"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/11/2023

Jurisprudência 2023 (57)


Litigância de má fé;
dever de verdade


1. O sumário de RG 9/3/2023 (83752/20.4YIPRT.G1) é o seguinte:

Deve ser sancionada à luz da litigância de má-fé a conduta processual do réu que alicerçou a sua oposição na exceção do pagamento integral das quantias peticionadas na ação, nas circunstâncias que também descreve, quando a mesma se mostra de todo incompatível com os factos que resultaram provados, dos quais decorre a efetiva demonstração do facto negativo atinente à falta de pagamento/restituição pelo réu/recorrente do valor peticionado na ação (correspondente à diferença entre a quantia recebida por este do autor/mutuante e a importância já assumidamente restituída, de acordo com a versão apresentada pelo autor, que resultou demonstrada) e estão em causa factos pessoais, de que o réu não podia deixar de ter conhecimento.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na situação em apreciação observa-se que a decisão recorrida alicerçou a condenação do réu como litigante de má-fé com base essencialmente nos seguintes fundamentos:

«(…) Entende o tribunal, que não leva de ânimo leve estas situações, sendo especialmente exigente para condenações em litigância de má-fé, que nestes autos se apurar com evidência a má-fé com que litigou o réu, comunicando ao seu Advogado – que por sua vez os fez verter na contestação – factos que tinha que saber serem falsos.

Não podia réu deixar de saber que o prazo para pagamento do mútuo terminava em Fevereiro de 2020, pois que havia assinado um contrato onde o prazo de pagamento era de 12 meses, com início em 5 de Fevereiro de 2019 (data em que a quantia lhe foi mutuada). Não se coibiu, no entanto, de comunicar ao processo que havia procedido ao pagamento da quantia mutuada em data anterior à do vencimento da obrigação, data essa que alegou ser de Julho de 2020, o que teria que saber ser falso. Igualmente, ademais, não só não provou ter feito esse alegado pagamento, como se provou, positivamente, que o não fez, nem na data que havia alegado nem em qualquer outra.

Ou seja, o réu alegou, na sua oposição, factos extintivos da obrigação cujo cumprimento era peticionado, factos que sabia não serem verdadeiros, alterando a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas als. a) e b) do n.º 2 do artº 542.º, do C.P.C.; tal como, ademais, a previsão do artº 17.º, nº 4, do regime anexo ao D.L. 269/98.

Impõe-se, por isso, em conformidade com o nº 1, do artº 542.º, do C.P.C., a condenação do réu em multa e indemnização, neste último caso, porque a mesma foi pedida pelo autor». [...]

Ora, contrariamente ao que sucede relativamente aos factos de que não se fez prova - em que tudo se passa como se tais factos não tivessem sido sequer alegados, não podendo retirar-se deles qualquer consequência jurídica, designadamente a prova do facto inverso, com exceção da imposta pelas regras do ónus da prova [Cf., o Ac. TRP de 10-01-2019 (relator: Aristides Rodrigues de Almeida), p. 21800/16.4T8PRT-A. P1, acessível em www.dgsi.pt.] - a demonstração do facto negativo atinente à falta de pagamento pelo réu/recorrente dos valores reclamados na presente ação permite afirmar que o réu não só deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, como igualmente alterou (deturpou) a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, permitindo consubstanciar os pressupostos da litigância de má-fé [Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRG de 31-10-2019 (relator: Alcides Rodrigues), antes citado.], em sentido idêntico ao entendimento adotado no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 [Relator: Ilídio Sacarrão Martins P. 74300/16.1YIPRT.E1-A. S1 - 7.ª Secção -, disponível em www.dgsi.pt.], onde se entendeu violar gravemente o dever de cooperação com o tribunal e a parte contrária, devendo ser sancionada por litigância de má-fé, a conduta do réu que nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados.

Também o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 4-07-2019 [Relatora: Maria da Graça Trigo, p. 7070/17.0T8VNF.G1. S1- 2.ª Secção -, disponível em www.dgsi.pt.], manteve a decisão de condenação da ré como litigante de má-fé, confirmando encontrar-se preenchido o pressuposto do artigo 542.º, n.º 2, alínea b), do CPC, por constatar que a ré negou factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, atuando assim dolosamente.

