"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2023

Jurisprudência 2023 (50)


Prova pericial;
perito; autonomia técnica


1. O sumário de RP 27/2/2023 (463/13.4TMMTS-C.P1) é o seguinte:

I - O recurso à prova pericial funda-se na circunstância de o direito à prova incidir sobre factos cuja perceção ou apreciação necessita de conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.

II - O método adotado pelo perito nomeado para efetuar avaliação de benfeitorias integra o núcleo dos conhecimentos especiais do perito e a sua autonomia técnico-científica.

III - Por estar em causa matéria que requer os conhecimentos especiais que o julgador tendencialmente não possui e por violar a autonomia técnico-científica do perito, não merece acolhimento a pretensão da parte de que se ordene ao perito que proceda à avaliação objeto da perícia de acordo com o método que aquela tem como tecnicamente adequado.

IV - Nem por isso ficam precludidos os direitos da parte a ver acautelada a sua pretensão porquanto a sua discordância é suscetível de fundar a realização de segunda perícia e por poder esgrimir perante o tribunal os fundamentos teóricos da incorreção técnico/teórica apontada.

V - Não viola o princípio do inquisitório, o dever de gestão processual ou o dever de cooperação o juiz que não adota oficiosamente as medidas tendentes a ver aplicada a tese da parte quanto ao método de avaliação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Constitui pretensão da requerente que o perito que procedeu à avaliação ordenada proceda à mesma tendo presente o valor real de mercado de construção por m2, conjugado com os seguintes fatores: localização, piso, qualidade da construção, a idade do edifício, a vista que é possível ter a partir da habitação, a orientação solar, as acessibilidades, o estado de conservação, tipologia, e a disposição da habitação; os acabamentos, as facilidades da habitação como estacionamento, espaços verdes, entre outros. [...]

Prevê o art.º 388.º do C.C. que a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.

O resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia fundamentadamente sobre o respetivo objeto (art.º 484.º do C.P.C.).

Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações (art.º 485.º/2 do C.P.C.).

Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado (art.º 485.º/3 do C.P.C.).

O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores (art.º 485.º/4 do C.P.C.).

Qualquer das partes pode, também, requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art.º 487.º/1 do CPC).

A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (art.º 487.º/3 do C.P.C.).

No que à reclamação diz respeito, atento o teor do citado art.º 485.º/2 do C.P.C., esta consiste, forçosamente, em apontar a deficiência, o que está em falta e/ou a obscuridade e/ou o que não é entendível ou a contradição.

As conclusões da alegação enunciadas pela recorrente indiciam, porém, algo diverso. A recorrente entende que o modo como o perito procedeu à avaliação das benfeitorias ordenada é incorreta. Realça que o relatório pericial aplicou o método do custo através da portaria 310/2021 de 20 de dezembro que determina o valor médio de construção para o ano de 2022 é de 512eur/m2, e que tendo por esta referência e as áreas constantes no antedito relatório obteve o valor final de benfeitorias é de 32.000,00€, com a aplicação da taxa de desvalorização de 14,2% da Tabela de Ross Heidcke, que o relatório pericial ao recorrer ao método de custo por m2 por força da Portaria está de forma ilegal e não consentida, afastar o custo real e atual das benfeitorias que o imóvel beneficia. Na verdade, ao aplicar a Portaria supra, o Sr. Perito está aplicar legislação que não tem de todo em todo aplicação na presente avaliação e no geral às avaliações judiciais, pois alcança um valor que é um valor referência para efeitos fiscais de uma universalidade de imóveis, e segundo um valor médio de construção por metro quadrado, que apenas é considerado em termos e para os efeitos do artigo 39.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, a vigorar no ano de 2022, fixado em (euro) 512 o valor médio de construção por metro quadrado, para efeitos do artigo 39.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, a vigorar no ano de 2022; e ainda que de acordo com o art.º 2º daquele diploma o âmbito da aplicação é “A presente portaria aplica-se a todos os prédios urbanos cujas declarações modelo 1, a que se referem os artigos 13.º e 37.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, sejam entregues a partir de 1 de janeiro de 2022.

Em súmula, o perito avaliador nomeado adotou um método de avaliação das benfeitorias cuja aplicação a recorrente entende ser ilegal. Explana qual o método cuja aplicação tem por adequada e requer que o tribunal ordene ao perito que proceda ao cálculo de acordo com esse critério.

Veja-se que, a estarmos perante uma verdadeira e própria reclamação, ela daria lugar a que o juiz ordenasse que o perito completasse, esclarecesse ou fundamentasse o relatório. Nada disto é pretensão da requerente. Esta considera, isso sim, que o relatório não foi efetuado de acordo com as normas legais aplicáveis à avaliação de imóveis. Nesta conformidade, o resultado da avaliação das benfeitorias alcançado será incorreto, não porque o raciocínio do perito padeça de um vício intrínseco, porque os cálculos estejam errados, ou porque o raciocínio operado incorra em lapso, mas sim porque o método de cálculo deveria ter sido outro. Requer, assim, a apelante que o perito seja notificado para proceder à avaliação tendo em conta a metodologia que indica.

