"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/11/2023

Jurisprudência 2023 (43)


Imunidade de jurisdição;
âmbito; efeitos*


1. O sumário de RL 23/2/2023 (1034/22.0T8LSB.L1-6) é o seguinte:

I. Ligado à soberania dos Estados encontra-se o ius legationis, ou seja, o direito de representação internacional, quer na sua componente passiva – direito de receber missões diplomáticas, quer na sua componente activa – direito de enviar missões diplomáticas.

II. Assumindo a ré funções de Conselheira numa Embaixada goza, sem quaisquer restrições, de todos os direitos que lhe são conferidos pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, e consequentemente, de imunidade de jurisdição civil do Estado acreditador.

III. Considera-se que pessoas com funções de representação do Estado no território de outro Estado, por forma a garantir a liberdade e independência da sua actuação, necessitam de especial protecção; protecção essa que se efectiva por via das imunidades pessoais.

IV. A Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aberta à assinatura em Nova York em 17 de Janeiro de 2005, afasta da sua aplicação as missões diplomáticas.

V. Não é de aplicar o disposto no art.º 32º nº2 da Convenção de Viena e, logo, permitir afastar a imunidade de jurisdição, quando o pedido indemnizatório não está directamente relacionado com o processo de divórcio que correu termos em Portugal, pois na acção de divórcio ambos acordaram a conversão em mútuo consentimento, o que desde logo afasta a possibilidade de discutir os fundamentos do divórcio litigioso, única circunstancia em que seria permitido ao recorrente invocar a violação dos deveres conjugais por parte da recorrida. No entanto, tal possibilidade só se circunscreveria aos fundamentos do divórcio e não com a possibilidade de poder formular contra a ré pedido indemnizatório, com base na actuação alegadamente ilícita da recorrida.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Questão a decidir:

O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

Importa assim, saber se, no caso concreto:

- Os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de uma acção indemnizatória em que se visa um agente diplomático estrangeiro, por alegados actos de violência doméstica praticados em território nacional e a acção de divórcio ter decorrido neste país. 

*

III. O Direito:

A questão a decidir prende-se em saber se é de manter a incompetência absoluta dos Tribunais portugueses, por ocorrência da inexistência in casu da verificação de competência internacional dos Tribunais portugueses para apreciar e decidir a presente acção. [...]

Porém, para aferir da competência na sua vertente internacional não basta a integração nos elementos de conexão nos termos supra aludidos, pois determina o art.º 59º do Código de Processo Civil que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

Donde, a actividade para determinar a competência exige que se averigue se existem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque prevalecem sobre os restantes critérios (cf. art.º 8.º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa).

O Tribunal recorrido na aferição de tal competência conclui, quanto a nós de forma acertada, que: «O Direito Internacional reconhece aos Estados direitos fundamentais, que derivam da sua qualidade de sujeitos de direito internacional, visando salvaguardar a sua soberania, elemento constitutivo do próprio Estado, que se expressa nomeadamente pelos poderes de jurisdição (no sentido normativo, administrativo ou jurisdicional), que em princípio têm aplicação no seu território. No entanto, esses direitos sofrem restrições, por força do costume internacional ou normas convencionais, constituindo a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros uma dessas restrições, imediatamente aplicável na ordem jurídica interna por força do disposto no artigo 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Importa atentar na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48 295 de 27 de Março de 1968. Nos termos do artigo 1.º, alínea e) da Convenção, a Ré será agente diplomática, atentas as funções que exerce. A Convenção prevê a imunidade de jurisdição penal, civil e administrativa, prevendo as respectivas excepções (artigo 31.º, 1) e a faculdade de renúncia a essa imunidade, que cabe ao Estado acreditante e tem de ser expressa (artigo 32.º). A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditador não o isenta da jurisdição do Estado acreditante (artigo 31.º, n.º 4 da Convenção). Assim, entendemos que se verifica incompetência internacional para a presente acção». [...]

