"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/11/2023

Jurisprudência 2023 (59)


Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação


1. O sumário de RL 14/3/2023 (6694/21.6YIPRT.L1-7é o seguinte:

I. A autora podia recorrer ao procedimento de injunção porquanto a dívida emerge de transação comercial entre duas empresas (contrato de empreitada celebrado entre duas sociedades, sendo uma nas vestes de empreiteira e outra nas de dona da obra; o contrato de empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviços ex vi Artigo 1155º do Código Civil), independentemente do valor da dívida (cf. Artigo 10º, nº1, do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5).

II. Carece de fundamento a não admissão da utilização da injunção e do procedimento que lhe subjaz, decorrente da apresentação de oposição, a contratos que suscitem questões de resolução mais complexas (exceção dilatória inominada), designadamente porque:

i. A aferição de uma exceção dilatória inominada como a delimitada na decisão recorrida, ou de uma situação de erro na forma de processo não pode fazer-se por via do preenchimento de um conceito indeterminado de complexidade da causa;

ii. No que respeita ao regime instituído pelo DL 269/98, de 1.9, o procedimento de injunção foi pensado para permitir a obtenção de um título executivo por parte do credor de obrigações pecuniárias, de forma simples e célere, em situações em que estariam em causa baixos montantes, o que efetivamente apontava para a sua adequação a causas simples, mas tal conclusão não se impõe relativamente aos litígios abrangidos pelo campo de aplicação do DL 62/2013, na medida em que a experiência demonstra que as causas de maior valor tendem a revestir-se de maior complexidade, e que o legislador não podia ignorar tal tendência quando concebeu e aprovou o mencionado diploma;

iii. O mecanismo da adequação formal consagrado no art. 547.º, fornece as ferramentas necessárias à adequação da tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio;

iv. O convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção, e o posterior exercício do direito ao contraditório, eventualmente conjugados com as adaptações do processado tidas por convenientes, no tocante à forma dos articulados, ao momento da apresentação de provas, às provas admissíveis, e ao limite do número de testemunhas, obviarão a todas as dificuldades decorrentes de um eventual incremento da complexidade da causa, permitindo o prosseguimento da mesma sem prejuízo das garantias de defesa da requerida.
 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Relatório

TU, Lda instaurou procedimento de injunção, de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, contra RT, Lda, pedindo o pagamento da quantia de €6.430,35, funda a sua pretensão num contrato de empreitada.

Citada, deduziu a Requerida oposição, alegando, além do mais, execução defeituosa (do contrato de empreitada).

O tribunal a quo proferiu decisão com o seguinte dispositivo:

«Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga‑se procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo e, em consequência, decide-se absolver a Requerida da instância.»

Na fundamentação de tal decisão foi enunciado que:

«Voltando ao caso dos autos, impõe-se aferir da causa de pedir aposta no requerimento injuntivo e atentar se poderá estar em causa uma obrigação pecuniária emergente de contrato, perante as duas finalidades admitidas para as injunções.

Nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 21/04/2016 (disponível no site da dgsi), “o processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade....”

Ora, da análise da concreta questão controvertida em equação, resulta claro não estarmos, sem mais, perante o mero ou simples (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de empreitada descrito.

Efectivamente, o litígio reporta-se à discussão do invocado contrato de empreitada quer no se refere ao seu não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, não eliminação de desconformidades, pelo que urge ponderar e apreciar acerca da relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, divergindo estas quanto à existência e amplitude do imputado mútuo (in)cumprimento.

Consequentemente, facilmente se afere que a controvérsia em equação nos presentes autos está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade.

Significa, então, que estamos perante uso de forma indevida o procedimento de injunção, situação que configura uma excepção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.ºs 576º, nº 2 e 577º do Código de Processo Civil.

Por conseguinte não há sequer possibilidade de aproveitamento do processado, uma vez que dele resultaria uma flagrante diminuição das garantias de defesa dos requeridos (cfr. art.º 193º, nº 2 do CPC), em manifesta violação do princípio da igualdade, consagrado no art.º 4º do CPC.» [...]

