"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/11/2023

Jurisprudência 2023 (48)


Competência material;
obras públicas; contrato de empreitada


1. O sumário de TConf 1/3/2023 (0894/21.6T8FNC-A.L1.S1) é o seguinte:

É da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação de um pedido de pagamento de quantias que se enquadram no cumprimento (execução) de empreitadas de obras públicas que a autora, uma sociedade comercial, alega ter celebrado com a ré, a Região Autónoma da Madeira, sendo invalidados os acordos que as reduziram, que não pode entender-se serem independentes dos contratos de empreitada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5. Está [...] em causa, apenas, saber quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora [Tâmega Engineering, S.A.], se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).

Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a acção que estiver em causa tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).

«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)

A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.

Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».

A este domínio material existem, todavia, casos de alargamento da jurisdição administrativa, nomeadamente na área dos contratos“Esse alargamento é evidente na alínea e)” do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “a qual, tal como confere aos tribunais administrativos competência para julgar os litígios que tenham por objecto a validade dos actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos, também no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também, quaisquer contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Ora, como se sabe, a legislação referida, em especial o Código dos Contratos Públicos (…), ao regular os procedimentos pré-contratuais, também se aplica a contratos de direito privado celebrados pela administração, bem como alguns contratos celebrados por entidades privadas que sejam entidades adjudicantes. Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2015 (…)”(págs. 109 e 110).

Nas palavras de Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, 4.º ed., Coimbra, 2020. pág. 170 segs.), na revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 2015, o legislador veio substituir as antigas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 4.º, “que anteriormente se referiam aos litígios em matéria de contratos”, pela al. e) do n.º 1 do artigo 4.º, que utiliza, “para delimitar o âmbito da jurisdição em matéria de contratos”, os critérios do “contrato administrativo” (cfr. n.º 1 do artigo 280.º do Código dos Contratos Públicos), substituindo a antiga alínea f), e do “contrato submetido a regras de contratação pública”, por aqui abrangendo “litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas colectivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando, legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP)”.

6. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

7. A autora alega que, no âmbito da sua atividade, foi contratada pela ré para levar a cabo inúmeras empreitadas de obras públicas na Região Autónoma da Madeira, com vista à promoção do desenvolvimento do território, da qualidade de vida da população e do turismo. Celebraram entre si, portanto, diversos contratos de empreitada de obras públicas.

Em consequência da grave crise financeira que afectou o país entre 2010 e 2014, a autora teve sérias dificuldades financeiras e viu-se pressionada pelos seus credores a celebrar acordos de reestruturação de dívida com os seus maiores devedores, entre os quais se encontrava a ré.

Salienta ter sido ”neste contexto que Autora e Ré celebraram um negócio materializado num conjunto de acordos, adendas e declarações, com benefícios verdadeiramente excessivos e injustificados para a Ré”, que, “conhecedora da grave realidade financeira em que a Autora se encontrava” e da necessidade de obtenção de liquidez, explorou a situação em benefício e proveito próprios: “foi este o contexto de enorme debilidade financeira que precipitou a celebração do Acordo de Princípio de 28.12.2012 entre a Autora e a Ré e em que decorreram as sucessivas negociações, nomeadamente, a Adenda ao Acordo de Princípio de 03.07.2013 e a Declaração de 06.05.2014 (…)”

Conclui que o negócio celebrado entre as partes configura um negócio jurídico usurário.

Assim, conforme referido no acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Maio de 2022, a autora pretende que a ré seja condenada no cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de empreitadas de obras públicas celebrados entre ambas, anulando-se (por padecerem do vício de usura) as modificações constantes dos acordos celebrados posteriormente.

Os contratos inicialmente celebrados entre as partes são pacificamente aceites como de obras públicas; cfr, aliás, a definição de empreitada de obras públicas constante do n.º 1 do artigo 343.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro.

8. Da interpretação da petição inicial resulta que o efeito prático-jurídico pretendido pela autora desta acção – o pedido (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1) – é o pagamento de quantias que se enquadram no cumprimento (execução) das empreitadas de obras públicas que alega ter celebrado com a ré, sendo invalidados os acordos que as reduziram, e que não pode entender-se que sejam independentes “dos contratos de empreitada que originaram a dívida” (ponto 8 das alegações de revista).

Nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o conhecimento da presente acção compete à jurisdição administrativa e fiscal, razão pela qual improcede o recurso.

9. Em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, aplicável nos termos do respectivo n.º 3 do artigo 18.º, delibera-se que é competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (n.º 1 do artigo 19.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos)."

[MTS]