Processo de inventário;
remessa para os meios comuns
I. O sumário de RG 9/3/2023 (1509/20.5T8VNF-A.G1) é o seguinte:
1. Por força do disposto no art. [1]123º,3 CPC, deve ser atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto de uma decisão proferida num inventário para separação de meações, em que se remete a questão da existência de um crédito de um dos interessados sobre o outro para os meios comuns, pois a existir o crédito alegado ele deverá ser pago pela meação do outro interessado no património comum, e, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, deverá ser pago pelos bens próprios daquela, questões que deverão ser submetidos à conferência de interessados.
2. O regime processual do inventário para separação de meações tem de ser interpretado em conjugação com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689 e 1697 CC.
3. A questão supra-referida não deve ser remetida para os meios comuns, pois é uma questão central do inventário, e, no caso concreto, não se vislumbram nenhuma das circunstâncias (dificuldade e complexidade probatórias acentuadas que possam reduzir as garantias das partes a uma boa decisão) em que a lei permite a remessa da mesma para os meios comuns.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:
a) se foi correctamente fixado o efeito do recurso;b) se foi correcta a decisão de remeter as partes para os meios comuns quanto ao alegado crédito invocado pelo cabeça de casal, sobre a interessada ou se tal matéria deve ser decidida nos autos de inventário.
III
A tramitação dos autos é a que supra ficou exposta no relatório, e é com base nela que temos de procurar a solução a dar ao recurso.
O Tribunal a quo fixou ao recurso efeito suspensivo do andamento do processo, invocando o disposto no art. 1123º,3 CPC, com o argumento que a questão a ser apreciada afectará inelutavelmente a utilidade prática das diligências a levar a cabo na conferência de interessados.
Com efeito, a norma citada dispõe que o juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afectar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.
O recurso em causa é o de apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha.
Vamos deixar desde já claro que consideramos que o efeito suspensivo foi bem fixado pela primeira instância, como veremos supra, pois tal questão está umbilicalmente ligada com a questão central do recurso.
Vejamos então ao pormenor.
O processo de inventário existe para cumprir, entre outras, as funções de partilhar bens comuns do casal (art. 1082º,c, na redacção da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2020).
Ou seja, o processo de inventário existe e destina-se a pôr um fim à comunhão de bens conjugal (arts, 1721º e ss. e 1732º e ss CC).
Porém, como é óbvio e tem sido repetidas vezes lembrado pela jurisprudência dos Tribunais superiores (v. g. Acórdãos TRL de 28.6.2007 e 274.10.2016 - João Miguel Mourão Vaz Gomes), o regime processual do inventário para separação de meações tem de ser interpretado em conjugação com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos artigos 1689 e 1697 CC.
O artigo 1689º (Partilha do casal - Pagamento de dívidas) dispõe:
1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
E resulta do artigo 1697º:
1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.
Para bem entender estes dois artigos, vamos recorrer ao auxílio dos Clássicos. Assim, no CC anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1689º, pode ler-se: “A partilha dos bens do casal e o pagamento das dívidas, como consequência da cessação das relações patrimoniais entre os casados constituem matérias comuns a todos os regimes de bens, sejam quais forem as normas reguladoras da aquisição dos bens e da responsabilidade assumida por cada um dos cônjuges. (…) A partilha do casal desdobra-se em três operações distintas: a) a entrega dos bens próprios; b) a conferência das dívidas dos cônjuges à massa comum; c) a partilha dos bens comuns. As operações devem mesmo processar-se segundo a ordem por que acabam de ser discriminadas. [...]
E em anotação ao art. 1697º, pode ler-se: “São dois os princípios consagrados no art. 1697º: o de que é devida compensação, quando as dívidas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, e o de que igualmente compensação é devida, quando as dívidas de um só dos cônjuges forem pagas com bens comuns. Na base da primeira solução, e em parte, também da segunda, está a ideia de que cada um dos cônjuges deve ser compensado de tudo quanto tenha pago à custa dos seus bens, além do que rigorosamente lhe cumpria subscrever, no plano das relações internas”.
