"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/11/2023

Jurisprudência 2023 (55)


Venda executiva;
ónus ou limitação; anulação


I. O sumário de RC 28/2/2023 (1714/13.0TBCTB-C.C1) é o seguinte:

1. - No âmbito da invalidade da venda executiva, a que alude o disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., relativamente a direitos transmitidos com sujeição a ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, integram-se os denominados vícios do direito, por oposição aos vícios da coisa (os que afetam a coisa em si mesma).

2. - É suscetível de constituir tais «vícios do direito», entre outros, a existência de direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é o caso da locação, a que é equiparável, para este efeito, a existência de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a funcionar no imóvel objeto da venda executiva.

3. - Tendo sido anunciado, no âmbito da venda executiva em leilão eletrónico, que o imóvel a vender «é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)», em razão do que o recorrente, enquanto proponente, formou a convicção de que eram os próprios executados quem se encontrava a usar o espaço e a explorar o estabelecimento, pelo que o imóvel lhe seria entregue, consumada a venda, livre e devoluto de pessoas e bens, ocorre um deficitário e inexato quadro informativo, veiculado no anúncio da venda, se vem posteriormente a verificar-se, pago já o preço, que quem explora o estabelecimento a funcionar no imóvel é um terceiro, mediante contrato de cessão de exploração do estabelecimento, celebrado anteriormente à execução, com convencionada cedência da exploração «a título definitivo».

4. - Num tal caso, não é exigível ao proponente aceitar a venda com a dita limitação, que não havia sido tomada em consideração, por falta de publicitação, antes lhe assistindo o direito de anulação da venda executiva, com restituição do que haja pago a título de preço e impostos sobre a transmissão.

5. - Cabendo aos tribunais, no exercício do poder/função judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes esperam daqueles uma conduta pautada pela boa-fé, verdade e transparência, em clima de confiança, em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, devendo ser protegidas as expetativas por eles legitimamente criadas em resultado de comportamentos dos poderes do Estado – ou de quem os auxilia nos termos legalmente previstos –, aos quais se exige previsibilidade de atuação, de acordo com o princípio constitucional do Estado de Direito democrático, nas vertentes dos subprincípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Da anulação da venda executiva de imóvel por meio de leilão eletrónico

Invoca o Recorrente (proponente na venda executiva de imóvel empreendida nos autos, tendo já depositado o respetivo preço, no âmbito de leilão eletrónico em que foi licitante) ter sido induzido em erro (conclusão 11.ª) pelo teor da publicidade da venda efetuada pelo AE.

Nesse horizonte, refere que, enquanto comprador, foi levado a pensar que quem ocupava o café, que labora no rés-do-chão do imóvel, eram os executados (DD, BB e AA), a título pessoal, pelo que, por efeito da venda forçada (venda judicial), estes teriam de abandonar o imóvel e o próprio café.

Porém, refere o Apelante – como o fizera já anteriormente, por requerimento, enquanto proponente com preço pago – que surgiu «inesperadamente um novo interveniente no processo», dotado de contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, como resulta de documento escrito (datado de 01/08/2012 e, entretanto, junto ao processo), isto é, a aludida «A..., Unipessoal Lda.», a montante da qual se situa ainda outra sociedade, «B... Lda.», desconhecendo-se a que título e legitimidade surge esta como cedente (conclusões 12.ª e 13.ª).

Certo é, a seu ver, que o anúncio é completamente omisso face a estes factos e oculta duas sociedades comerciais com interesses no imóvel e que o desvalorizam, termos em que conclui que a expressão usada pelo AE na publicitação da venda, no sentido de o imóvel/estabelecimento de café estar ocupado/explorado pelos executados, é vaga, não esclarecendo a que título ocupam, de modo que o proponente conhecesse a situação real do bem (cfr. conclusão 15.ª). Em suma, na sua ótica, existe «manifesta desconformidade entre o que foi anunciado e o adjudicado» (cfr. parte final da motivação recursiva), existindo «ónus ou limitação que não foi tomada em consideração», excedendo «os limites inerentes aos direitos da mesma categoria», com essencialidade para a formação da decisão de comprar (conclusão 18.ª).