Manifestamente no caso dos autos haverá que convocar a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, esta aprovada em Viena, em 18 de Abril de 1961, mas aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48 295 de 27 de Março de 1968, donde, diploma a considerar nos termos do art.º 59º do Código de Processo Civil. Tal diploma veio regular a imunidade não de jurisdição de um Estado em relação a outro, ainda que esteja subjacente um princípio idêntico, mas sim as imunidades diplomáticas. Logo, entendemos que não haverá que trazer à colação os actos de um Estado soberano, nomeadamente a distinção entre a imunidade absoluta, em relação aos actos jure imperii e a imunidade relativa, referente aos actos jure gestionis, ainda que relativamente às relações diplomáticas tal também poderá estar em causa (ver Geraldes de Carvalho in "Da Imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros" in Colectânea de Jurisprudência Ano X - Tomo 4 - página 33 e seguintes). Todavia, tem sido entendido que ainda que não esteja em causa a eventual actuação de um Estado soberano, nomeadamente os actos de actividade privada de um Estado, parece, por maioria de razão, dever aplicar-se aos actos de actividade privada dos agentes diplomáticos em Estado estrangeiro a distinção de absoluta e relativa (cf. Ac desta Relação de 25/01/2007, proc. nº 15/2007-6, in www.dgsi.pt).

No caso dos autos dúvidas não há que a ré assume a qualidade de agente sujeito à imunidade diplomática, pois por força das funções que exerce integra o conceito de agente diplomático, tal como se encontra especificado no artigo 1, alíneas a) a e) da Convenção de Viena, pois a ré assume as funções de Conselheira na Embaixada de E..., em Portugal, desde 25 de Julho de 2018, com renovação até 30 de Março de 2024, gozando sem quaisquer restrições de todos os direitos que lhe são conferidos pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, e consequentemente, de imunidade de jurisdição civil do Estado acreditador.

No preâmbulo da Convenção de Viena, que define a imunidade que se discute nesta acção, consigna-se que “a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas sim a de garantir o eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu caracter de representantes dos Estados”. Logo, tem sido entendido que as imunidades diplomáticas constituem, no plano internacional, imunidades pessoais ou ratione personae e, como tal, são absolutas, abrangendo todos os actos praticados pelo seu beneficiário (Simone da Costa Santos, in “Imunidades diplomáticas: a imunidade de jurisdição penal dos familiares” Mestrado em Ciências Policiais especialização em Criminologia e Investigação Criminal, 2017, disponível em www.comum.rcaap.pt). [...]

A Convenção de Viena de 1961, como fonte de direito diplomático, constitui um tratado multilateral e possui uma especial importância, já que é por via dele que as normas consuetudinárias ficam consolidadas, reduzidas a escrito, e encontram segurança jurídica, pois são elevadas a normas internacionais que vinculam os Estados que dela fazem parte. Esta Convenção foi complementada pela Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963, pela Convenção de Nova Iorque sobre Missões Especiais de 1969 e pela Convenção de Viena sobre a Representação dos Estados nas suas Relações com as Organizações Internacionais, de 1975. No seu conjunto, compõem o corpo normativo do exercício da actividade diplomática, pelo qual os Estados se regem.

O princípio da soberania estadual constitui o garante da independência do Estado e conduz ao princípio da igualdade soberana dos Estados, consagrado no art.º 2.º, n.º 1 da Carta das Nações Unidas. Cada Estado possui, desta forma, as suas próprias normas de direito interno, pelas quais o seu território e povo se regulam. E é, justamente, esta igualdade soberana entre Estados que confere e assegura a estabilidade das relações internacionais. Intrinsecamente ligado à soberania dos Estados encontra-se o ius legationis, ou seja, o direito de representação internacional, quer na sua componente passiva – direito de receber missões diplomáticas, quer na sua componente activa – direito de enviar missões diplomáticas (Vattel in “O direito das gentes” Editora Universidade de Brasília, disponível em www.passeidireto.com). A par deste haverá ainda que considerar como corolários da soberania do Estado, três grandes subprincípios: i) a jurisdição “prima facie” exclusiva sobre o território e pessoas que nele vivam permanentemente; ii) o dever de não ingerência na jurisdição exclusiva dos outros Estados; iii) a subordinação às obrigações decorrentes do direito consuetudinário e do direito dos tratados, nos quais o Estado seja parte.