Fundamentação de direito

Nos termos do Artigo 7º do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9., «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.»

Nos termos do Artigo 3º do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5.:

Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
(…)
b) «Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração;
(…)
d) «Empresa», uma entidade que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares;
(…)
h) «Montante devido», o montante em dívida que deveria ter sido pago no prazo indicado no contrato ou na lei, incluindo taxas, direitos ou encargos aplicáveis que constam da fatura.»

Artigo10.º
Procedimentos especiais

1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.

Conforme se refere em João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, pp. 255-256:

«A injunção (…) é a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 ou de transações comerciais, qualquer que seja o seu valor (art.º 7º RDOP; art.º 10º, nº1, DL 62/2013). (…) Para efeito de aplicação da injunção, considera-se transação comercial qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (art. 3º, al. b), DL 62/2013). O fornecimento de mercadorias ou a prestação de serviços contra remuneração inclui, por exemplo, a conceção e a execução de obras públicas e trabalhos de construção ou engenharia civil (consid. (11) Direct. 2011/7/EU), bem como a entrega de impressos a uma associação por uma sociedade de artes gráficas. Em contrapartida, o empréstimo de uma quantia não pode ser considerado uma transação comercial.»

Assim, conjugando os referidos regimes, infere-se que a autora/apelante podia recorrer ao procedimento de injunção porquanto a dívida emerge de transação comercial entre duas empresas (contrato de empreitada celebrado entre duas sociedades, sendo uma nas vestes de empreiteira e outra nas de dona da obra; o contrato de empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviços ex vi Artigo 1155º do Código Civil), independentemente do valor da dívida (cf. Artigo 10º, nº1, do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5).

Sendo o valor da dívida de €6.430,35 (inferior a metade da alçada da Relação, cf. Artigo 44º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26.8) e tendo a requerida deduzido oposição, a ação segue os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (Artigo 10º, nº4, do Decreto-lei n 62/3013, de 10.5), sendo os autos remetidos à distribuição (Artigo 16º, nº1, do Decreto-lei nº 269/98), prosseguindo com apreciação das exceções dilatórias ou nulidades e realização de julgamento (Artigos 3º e 4º do Decreto-Lei nº 269/98), sem prejuízo da prolação de despacho de aperfeiçoamento (Artigo 17º, nº2).

Não nos revemos na análise e decisão efetuada pelo tribunal a quo. Pelo contrário, acompanhamos integralmente a análise – pertinente para o caso em apreço – feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.5.2021, Diogo Ravara, 37398/20, de que extratamos o seguinte segmento:

«(…) em primeiro lugar, temos dificuldade em alcançar por que razão o Tribunal a quo considera que o vício que apelidou de exceção dilatória inominada não se enquadra no regime do erro na forma de processo (art.º 193º do CPC). [...]

Não deve, efetivamente, confundir-se a questão de fundo com a questão de forma: se o pedido for deduzido com base num direito que o autor não tem, embora tendo outro direito em que podia ter fundado um pedido diverso que desse lugar a uma forma de processo distinta, o erro está no pedido e não na forma de processo, pelo que a consequência a tirar é a improcedência da ação”.

Não obstante, a mencionada relação de conformidade entre a pretensão, ou seja, o pedido e a forma de processo pressupõe a interpretação destes no contexto da causa de pedir, tal como o autor ou requerente a configura.

Donde nos parece que a eventual desconformidade entre a forma de processo e a finalidade a que a mesma se destina haveria de ser enquadrada no âmbito da figura do erro na forma de processo.

Seja como for, e em segundo lugar, não cremos que a matéria invocada pelo réu ou demandado possa influir na adequação da injunção à tramitação da causa, na medida em que uma tal solução poderia em última análise habilitar o réu ou demandado a “provocar” o erro na forma de processo ou, no entendimento do Tribunal a quo e dos arestos neles mencionados, a exceção dilatória inominada, ainda que tal alegação se possa ancorar em factos totalmente falsos.

Por isso, concordamos inteiramente com PAULO DUARTE TEIXEIRA [nota omissa], quando afirma que ”…. o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes”.

[MTS]