"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/11/2023

Jurisprudência 2023 (44)


Despacho interlocutório; nulidade;
recurso; admissibilidade*


1. O sumário de RL 23/2/2023 (4544/15.1T8VIS-B.L1-8) é o seguinte:

I - A decisão do tribunal de 1.ª instância que indefere o “pedido de reconhecimento de nulidade de um despacho”, não admite recurso ordinário, só podendo ser impugnada, reunidos que estejam os pressupostos gerais da recorribilidade, no âmbito do recurso que venha a ser interposto da decisão final;

II – Tal decisão insere-se no regular andamento do processo executivo e no controlo da legalidade dos actos nele praticados, não constituindo uma decisão proferida em “procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da acção executiva” (art.º 853.º, n.º 1 do CPC), nem integrando qualquer uma das previsões das diversas alíneas do n.º 2 do art.º 853.º do CPC;

III – A impugnação dessa decisão com o recurso da decisão final não é absolutamente inútil, ainda que o seu provimento possa determinar a anulação de alguns actos, por ser esse o risco próprio ou normal dos recursos diferidos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como se referiu, cumpre decidir se deve ser mantido o despacho que não admitiu o recurso interposto pelos executados/reclamantes.

Adianta-se, desde já, que, em nosso entender, o despacho reclamado deve ser mantido, reiterando-se aqui todos os argumentos nele já expendidos e que aqui passamos a transcrever:

«Está em causa a admissibilidade de um recurso em processo executivo, pelo que releva o disposto nos art.ºs 852.º e 853.º, ambos do CPC.

De acordo com o primeiro artigo referido, «aos recursos de apelação e de revista de decisões proferidas no processo executivo são aplicáveis as disposições reguladoras do processo de declaração e o disposto nos artigos seguintes».

Já o segundo artigo mencionado dispõe, no seu n.º 1, sobre os recursos de apelação interpostos de decisões proferidas em procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da acção executiva, sendo que os respectivos n.ºs 2 e 3 definem, taxativamente, as decisões suceptíveis de recurso de apelação proferidas no âmbito do processo executivo stricto sensu.

É, portanto, inequívoco que não cabe apelação de decisões que não possam subsumir-se na previsão dos n.ºs 2 e 3 do art.º 853.º.

No caso dos autos, estamos perante uma decisão proferida na tramitação do processo executivo em sentido próprio, tendo os recorrentes invocado o disposto no art.º 644.º, n.º 2 al. h) (na verdade, os recorrentes escrevem “n.º 1” mas terá sido lapso de escrita), aplicável ex vi do art.º 853.º, n.º 2 al. a).

Já o despacho que admitiu o recurso socorreu-se dos art.ºs 853.º, n.º 1 e 644.º, n.º 1 al. a) do CPC.

Antes de mais, importa ter presente que o despacho de 06.07.2018 só poderia ser atacado por via de recurso e não mediante reclamação, como o fizeram os executados, atento o disposto no art.º 615.º, n.º 4 do CPC.

Contrariamente ao que os executados defendem no seu requerimento de 09.12.2022, as nulidades processuais não estão, como é óbvio, sujeitas ao regime das nulidades dos negócios jurídicos, nomeadamente, o previsto no art.º 286.º do CC, antes seguindo um regime próprio, previsto na lei adjectiva.

Desta forma, a reclamação deduzida pelos executados no dia 31.08.2018 nem sequer deveria ter sido apreciada.

Não é esse, no entanto, o fundamento do recurso, o que nos impede de conhecer desta questão (como é consabido, do disposto nos art.ºs 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, decorre que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial) e nos compele a verificar se a decisão que recaiu sobre essa reclamação é recorrível.

Ora, a decisão em crise limitou-se a conhecer da arguição de uma nulidade do processo executivo, o que não constitui uma decisão proferida em “procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da acção executiva”, pelo que não se enquadra na previsão do referido n.º 1 do art.º 853.º.

Designadamente, a nulidade arguida pelos executados não constitui um incidente da instância e a decisão sobre a mesma proferida não se traduz numa decisão que ponha termo a um incidente, mas sim numa decisão que se insere no regular andamento do processo e no controlo da legalidade dos actos nele praticados.