É aqui que se insere a imunidade conferida à ré, afirmada em sede penal no âmbito do arquivamento na sequência da queixa-crime formulada pelo Autor, mas em que preside igualmente a mesma, reportada ao processo civil, pois estão em causa os mesmos fundamentos, os quais aliás, poderiam ser invocados no âmbito do pedido indemnizatório a ser formulado no processo-crime, por força do princípio da adesão previsto no art.º 71º do CPP. [...]

No caso dos autos está em causa a imunidade dita pessoal, que ao contrário da funcional não é erga omnes e está limitada no tempo, perdurando apenas enquanto se mantêm as funções. Pois considera-se que pessoas com funções de representação do Estado no território de outro Estado, por forma a garantir a liberdade e independência da sua actuação, necessitam de especial protecção; protecção essa que se efectiva por via das imunidades pessoais. Desta forma, a eventual responsabilidade criminal ou civil e consequente sujeição ao poder judicial do Estado acreditador deixam de constituir um constrangimento ao exercício livre e independente das funções que lhes cabem, não prejudicando o normal funcionamento das relações internacionais entre Estados. Logo, todos os actos cometidos antes e durante o exercício das funções, incluindo aqueles praticados sob “a veste privada”, estão abrangidos pelas imunidades, durante o período em que o agente diplomático exercer as suas funções oficiais, salvo as excepções previstas na Convenção, mormente o previsto no art.º 31º, a saber: a) – Uma acção real sobre imóvel privado situado no território do Estado acreditador, salvo se o agente diplomático o possuir por conta do Estado acreditante para os fins da missão; b) – Uma acção sucessória na qual o agente diplomático figura, a título privado e não em nome do Estado, como executor testamentário, administrador, herdeiro ou legatário; c) – Uma acção referente a qualquer actividade profissional ou comercial exercida pelo agente diplomático no Estado acreditador fora das suas funções oficiais.

No caso dos autos nenhuma das excepções é aplicável, dado que o Autor pretende assacar a responsabilidade por facto ilícito à ré, com a consequente obrigação de indemnizar o mesmo pelos danos morais sofridos, pelo que haverá que afirmar a imunidade, pois a imunidade de jurisdição civil do Estado acreditador assenta no facto de se considerar a Embaixada território do Estado acreditante, ou seja, in casu, E... (cfr. artigo 22º da Convenção), gozando a residência particular do agente diplomático da mesma inviolabilidade e protecção que os locais da missão (artigo 30º, n.º 1).

Por outro lado, em nada releva vir invocar a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aberta à assinatura em Nova York em 17 de Janeiro de 2005, pois esta não entrou em vigor em Portugal, vigorando sim a Convenção a que vemos fazendo referência. Porém, mesmo na Convenção das Nações Unidas convocada, ainda que considerada como direito constituendo, dispõe-se no Artigo 3º sob  a epígrafe “Privilégios e imunidades não afectados pela presente Convenção” que a “presente Convenção não afecta os privilégios e imunidades de que goza um Estado, ao abrigo do direito internacional, relativamente ao exercício das funções: a) Das suas missões diplomáticas, postos consulares, missões especiais, missões junto de organizações internacionais ou delegações junto de órgãos de organizações internacionais ou de conferências internacionais; e b) Das pessoas relacionadas com as mesmas.”. Logo, não seria de considerar aplicável no caso da ré, conselheira da Embaixada e sobre a qual E... veio afirmar quer a sua imunidade, quer ainda peremptoriamente a inexistência de renúncia à mesma.

Acresce que ao contrário do que parece transparecer das alegações do recorrente a imunidade não determina impunidade, pois no n.º 4 do artigo 31º da Convenção prevê-se que “a imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditador não o isenta da jurisdição do Estado acreditante”, pretende-se dizer que a imunidade da Recorrida relativamente à jurisdição civil do Estado Português não a isenta da jurisdição do Estado Espanhol, Estado acreditante.

Entende o recorrente igualmente que o Tribunal recorrido elaborou uma incorrecta interpretação da norma do artigo 32º, nº 3, da Convenção de Viena, pois foi a Ré que intentou, em Portugal, a acção de divórcio contra o ora Autor, pelo que não pode invocar nesta sede a imunidade de jurisdição. Defende assim, que o direito que o Autor pretende exercer na presente lide está intimamente relacionado com aquele casamento, prende-se, pois, com o apuramento da responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais, violação essa que configurou a prática de um crime de violência doméstica.