Também a mesma ideia é frisada por Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 4ª edição, fls. 428): “a partilha, numa acepção ampla, compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios, como operação ideal preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; e a partilha propriamente dita”.
Sobre as compensações, explicam os mesmos autores: “durante o casamento operam-se transferências de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios dos cônjuges- quer porque se utilizam verbas comuns para financiar obras num imóvel próprio, para pagar uma dívida da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, quer porque se adquire a casa de morada da família com capital próprio de um dos cônjuges sem se formalizar a sub-rogação real, ou porque se paga uma dívida de ambos com capital de um dos cônjuges, etc. Estes movimentos de capital, estes financiamentos sem prazos e sem juros, representados com mais ou menos rigor pelos intervenientes, são mais característicos da comunhão conjugal do que de outra sociedade ou de outra qualquer reunião de patrimónios. É assim que se forma uma espécie de conta corrente entre o património comum e os patrimónios próprios, uma conta que se fecha apenas no momento da partilha. No momento da partilha pode verificar-se que os movimentos de capital não se equilibraram espontaneamente e que algum património ficou enriquecido enquanto outro ficou correlativamente empobrecido. A técnica das compensações visa restabelecer as forças dos patrimónios, reconstituir o seu valor, corrigindo os desequilíbrios da conta corrente através do reconhecimento de créditos de compensação em favor de cada património empobrecido”.
E quanto ao pagamento de dívidas, escrevem: “quanto às dívidas dos cônjuges um ao outro, são pagas em primeiro lugar pela meação do cônjuge devedor no património comum e, não havendo bens comuns ou sendo estes insuficientes, pelos bens próprios do cônjuge devedor (art. 1689º,3). Estas dívidas podem nascer, designadamente, da responsabilidade civil por administração de bens do outro cônjuge, intencionalmente prejudicial (art. 1681º,1) ou abusiva (art. 1681º,3). Ou porque o património de um cônjuge pagou dívidas que cabiam a ambos; a lei, neste caso, reconhece um crédito do cônjuge prejudicado sobre o outro, pelo valor que o primeiro pagou além do que lhe competia (art. 167º,1)”.
E podemos parar por aqui com as citações, pois pensamos que o que ficou dito já basta para dar total razão ao recorrente.
Já vimos que existe acordo entre as partes quanto a que o passivo comum foi todo pago e já não existe.
Porém, o cabeça de casal veio alegar justamente uma das situações que acabámos de descrever como dando origem a compensação: disse ele que as dívidas do casal (as 4 verbas do passivo) foram integralmente pagas por si, pelo que ele passou a ser credor da interessada AA, por metade do valor global do passivo comum.
Na conferência de interessados, como vimos, o Tribunal a quo decidiu que esta questão, de saber se existe o alegado direito de crédito do cabeça de casal sobre a interessada AA, sendo controvertida, deverá ser apreciada em acção autónoma.
Porém, não o podemos acompanhar.
O argumento usado, recordemos, foi o de que “os elementos constantes dos autos não nos permitem, com segurança, saber a que respeitam os créditos e que fundos foram usados para os liquidar, remetendo-se os interessados para os meios comuns a fim de discutirem tal questão, matéria que pela complexidade e prova a produzir não se compadece com caracter incidental dos presentes autos (cf. art 1106, n.º 3, do CPC, a contrario)”.
Em primeiro lugar, esta é uma questão central do presente inventário, pois, como também já vimos, por força do art. 1689º,3 CC, a existir o crédito alegado pelo cabeça de casal, ele deverá ser pago pela meação da interessada AA no património comum; e não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, deverá ser pago pelos bens próprios daquela.
E este será necessariamente, um dos assuntos que deverão ser submetidos à conferência de interessados (art. 1111º CPC).
Daí que a questão que foi trazida a esta Relação tenha, e bem, levado o Tribunal recorrido a fixar efeito suspensivo ao recurso, pois, por força do art. 1123º,3 CPC, a questão a ser apreciada afectará inelutavelmente a utilidade prática das diligências a levar a cabo na conferência de interessados, podendo e devendo a mesma ser reaberta, se necessário for.
