"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/11/2023

Jurisprudência 2023 (60)


Competência material;
competência do STJ; princípio da confiança*


1. O sumário de STJ 16/3/2023 (4297/13.8TBVFR.P1.S1) é o seguinte:

Da leitura conjugada do disposto no artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8.11), no artigo 37.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (DL n.º 11/93, de 15.01), no artigo 4.º, n.º 1, al. i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19.02, na versão da Lei n.º 59/2008, de 11.09) e no artigo 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (Lei n.º 67/2007, de 31.12) resulta que os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para julgar uma acção de responsabilidade civil proposta contra a Santa Casa da Misericórdia de Arouca por danos causados no âmbito da prestação de cuidados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde nos termos de convenção.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I. RELATÓRIO

Recorrente: Santa Casa da Misericórdia de Arouca

Recorridos: AA e Outros

1. Em 24 de Agosto de 2013, nos Juízos Cíveis de Santa ..., Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga, E.P.E., instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra Generali Companhia de Seguros, S.p.A., Santa Casa da Misericórdia de Arouca, BB e Companhia de Seguros Lusitânia [...],

6. Em 29 de Novembro de 2013, Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A., veio requerer a apensação a estes autos da acção de processo comum n.º 5546/13....[2] que CC instaurou em 20 de Novembro de 2013 contra as mesmas partes nestes autos pedindo uma indemnização de € 220.000,00 e com base no mesmo sinistro, havendo toda a conveniência, dada a limitação do capital seguro, na requerida apensação. [...]

13. Com data de 3 de Setembro de 2018, foi proferida sentença que julgou ambas as acções improcedentes, absolvendo-se todos os réus dos pedidos formulados e declarando-se suspensa a instância com fundamento no óbito do autor CC.

14. Em 25 de Outubro de 2018, foi proferida sentença a julgar habilitados como sucessores de CC, sua esposa AA e seus filhos DD, EE e FF.

15. Em 10 de Dezembro de 2018, inconformados com a sentença proferida com data de 3 de Setembro de 2018, AA, DD, EE e FF interpuseram recurso de apelação.

16. O Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão a julgar parcialmente procedente o recurso de apelação.

Pode ler-se no dispositivo:

“Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da ... secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por AA, DD, EE e FF e, em consequência, pelos fundamentos antes exposto, em rejeitar a reapreciação da decisão da matéria de facto e, no mais, em revogar a decisão recorrida substituindo-a por outra que julgando parcialmente procedente por provada a ação condena a Santa Casa da Misericórdia de Arouca a pagar aos recorrentes a quantia de cinquenta mil euros, a título de danos não patrimoniais sofridos pelo falecido CC, acrescida de juros de mora contados à taxa supletiva para os juros civis, presentemente de 4% ao ano, desde o dia imediato ao desta decisão e até efetivo e integral pagamento e sem prejuízo da aplicação de ulteriores taxas supletivas legais para os juros civis que venham a vigorar aos juros corridos na sua vigência, absolvendo do demais pedido esta ré e absolvendo-se da totalidade do pedido os réus BB, Lusitânia - Companhia de Seguros, SA e Generali Companhia de Seguros, SA”.

17. Inconformada, Santa Casa da Misericórdia de Arouca interpõe recurso de revista. [...]

20. Em 9.02.2023, proferiu a presente Relatora um despacho com o seguinte teor:

1. Resulta da factualidade provada que o autor foi encaminhado para o Hospital da ré, Santa Casa da Misericórdia de Arouca, para assistência no âmbito da convenção com o Serviço Nacional de Saúde (cfr. facto provado 1).

2. Da leitura conjugada do disposto no artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8.11), no artigo 37.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (DL n.º 11/93, de 15.01), no artigo 4.º, n.º 1, al. i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19.02, na versão da Lei n.º 59/2008, de 11.09) e no artigo 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (Lei n.º 67/2007, de 31.12) resulta que a competência, em razão da matéria, para conhecer da presente acção pertence à jurisdição administrativa.

3. Assim, em observância do princípio ínsito no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem, no prazo de dez dias, para a possibilidade de, atendendo ao disposto no artigo 97.º, n.º 1, do CPC, este Tribunal se declarar incompetente em razão da matéria”.

II. FUNDAMENTAÇÃO [...]

O DIREITO

1. O presente recurso é interposto no âmbito de uma acção de responsabilidade proposta contra Santa Casa da Misericórdia de Arouca pelos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido CC.

Conforme apontado no despacho de 9.02.2023, resulta do facto provado 1 que o autor foi encaminhado para o hospital da ré, para assistência no âmbito da convenção com o Serviço Nacional de Saúde.

Ora, por um lado, resulta do artigo 1.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8.11) [---] que:

A rede de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os estabelecimentos privados que prestem cuidados aos utentes do SNS e outros serviços de saúde, nos termos de contratos celebrados ao abrigo do disposto no capítulo IV, e os profissionais em regime liberal com quem sejam celebradas convenções”.

Resulta do artigo 37.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (DL n.º 11/93, de 15.01, com as alterações do DL n.º 97/98, de 18.04) [---] que:

1 - A articulação do SNS com as actividades particulares de saúde faz-se nos termos seguintes:

a) No planeamento da cobertura do território pelo SNS podem ser reservadas quotas para o exercício das actividades particulares;

b) Os médicos do SNS com actividade liberal podem assistir os doentes privados nos estabelecimentos oficiais, em condições a estabelecer em diploma próprio;

c) As ARS podem celebrar contratos ou convenção com médicos não pertencentes ao SNS ou com pessoas colectivas privadas para a prestação de cuidados aos seus utentes.