A esta argumentação – já vertida, no essencial, em anterior(es) requerimento(s), como referido – não foi sensível a 1.ª instância, em sintonia, aliás, com posição vertida a respeito pelo AE.

O Tribunal a quo fundamentou o seu juízo incidental de improcedência, à luz do invocado preceito do art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv. – e considerando que a venda «foi devidamente anunciada no portal respectivo», em cuja publicidade foi mencionado que «O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)» –, pelo seguinte modo:

«(…) perante o teor da publicitação devidamente realizada qualquer cidadão médio, colocado nas circunstâncias concretas que se colocavam ao ora arguente, teria de contar que a aquisição a efectuar iria ser confrontado com uma exploração comercial do café. Bastava uma leitura atenta do anúncio em causa. Ademais, o contrato de cessão de exploração não confere ao seu titular qualquer direito real, mas sim um mero direito obrigacionalSendo o contrato de cessão de exploração anterior à penhora determinante da venda executiva, tal venda não implica a caducidade deste contrato ainda que o bem vendido estivesse onerado por hipoteca registada anteriormente a favor do adquirente. Da tipicidade dos direitos reais e seu numerus clausus resulta a impossibilidade da aplicação analógica ao contrato de cessão de exploração do n.º 2 do art. 824.º do Código Civil por tal contrato conferir ao seu titular um direito de crédito, obrigacional e não real.

Situação diferente é se o ora arguente, na pele de proponente, não atentou devidamente nesse anúncio – sibi imputet.

A circunstância do proponente, qualquer que ele seja, apresentar uma proposta para o efeito de venda por negociação acarreta a necessária eventual responsabilização pela mesma, desde que seja a vencedora e, como tal, aceite pelo agente de execução, sendo certo que o anúncio foi inequívoco, não podendo a circunstância de existir um estabelecimento comercial (tendo ele sido anunciado) determinar a anulação da venda, desde logo porque não há desconformidade entre o objecto anunciado e o objecto real, sendo certo que aquele referido ónus só não foi tomado em consideração pelo comprador por falta de precaução.

Com efeito, para que a situação em causa se enquadrasse na estatuição contida no art. 838.º do Código de Processo Civil e levasse à anulação da venda teríamos que concluir pela existência da apontada desconformidade ou pela existência de algum ónus ou limitação que fossem desconhecidos até aí. E essa situação não se verificou no caso vertente.» (destaques aditados).

Apreciação da Relação:

Só em parte se concorda com a argumentação do Tribunal recorrido, discordando-se – diga-se desde já e com todo o respeito devido – do sentido decisório adotado, pelos motivos que a seguir se exporão.

Vejamos.

Dispõe o art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv. (norma convocada pelo Julgador e pelo Recorrente, por se encontrar no centro da discussão e decisão da matéria recursiva) que:

«Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.» (itálico aditado).

Também o art.º 905.º do CCiv. – a propósito da venda civil de bens onerados – se refere a direitos transmitidos sujeitos a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria.

Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, a respeito desta norma de direito substantivo, está em causa «a existência de encargos ou ónus que incidam sobre o direito transmitido (vícios do direito) e não a existência de vícios da coisa». Neste âmbito, exemplificam tais Autores serem vícios do direito «um usufruto, uma hipoteca, um privilégio por obrigação anterior que se venha a executar, um penhor, uma servidão, etc.», já não o sendo «os encargos ou ónus inerentes aos direitos da mesma categoria, como são as limitações legais ao direito de propriedade e as servidões legais. São estes os limites normais a que se refere o artigo» (Cfr. Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, p. 202.).

Mais adiante, prosseguem os mesmos Autores: «Cabem no âmbito do preceito, quer os direitos reais de gozo, quer os direitos reais de garantia, quer os próprios direitos pessoais sobre a coisa, desde que eficazes em relação ao comprador, como é a locação.» (Op. cit., p. 203.). [...]