Em segundo lugar, vejamos a lógica de retirar um aspecto central ao presente inventário e relegá-lo para os meios comuns.
Primeiro, o regime legal.
Como se pode ler em “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “o novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes. A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.
A sede legal do regime consta dos arts. 1092º e 1093º CPC, aditados pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2020.
Os autores supracitados escrevem: “os arts. 1092º e 1093º contêm regras verdadeiramente nucleares do regime do inventário, pois que é do disposto neles que depende o que pode ser decidido e o que, apesar de ser relevante para a realização da partilha, não vai ser decidido no processo de inventário. A diferença entre o art. 1092º e o art. 1093º é a seguinte:
- O art. 1092º refere-se às questões prejudiciais essenciais, que são aquelas que respeitam à admissibilidade do inventário e à definição dos direitos dos interessados na partilha (cf. art. 1092º,1,b);- O art. 1093º respeita às questões prejudiciais não essenciais, isto é, àquelas que se referem à determinação do activo e do passivo do património a partilhar (cf. art. 1093º,1);
No caso destes autos estamos perante situação que se subsume a este art. 1093º.
O nº 1 dispõe: “se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns”.
Como se escreve no CPC anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “este artigo (1092º) cura da interferência na marcha do inventário de acções pendentes e da necessidade de suspender a instância com fundamento na discussão externa de questões prejudiciais respeitantes à admissibilidade do inventário ou à definição de direitos de interessados directos na partilha. Fora deste círculo (e da eventualidade de haver nascituros interessados, nos termos do nº 1, alínea c)), em que se verifica uma prejudicialidade forte, tendo em conta o reflexo que a decisão a proferir noutra acção é susceptível de produzir no processo de inventário, é de aplicar o regime do art. 1093º”.
E acrescentam: “A conexão com o art. 1093º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra acção pendente ou não deva ser incidentalmente decidido no inventário”.
E ainda, em anotação ao art. 1093º,1 CPC, “qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.
Esta é a regra.
Mas como sempre no mundo do Direito, não há regra sem excepções.
E os mesmos autores explicam: “todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cfr. art. 1091º,1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º,1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns. Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.
E, mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.
Este é o quadro legal.
E a esta luz, não vemos que se justifique, no caso concreto, a remessa para os meios comuns.
A questão controvertida consiste em saber quem liquidou o montante em dívida dos empréstimos contraídos junto da Banca pelo casal. Ora, pela própria natureza dos factos em apreciação, não vemos qual seja a dificuldade probatória que possa surgir. Supomos que a prova documental, já produzida ou a produzir, seja suficiente para permitir apurar esse único facto ainda em falta. E se mesmo assim a questão não ficar resolvida, é sempre possível o recurso a outros meios de prova. Recordemos que Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, na obra supra citada, fls. 12, afirmam o seguinte: “muito relevante no processo de inventário pode ser o uso pelo juiz dos poderes inquisitórios em matéria probatória (art. 411º). Assim, as diligências probatórias a realizar no processo poderão não ser apenas as que tenham sido requeridas pelas partes, dado que o juiz deve exercer os seus poderes inquisitórios em matéria probatória de modo a decidir, com o indispensável rigor e ponderação, todas as questões controvertidas. Através destes poderes inquisitórios podem ser superadas as limitações que constam do art. 293º,1, aplicáveis aos incidentes do processo de inventário por força do disposto no art. 1091º,1”.
Assim, em conclusão, não se pode manter a decisão que remeteu as partes para os meios comuns quanto à questão controvertida supra identificada, porque tal questão pode e deve ser apreciada dentro dos autos de inventário. Assim, o Tribunal recorrido deverá decidir a mesma, se considerar que todos os elementos probatórios já se encontram nos autos, ou então convidar as partes a apresentar mais prova, se assim o entender."
[MTS]
[MTS]