2 - Os estabelecimentos privados e os profissionais de saúde que trabalhem em regime liberal e que contratem nos termos do número anterior integram-se na rede nacional de prestação de cuidados de saúde e ficam obrigados:

a) A receber e cuidar dos utentes, em função do grau de urgência, nos termos dos contratos que hajam celebrado;

b) A cuidar dos doentes com oportunidade e de forma adequada à situação;

c) A cumprir as orientações emitidas pelas ARS”.

E resulta ainda do artigo 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (Lei n.º 67/2007, de 31.12, com as alterações da Lei n.º 31/2008, de 17.07) [---]:

As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Resulta, por outro lado, do artigo 4.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19.02, com as alterações da Lei n.º 59/2008, de 11.09) [---]:

Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Em suma, verifica-se que a presente acção foi proposta contra a Santa Casa da Misericórdia de Arouca, um prestador de cuidados de saúde integrado no SNS e ao qual, por força das disposições acima mencionadas, são aplicáveis as regras do Direito Público, designadamente o referido Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e e Demais Entidades Públicas. Consequentemente, os tribunais comuns são incompetentes para julgar a presente acção.

Explica-se bem esta conclusão no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Tribunal de Conflitos) de 21.04.2016, em que se decidiu um conflito negativo de competência num caso muito semelhante ao dos presente autos e estando em causa a Santa Casa de Misericórdia do Porto [---]. [...]

2. Dispõe-se no artigo 97.º do CPC que:

1. A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa

2. A violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final”..

Comentando esta norma, mais precisamente, a regra do n.º 1 e a excepção do n.º 2, observa Miguel Teixeira de Sousa que:

A regra geral do art. 97.º, n.º 1, é [ ] aplicável se, por exemplo, uma acção de anulação de um acto administrativo for instaurada num tribunal judicial. Assim, o regime é mais brando para a hipótese de a violação da competência em razão da matéria se verificar no âmbito dos tribunais judiciais e mais grave se ela ocorrer entre um tribunal judicial e um tribunal não judicial” [Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, AAFDUL, 2022, pp. 163-164.].

Antecipando qualquer dúvida quanto à conformidade constitucional da solução consagrada nesta norma, torna-se oportuno parafrasear o esclarecedor sumário do Acórdão desta 2.ª Secção de 13.10.2022, onde pode ler-se o seguinte:

 “4. (…) a norma do artigo 97.º, n.º 1, do CPC desde há muito que vigora no nosso ordenamento processual e que tem sido assumida, na doutrina e na jurisprudência, como um parâmetro fundamental para garantir o julgamento das causas pelo tribunal a que seja atribuída, constitucional e legalmente, competência absoluta, nomeadamente em razão da matéria, o que se funda no interesse de ordem pública inerente à organização judiciária.

5. Pela longevidade com que tem sido interpretada e aplicada aquela norma e pelo persistente consenso doutrinário e jurisprudencial que reúne quanto a tal desiderato não pode a mesma ser tida como adversa à segurança jurídica e à tutela da confiança dos cidadãos nem como fator de imprevisibilidade ou indeterminabilidade das situações por ela visadas ou dos efeitos nela prescritos.

8. A norma do artigo 97.º, n.º 1, do CPC, visando assegurar que a causa seja julgada definitivamente pelo tribunal provido de competência absoluta inderrogável, não se revela ofensiva mas antes complementar dos princípios constitucionais do processo equitativo e da tutela efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição e no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que não deverá ser desaplicada com fundamento em inconstitucionalidade”.[Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2022 (Proc. 1749/12.0TBSTR.E1-A.S1), subscrito pela presente Relatora como 2.ª Adjunta.]

Tudo visto, julga-se, ao abrigo desta norma, que os tribunais judiciais são absolutamente incompetentes, em razão da matéria, para decidir do presente litígio."
 

*3. [Comentário] Sob o ponto de vista estritamente técnico, nada há a apontar ao acórdão do STJ. Ainda assim, a decisão de incompetência absoluta dos tribunais judiciais não deixa de criar algum desconforto. Lembre-se o seguinte:

-- Segundo se julga ter percebido, nenhuma das partes levantou o problema da competência material dos tribunais judiciais e ambas as instâncias apreciaram o mérito da causa;

-- A revista é interposta pela Autora, naturalmente apenas por razões de carácter substantivo, e por esta Recorrente só foi solicitado que o STJ apreciasse a sua condenação no pagamento de uma indemnização;

-- O problema da competência material dos tribunais judiciais só foi levantado pela Relatora do presente acórdão, que adequadamente, de forma a evitar uma decisão-surpresa, mandou ouvir as partes;

-- A tudo isto acresce que o presente acórdão é proferido no último grau de jurisdição e que tal ocorre quase dez anos após o início da instância.

Perante estes dados, o STJ podia ter decidido de forma diferente. Baseado numa ideia de protecção da confiança que as partes depositaram na competência dos tribunais judiciais e na necessidade de, na última oportunidade de apreciação do mérito causa, não frustrar essa confiança, bem podia o STJ ter deixado de lado o problema da competência material dos tribunais judiciais e ter apreciado o mérito da causa.

Em termos reais, o STJ transformou um "pro-cesso" num "retro-cesso". Tinha à sua disposição argumentação sólida para o evitar.

MTS