Compulsando o que resulta dos factos provados, em especial o que consta dos pontos 1.1.4., 1.1.5., 1.1.6., e 1.1.7., resulta evidente que se provou uma versão dos factos que se mostra de todo incompatível com o alegado pelo réu em sede de contestação, ou seja, e tal como também se sintetizou na decisão recorrida: «(…) o réu alegou, na sua oposição, factos extintivos da obrigação cujo cumprimento era peticionado, factos que sabia não serem verdadeiros, alterando a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas als. a) e b) do n.º 2 do artº 542.º, do C.P.C.; tal como, ademais, a previsão do artº 17.º, nº 4, do regime anexo ao D.L. 269/98».

Deste modo, atenta a natureza dos factos em apreciação e que vieram a provar-se, os quais consubstanciam factos pessoais que não podiam deixar de ser do conhecimento do réu, não pode deixar de se concluir que o réu não só deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, como igualmente alterou (deturpou) a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, apresentando nos autos uma falsa versão da realidade ocorrida.

Por conseguinte, a conduta processual do réu/recorrente permite configurar uma alteração consciente da verdade dos factos, deduzindo uma oposição cuja falta de fundamento forçosamente conhecia, o que leva a qualificar tal comportamento à luz do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), e b), do CPC, o que configura a qualificação jurídica feita pelo tribunal a quo.

Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões do apelante.

Tal como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 542.º do CPC, a litigância de má-fé pode conduzir à aplicação ao litigante de duas sanções: a condenação em multa, a qual a lei não faz depender de prévio pedido da parte, e uma indemnização à parte contrária, se esta a pedir, conforme decorre da parte final do normativo em referência.

Atendendo ao objeto do presente recurso, a única questão que resta apreciar e resolver prende-se com o valor da multa devida pela litigância de má-fé, tal como fixada pelo Tribunal a quo na decisão recorrida no montante equivalente a 10 (dez) unidades de conta, valor que considerou adequado atendendo às circunstâncias que determinam a condenação do autor como litigante de má-fé, defendendo o apelante a sua redução por considerar tal valor desajustado, por excessivo, não correspondendo a um justo equilíbrio entre o grau de culpa e a censurabilidade do comportamento.

A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece o artigo 27.º, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4 do citado preceito legal).

A propósito do critério que deverá guiar o juiz na fixação do quantum da multa, dentro da moldura que lhe foi previamente fixada, refere Marta Frias Borges [Cf., Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre),na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, 2014, Coimbra, pg. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt.]: «De acordo com o art. 27º, nº 4 do RCP, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má-fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39, aludia à necessidade de atender ao grau de má-fé e à situação económica do litigante. De facto, a multa por litigância de má-fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo».

A este propósito, salienta ainda o Ac. TRP de 26-02-2008 [Relator Vieira e Cunha, p. n.º 0820769, disponível em www.dgsi.pt.] «[a] multa devida por litigância de má fé deve ser fixada com base no “prudente arbítrio” do juiz, que deve sopesar a gravidade da infracção e a situação económica do infractor, a maior ou menor gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada ao litigante de boa fé, os interesses funcionais do Estado e o valor da acção».

Ora, como vimos, os factos provados nos autos levam a concluir que o réu alterou conscientemente a verdade dos factos, deduzindo uma oposição cuja falta de fundamento forçosamente conhecia, permitindo concluir que configurou dolosamente os factos em que baseou a defesa apresentada.

Acresce constatar que a litigância de má-fé ocorre desde o momento de apresentação da respetiva contestação, com as consequências inerentes à subsequente tramitação processual, estando o valor da ação fixado em 14.617,64 €.

Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, consideramos que a atuação do réu configura uma hipótese relativamente grave de litigância de má-fé, pelo que, diversamente do que defende o recorrente, o montante da multa não pode ser reduzido, por se mostrar adequado e proporcional às circunstâncias do processo e às finalidades da condenação."

[MTS]