Tal foi, por exemplo, o entendimento seguido no acórdão da Relação de Évora, de 13.02.2012, disponível em www.dgsi.pt, onde se sumariou «As decisões intercalares que não estejam abrangidas por alguma das previsões das diversas alíneas do n.º 2 do art.º 691º do CPC, como acontece, entre outros, com o despacho que defira ou indefira a nulidade da citação, são decisões que não admitem recurso imediato, embora, reunindo os pressupostos gerais da recorribilidade, possam ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente venha a ser interposto da decisão final. A decisão sobre a validade ou invalidade da citação, de iniciativa oficiosa ou suscitada por requerimento do réu, não constitui uma decisão que ponha termo a um incidente, para os efeitos da al. j) do n.º 2 do art.º 691º do CPC, por não estarmos perante nenhum incidente da instância, mas sim perante o normal exercício dos poderes do julgador tendentes a assegurar o regular andamento do processo e o pleno respeito pela legalidade nos actos nele praticados».

Também no que concerne ao disposto no art.º 644.º, n.º 2 al. h) - onde se dispõe caber recurso de apelação das «decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil» - carecem os recorrentes e o tribunal a quo de razão.

Tem-se entendido que o recurso cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil é, apenas, aquele cujo resultado, seja ele qual for, devido à impugnação apenas com o recurso da decisão final, já não pode ter qualquer eficácia dentro do processo, mas não aquele cujo provimento possibilite a anulação de alguns actos, por ser esse o risco próprio ou normal dos recursos diferidos.

Conforme ensina Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7.ª ed., 2022,  p. 256 e segs., «com este preceito o legislador abriu a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral do diferimento da impugnação para o recurso da decisão final, nos termos do n.º 3, importe absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha a ser obtida. O advérbio (“absolutamente”) assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador, em termos idênticos ao que se previa no art.º 734.º, n.º 1, al. c), do CPC de 1961, para efeitos de determinar, ou não, a subida imediata do agravo. Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutória não passará de uma "vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado».

No caso em apreço, não se verifica, manifestamente, o pressuposto exigido pela alínea h) do n.º 2 do art.º 644.º, posto que, no eventual recurso da decisão final, pode ser colocado em causa o despacho que conheceu da nulidade arguida pelos executados, sem que se verifique qualquer inutilidade do mesmo, nos termos supra mencionados.

De resto, é, também, manifesto que a decisão em causa - que, repete-se, conheceu de uma nulidade processual - não se enquadra em nenhuma outra alínea do n.º 2, nem no n.º 3 do art.º 853.º e, menos ainda, no art.º 644.º, n.º 1 al. a) citado pelo tribunal recorrido, pelo que só pode concluir-se pela inadmissibilidade de recurso autónomo».

Os reclamantes não deduziram qualquer novo argumento no sentido da admissibilidade do recurso.

Assim, por razões de economia processual e a fim de evitar repetições desnecessárias, aderimos e reiteramos os fundamentos já constantes da decisão singular proferida pelo relator, que entendemos ser de confirmar.

Conclui-se, pois, que a decisão proferida pelo tribunal a quo não é admissível."

3. [Comentário] Importa ter presente que o que estava em causa não era o recurso de um despacho sobre uma nulidade processual (algo que, por vezes, não está claro no despacho do Relator acima transcrito), mas antes o recurso de um despacho (proferido em 12/9/2019) que indeferiu a arguição da nulidade de um outro despacho (datado de 6/7/2018). Isto faz toda a diferença, porque é isto que afasta a aplicabilidade ao caso do disposto no art. 630.º, n.º 2, CPC.

O despacho do Relator refere correctamente que, segundo o disposto no art. 615.º, n.º 4, CPC, o meio adequado de impugnação do despacho de 6/7/2018 era, não a reclamação, mas o recurso. É claro que a parte se equivocou, mas, pelos vistos, o mesmo sucedeu com o tribunal de 1.ª instância (que deveria ter convolado a errada reclamação em recurso). Nesta base, talvez seja de vir a admitir, no momento apropriado, o recurso, embora, para não facultar à parte dois graus de jurisdição quando só deveria ter um, o mais razoável seja que o recurso incida sobre a alegada nulidade do despacho de 6/7/2018, e não sobre o equivocado despacho de 12/9/2019. 

MTS