Exposto o enquadramento, é forçoso o entendimento segundo o qual a pretensão da apelante não encontra arrimo legal.

Senão vejamos: os peritos são chamados a intervir na fase processual de produção da prova por força da sua detenção de conhecimentos específicos que, em princípio, nem as partes e os seus mandatários, nem o juiz se arrogam. É o que decorre do já citado art.º 388.º do C.C.. Os seus conhecimentos, que são sinalizados pela formação em determinadas áreas de saber, consoante a natureza da perícia, valem-lhes autonomia técnica. Esta asserção é verdadeira para qualquer área de conhecimento pericial. O juiz não goza, pois, da prerrogativa de instruir o perito-médico, o perito engenheiro, o perito avaliador ou outro acerca dos procedimentos e metodologias a adotar.

Atente-se em que, pela própria natureza das coisas, as mais das vezes o juiz desconhece quais sejam esses procedimentos e métodos. Por outra parte, nos termos da lei processual civil, não se trata de incumbência sua, já que a realização da perícia é cometida ao técnico, devendo apenas o tribunal fixar o objeto da mesma, conforme o art.º 476.º/2 do C.P.C.. Derradeiramente, uma tal instrução constituiria uma intromissão inadmissível numa tarefa de âmbito técnico-científico, desvirtuando a própria natureza da prova pericial e a independência dos peritos. [...]

Expendia Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pp. 184 e 185): claro que os fundamentos invocados pelos peritos para justificar as suas conclusões e os trâmites que eles houverem seguido no desempenho do seu cargo estão sujeitos à censura do juiz, que formará a sua convicção segundo a competência ou incompetência efetiva do perito e a seriedade, diligência e retidão que ele revelar no desempenho do encargo, ou segundo os defeitos que o laudo apresentar; mas, por que todo o arbitramento pressupõe a insuficiência de conhecimentos do magistrado, é vão imaginar-se que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objetivo para o qual não dispõe de meios subjetivos; daí que muitas vezes o litígio é decidido, substancialmente, pelo parecer do perito; ...quer dizer, a máxima de que o magistrado é o perito dos peritos, não passa, a maior parte das vezes, de máxima abstrata; por mais que se afirme a hegemonia da função jurisdicional em confronto com a função técnica e se queira defender o princípio da livre apreciação da prova, não é raro que o laudo pericial desempenhe papel absorvente

Adverte-se, assim, para o peso prático dos resultados periciais. Nem por isso, porém, a parte deixa de estar munida de meios para se insurgir contra os resultados periciais com os quais não concorde, ainda que tal não se prenda com deficiência, obscuridade, contradição ou falta de fundamentação. Referimo-nos à possibilidade que assiste à parte de requerer a realização de segunda perícia.

Como se lê no ac. da Relação de Guimarães de 3-11-2022 (proc. 937/19.3T8BGC-A.G1, José Alberto Moreira Dias), a segunda perícia não é, assim, “uma instância de recurso”, destinando-se antes a averiguar os mesmos factos que foram objeto da primeira perícia que se realizou perante a alegação por qualquer das partes de fundadas razões que motivam o pedido de realização da segunda perícia, isto é, de razões concretas, sérias e objetivas que levem a criar no espírito do julgador a fundada suspeita de que a primeira perícia padece de eventuais inexatidões, que importa suprir.

Quando a parte entende que o juízo técnico da perícia não é o mais acertado, desde que explicite fundadamente as razões da sua discordância, pode sempre requerer a realização de segunda perícia.

Já formular ela própria um juízo técnico, requerendo ao tribunal que ordene ao perito que analise a questão que lhe é colocada e que elabore o relatório pericial em conformidade com esse juízo que lhe parece o correto, não encontra enquadramento jurídico.

Ora é essa, afinal, a pretensão da recorrente.

Em defesa do seu desiderato, a apelante dirige ainda a seguinte crítica à atuação do tribunal recorrido: este não teria cuidado de ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, em violação do preceituado nos arts. 6.º e 411.º do C.P.C.. [...]

Na situação em apreço, todavia, não se verifica qualquer omissão do dever de cooperação em busca da verdade material. Desde logo, como se assinalou, foi a parte que deixou precludir o direito que lhe assistia de requerer a realização de segunda perícia. Por outro lado, porque a parte não anui à metodologia adotada pelo perito nomeado, não se segue que o juiz partilhe dessa tese. A ter-se a parte socorrido do auxílio de terceiro ou de terceiros também eles entendidos na matéria, o juiz não disporá, evidentemente, de igual vantagem, pelo que estranho seria que se insurgisse contra o teor do relatório baseado em conhecimentos de natureza técnica que, com um grau de probabilidade elevadíssimo, não possui."

[MTS]