Sustenta igualmente que ainda que a convenção não explicite o que se entende por “reconvenção directamente ligada à acção principal”, não se poderá entender que tal expressão se reconduz à reconvenção prevista no direito processual civil português, na medida em que a reconvenção é um pedido deduzido pelo Réu contra o Autor na contestação, logo, dizer-se “directamente ligada à acção principal” seria uma contradição nos seus próprios termos. Defende que a interpretação correcta será entender-se a sobredita reconvenção, nos termos da Convenção, como qualquer pedido dirigido contra o Agente que goza da imunidade de jurisdição, relacionado com uma acção (principal) iniciada por este no Estado acreditador, pelo que tendo em conta que a Recorrida iniciou em Portugal o processo de divórcio, deverá entender-se que a mesma está agora impedida de invocar a imunidade de jurisdição para a presente acção, que está directamente relacionada àquela acção (principal). Defender-se o contrário, no entender do recorrente é actuar em abuso de direito.

O n.º 3 do artigo 32.º da Convenção dispõe que “se um agente diplomático ou uma pessoa que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo 37.º inicia uma acção judicial, não lhe será permitido invocar a imunidade de jurisdição no tocante a uma reconvenção directamente ligada à acção principal”.

É certo que a Ré/Recorrida instaurou em Portugal a acção de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais, acção esta que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Família e Menores de Lisboa, juiz 1, sob o número de processo 27280/18.2T8LSB. Por um lado, o recorrente sustenta na sua petição inicial que a interposição pela ré foi motivada pelo facto de ter sabido que o mesmo pretendia intentar tal acção, cuja demora no seu impulso inicial pelo próprio imputou ao pedido de apoio judiciário formulado pelo mesmo, porém, neste recurso parece defender que afinal a iniciativa partiu e foi livremente decidida pela recorrida. Por outro lado, olvida o recorrente que nada invoca o que terá motivado o pedido de divórcio pela recorrida, pois não juntou nem a petição inicial, nem eventualmente a contestação apresentada pelo Autor, réu naquela acção.

Todavia, em nada releva pretender invocar que esta acção constitui uma acção directamente relacionada com o processo de divórcio que correu termos, pois na acção de divórcio ambos acordaram a conversão em mútuo consentimento, o que desde logo afasta a possibilidade de discutir os fundamentos do divórcio litigioso, única circunstância em que seria permitido ao recorrente invocar a violação dos deveres conjugais por parte da recorrida. No entanto, tal possibilidade só se circunscreveria aos fundamentos do divórcio e não com a possibilidade de poder formular contra a ré pedido indemnizatório, com base na actuação alegadamente ilícita da recorrida. Do exposto, é manifesto que não é de aplicar o disposto no art.º 32º nº 3 da Convenção, afastando-se ainda a possibilidade de renuncia à imunidade, nos termos dos art.º 31º nº 3 e 32º nº 4 da Convenção de Viena, da dada a posição assumida nos autos pelo Estado acreditante.

Nestas condições o Tribunal Português é absolutamente incompetente em razão da nacionalidade para conhecer da causa, confirmando-se a decisão recorrida."

3. [Comentário] Salvo o devido respeito, a imunidade de jurisdição nada tem a ver com a competência internacional, dado que essa imunidade em nada contende com nenhum dos critérios de aferição da competência internacional, sejam eles de origem interna (como os que constam dos art. 62.º e 63.º CPC), sejam eles de origem não interna (como os que se encontram em vários Regulamentos europeus, sendo, aliás, por isso que nunca ninguém disse que estes Regulamentos têm por objecto a imunidade de jurisdição). A imunidade de jurisdição constitui, isso sim, uma excepção dilatória inominada.

Acresce que é precisamente por os tribunais de um Estado serem internacionalmente competentes para apreciar uma certa acção que se coloca o problema da imunidade de jurisdição. Se esses tribunais não forem internacionalmente competentes, o problema da imunidade de jurisdição nem sequer se coloca. Isto demonstra claramente que a competência internacional e a imunidade de jurisdição são coisas distintas.

MTS