que prova poderia ser oposta ao teor da fatura, que não pudesse ter sido indicada com o requerimento probatório?

Que se trata de um documento falso?

Certamente, mas nada foi alegado a este respeito, nem há indícios disso.

Que o valor dos bens não correspondia ao preço da fatura?

Não, pois o valor dos bens é precisamente o objeto do julgamento e essa questão do valor já estava colocada desde o início, e a Recorrente teve oportunidade, desde o início, de indicar prova a este respeito, não podendo beneficiar de nova oportunidade, dado o princípio da preclusão acima referido, sendo certo que a questão do real valor dos bens não foi colocada pela junção da dita fatura, antes pelo contrário, está colocada desde o início.

Por conseguinte, não se podendo concluir que a prova indicada pelas Recorrentes tinha/tem implicações em relação à prova oficiosamente ordenada, no sentido de a poder contrariar ou tornar duvidosa e só se ter mostrado necessária devido à produção da prova oficiosamente ordenada, o tribunal não podia ter tido qualquer razão para ordenar, também oficiosamente, a sua produção, pelo que, em concreto, não se pode concluir pela violação do princípio da igualdade entre as partes e do princípio da imparcialidade do tribunal.

(II) Quanto à segunda questão, isto é, se devem ser anulados os atos subsequentes incluindo a sentença, nos termos do artigo 195.º n.º 2 do C.P.C

Esta questão estava dependente de uma resposta positiva à questão anterior, pelo que a sua análise ficou prejudicada.

*3. [Comentário] Em função dos dados disponíveis não se vislumbra nenhuma razão para discordar do decidido no acórdão.

Em todo o caso, deixa-se as seguintes observações:

-- O despacho que indeferiu as provas requeridas (ou "sugeridas") pelos exequentes nunca poderia padecer, em função do que é referido no acórdão, de nenhuma nulidade, pois que não preenche nenhuma das situações elencadas no art. 615.º, n.º 1, CPC; o que se pode discutir (e o que o acórdão efectivamente apreciou) é se esse despacho é legal ou ilegal;

-- Embora se possa perceber a distinção referida no acórdão entre "sugerir" e "requerer" uma prova, importa esclarecer que, sendo, alegadamente a prova que os executados agora pretendiam realizar uma resposta à prova produzida pela exequente, aquelas partes tinham efectivamente o poder de "requerer" a nova prova; outra questão é saber se a prova requerida é admissível, tendo o tribunal recorrido concluído pela sua inadmissibilidade e o acórdão confirmado essa decisão.

MTS