Donde que bem se compreenda que um arrendamento, enquanto direito pessoal (de pendor obrigacional) sobre a coisa, se dotado de eficácia em relação ao comprador, possa caber na economia, quer do disposto no art.º 905.º do CCiv. (quanto à venda civil de bens onerados), que do art.º 838.º, n.º 1, primeira parte, do NCPCiv. (quanto à venda executiva inválida).

Em qualquer dos casos, com efeito, trata-se de um ónus ou, melhor, de uma limitação sobre o direito de propriedade que se pretende transmitir, visto que o direito de propriedade confere ao respetivo titular o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (cfr. art.º 1305.º do CCiv.).

Ora, é esse gozo pleno e exclusivo do direito de uso do proprietário que resulta limitado em caso de existência de um contrato de arrendamento, visto o imóvel estar na disponibilidade/uso do arrendatário, e não do proprietário, por todo o tempo do contrato, sendo até sabido e compreensível que, em termos de valor comercial, é desvantajoso alienar um imóvel que se encontre arrendado (mormente se for prolongado o prazo do arrendamento), implicando um preço de venda normalmente inferior em comparação com um imóvel semelhante que se encontre devoluto e, como tal, pronto a ser habitado.

No caso, apurou-se que no rés-do-chão do imóvel objeto da venda executiva se encontra instalado um estabelecimento de café, o que não era desconhecido do Recorrente/proponente.

Acontece, todavia, que esse estabelecimento comercial (de café), que funciona no imóvel, foi objeto, já em agosto de 2012 – sabido que, pela numeração dos autos, a execução é posterior, por ter sido intentada no ano seguinte (2013) –, de um denominado «contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial», sendo declarante cedente uma sociedade e cessionário um terceiro (a dita «A...»), constando mesmo do documento referente a tal contrato, adquirido entretanto para os autos por junção da parte executada, que a cessão de exploração é, declaradamente, «a título definitivo» (---), sem que resulte esclarecido qual o direito da cedente, sobre o espaço físico/imóvel, que lhe permite manter ali instalado o estabelecimento, designadamente, se um direito de arrendamento, como tal anterior à execução e à penhora.

Como quer que seja, tal anterior existente cessão de exploração «definitiva» de estabelecimento, que funciona, ocupando-o, no rés-do-chão do imóvel em causa, impondo-se ao adquirente/proponente, constitui clara limitação ao direito de propriedade objeto da transmissão em venda executiva, como tal, em prejuízo do aqui Recorrente.

Mas sabia este – ou deveria saber – da existência de tal limitação ao direito de propriedade sob transmissão forçada/executiva? Ao ponto de se poder concluir que apenas de si próprio (da sua incúria/negligência, como comprador) se poderá queixar? [---]

Vem provado, no caso, sem controvérsia, que o AE decidiu efetuar a venda do imóvel por meio de leilão eletrónico, tendo sido anunciado o mesmo através da respetiva plataforma, onde foi explicitado, para além da «Descrição» do prédio, mencionando-se ser o mesmo «composto por cave, rés-do-chão e forro, servindo de comércio e habitação», que «O imóvel é actualmente explorado pelos executados para comércio (café)».

Daqui tem de retirar-se, em sede interpretativa (---), que foi anunciado que o imóvel em venda executiva era explorado pelos próprios executados para comércio, encontrando-se, por isso, na disponibilidade – sem prejuízo da penhora e dos respetivos efeitos – deles (executados), enquanto ainda proprietários do bem a vender.

Não poderia extrair-se de um tal enunciado que o imóvel era usado por terceiro(s), que o estabelecimento comercial de café ali instalado era pertença de outrem, que o rés-do-chão estava no gozo (“ocupado”, nas palavras do Recorrente) de outrem, que não os executados.

Jamais naquela publicitação se alude a qualquer cessão de exploração do estabelecimento ou ao uso por terceiros (designadamente, sociedades/pessoas coletivas), muito menos a uma cessão a título «definitivo», posto apenas se inculcar a ideia de que o gozo/exploração era levado a cabo pelos ditos executados.

Ora, como parece evidente, é totalmente diferente para um potencial comprador, mesmo que em venda executiva, que o imóvel penhorado e em venda esteja a ser usado pelos executados ou, em vez disso, esteja no gozo ou fruição de um terceiro, mormente por via de contrato de cessão de exploração de estabelecimento celebrado anteriormente à penhora e à própria execução. [...]

É certo que também se provou constar do anúncio ser da «única e exclusiva responsabilidade do proponente a verificação do estado do bem imóvel a adquirir», pelo que «deverá assegurar-se que o bem imóvel corresponde às suas expectativas e se encontra nas condições desejadas». Assim, «O imóvel é vendido no estado em que se encontra, pelo que os interessados na aquisição que devem proceder à verificação prévia do estado do bem. A falta desta verificação por parte do proponente não determina, nos termos legais, a anulação da venda, não poderá assim ser motivo invocável nulidade de venda» (destaques aditados).

Ora, esta alusão – em jeito, numa certa perspetivação, de “quase cláusula de exclusão de responsabilidade” e, na ótica inversa, de não invocabilidade de vícios (---) – deve entender-se como reportada ao estado do bem imóvel, a ser vendido no estado em que se encontra, o que logo nos remete para o estado físico do prédio, tratando-se de uma casa/edificação, isto é, os chamados «vícios da coisa», e não para, já no plano jurídico, os denominados «vícios do direito».

Acresce que a dita «verificação prévia» (ou a falta dela) não poderia, logicamente, reportar-se à mencionada exploração do imóvel pelos executados para comércio (café), posto nessa parte ter o âmbito/conteúdo informativo sido claro/expresso, não deixando margem para dúvidas ou acrescidas indagações/verificações pelos interessados na compra e venda executiva (---). Assim, era também um âmbito informativo esgotante quanto ao aspeto em discussão.

Em suma, está verificado deficit de informação em sede de anúncio da venda, não sendo a situação imputável ao Recorrente/proponente, que não incumpriu nenhum dever de indagação/verificação, não podendo a sua conduta considerar-se negligente, antes se constatando a ocorrência de um vício do direito quanto à coisa vendida, resultante de uma limitação que, não tomada em consideração, excede os limites normais inerentes ao direito de propriedade objeto de transmissão.

Dúvidas não temos, pois, de que, com esta informação veiculada ao tempo do anúncio da venda executiva, se inculcava a ideia de que o imóvel era vendido sem a limitação aludida, pelo que era razoável/legítimo que um proponente normal concluísse que a exploração do estabelecimento de café (por parte dos próprios executados) cessaria com a venda, termos esses em que o imóvel seria entregue ao adquirente livre de quem procedia a tal exploração e dos bens/elementos para tanto implicados (livre de pessoas e bens).

Assim, o destinatário da informação – veiculada pelos serviços mandatados, de auxílio à Justiça na venda executiva – podia criar, justificadamente, a expetativa, sem mais, de que o imóvel lhe seria entregue sem ocorrência de tal vício do direito. [...]

Assim sendo, a expetativa do ora Recorrente que, uma vez criada e legitimamente justificada, lhe foi inviabilizada (em termos de concretização da venda, nos moldes pretendidos), tem agora de ser protegida quanto ao dito vício do direito, no quadro da invalidade da transmissão, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos (como subprincípios concretizadores do Estado de Direito democrático – art.º 2.º da CRPort.).

Por isso, a decisão recorrida não pode ser mantida, antes havendo de reconhecer-se razão ao Recorrente, determinando-se, em substituição ao Tribunal a quo, a anulação da venda, ao abrigo do disposto no art.º 838.º, n.º 1, do NCPCiv., com as legais consequências, implicando, como peticionado, a restituição ao Apelante das quantias que haja pago – a título de preço e imposto(s) incidente(s) sobre a venda inválida, se suportado(s) (---)."

[MTS]