"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/11/2023

Jurisprudência 2023 (47)


Acção de reivindicação; habilitação;
inutilidade superveniente da lide*


1. O sumário de RE 2/3/2023 (594/17.1T8ALR.E1) é o seguinte:

- A decisão proferida em incidente de habilitação de herdeiros não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de reconhecimento do direito e propriedade para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC).

- A decisão que habilita a Ré do lado ativo, do ponto de vista substantivo fá-lo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai.

- Logo, não há confusão (subjetiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, porque na mesma pessoa não se reúnem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868.º do Código Civil.

- É certo que a habilitação-incidente prevista nos artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil implica uma modificação da instância quanto às pessoas (artigo 262.º, alínea a), do CPC), substituindo uma das partes na relação jurídica processual, pelos seus sucessores.

- Embora do ponto de vista processual a habilitação da Ré a coloque numa aparente contradição de posições processuais, há que atender ao facto de haver na ação uma co-demandante cujo interesse na ação se mantém intocável.

- Não pode essa demandante ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir.

- Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do Código de Processo Civil (cfr. preâmbulo ao DL n.º 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.

- Não há impossibilidade ou inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo.

- Daí que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I

Em 29/12/2017 (…) e mulher (…) intentaram a presente ação contra (…), maior, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade, adquirido por usucapião, relativamente ao prédio urbano sito no concelho de Alpiarça que melhor identificam, outrora propriedade de (…), filho dos Autores e pai da Ré, falecido em 1986.

Usucapião essa decorrente da edificação duma moradia pelos Autores no formato unifamiliar, assente quer sobre aquele prédio quer sobre um outro contíguo dos AA., e na qual vieram a morar, entrando na sua posse ininterrupta e de boa fé, desde 1989.

Em 14/02/2018 a Ré apresentou contestação por exceção e impugnação. [...]

Em 19/10/2021 foi dado conhecimento ao processo do falecimento do Autor a 13/08/2021, tendo sido proferido despacho de suspensão da instância.

Habilitadas as herdeiras ([Co-]Autora e Ré) foi declarada cessada a suspensão e designada a data de 22/06/2022 para a audiência de julgamento (despacho de 08/03/2022).

Em 20/06/2022 veio a Ré deduzir articulado superveniente requerendo a extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, alegando que, a Ré, na qualidade de neta, foi habilitada herdeira legitimária do Autor (…), juntamente com a viúva deste, sua avó, a [Co-]Autora (…).

Desse modo a Ré enquanto herdeira do Autor, passou a ser titular, juntamente com a viúva daquele, dos direitos que o Autor falecido se arrogava na presente ação e, assim, passou também a ocupar a posição de Autora. E, uma vez que a herdeira já figura como Ré, não pode assumir ambas as vestes em simultâneo na mesma ação.

Assim, pediu a extinção da lide por confusão, nos termos do disposto no artigo 868.º do Código Civil, uma vez que ela Ré assume, por via da habilitação de herdeiros, a posição ativa e passiva na situação material controvertida.

E, também porque, passando a Ré a ser também Autora na ação, pelo facto superveniente que é o decesso de seu avô (Autor), ocorre uma manifesta impossibilidade superveniente da lide – artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

Em 17/10/2022, o tribunal a quo decidiu declarar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC. [...]

IV

Entendeu a decisão recorrida que:

“[u]ma vez que a sentença de habilitação já há muito se mostra transitada em julgado, procedem, assim, os argumentos da ré no sentido em que a respetiva habilitação nos autos para prosseguir a demanda do lado ativo, por virtude do falecimento do primitivo coautor, configura uma situação de impossibilidade superveniente da presente lide que, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC conduz à extinção da instância, que será declarada.

Por fim, resta referir que, contrariamente ao argumentado pela autora, presentemente, isto é, encontrando-se já a ré habilitada do lado ativo da ação, em substituição do primitivo coautor, os presentes autos nunca poderiam seguir os seus termos apenas com a autora do lado ativo, pois que a situação em litígio configura um caso de litisconsórcio necessário ativo, e não um caso de litisconsórcio voluntário como agora alegado pela autora.

Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 34.º do CPC que devem «ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.”

Por seu turno, a lei substantiva estabelece que carece do consentimento de ambos os cônjuges, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns, salvo se entre eles vigorar o regime da separação (artigo 1682.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Civil).

Ora, a autora e o decesso autor eram casados no regime da comunhão geral de bens, pelo que destinando-se a presente ação ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um bem imóvel, e existindo naturalmente o risco de, na sua improcedência, os autores ficarem sem esse bem no seu património, ação sempre teria de ser proposta – como foi – por ambos os cônjuges, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário.»

Vejamos, pois.

A decisão proferida em incidente de habilitação de herdeiros, no apenso D, não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de reconhecimento do direito e propriedade para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC) a decidir nestes autos.

Tal decisão limitou-se a julgar como habilitadas para prosseguirem os termos da demanda, as herdeiras do autor (…), no caso, … (Autora) e … (Ré).

Nessa habilitação a Ré (…) surge habilitada do lado ativo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai, pelo que, a esta herdeira não assiste o direito específico de propriedade sobre o bem em causa reclamado por seu pai, direito que subsiste na titularidade da herança indivisa.

Logo, não há confusão (subjetiva) de direitos e obrigações na sua pessoa, o que só acontece quando na mesma pessoa se reúnem as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, como previsto no artigo 868.º do Código Civil.

A habilitada (…) não alcança do ponto de vista substantivo uma indistinção de posições perante um mesmo objeto.

É certo que a habilitação-incidente prevista nos artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil implica uma modificação da instância quanto às pessoas (artigo 262.º, alínea a), do CPC), ou seja, provoca a substituição de uma das partes na relação jurídica processual em litígio, pelos seus sucessores. E que, do ponto de vista processual a posição da habilitada (…) coloca-a numa sobreposição de posições processuais aparentemente antagónicas.

Sucede que para além da habilitada (…) há mais uma requerente cujo interesse na ação se mantém intocável. E que no caso é a recorrente/Autora.

No caso concreto, não pode esta ver-se privada de deduzir e defender os direitos que relativamente ao imóvel, lhe possam porventura assistir, se se considerar que a habilitação da Ré (…) gera um quadro de “confusão legalmente inadmissível e que, como tal não pode subsistir”, como ponderou a sentença recorrida.

Atendendo à sempre que possível prevalência do fundo sobre a forma que decorre da filosofia do Código de Processo Civil (cfr. preâmbulo ao D-L n.º 329-A/95, de 12/12), importará questionar se, do ponto de vista substantivo, ou seja, numa apreciação de fundo, se gerou uma situação de impossibilidade superveniente da lide que deva conduzir à extinção da instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC.

A resposta que se impõe é negativa. Não se está perante essa impossibilidade de fundo.

Como bem refere a recorrente nas suas conclusões V. a IX.:

“[a] decisão a proferir a final, sendo a ação julgada procedente terá influência na proporção dos quinhões de cada uma das herdeiras. Isto porque reconhecida a usucapião da A. sobre esta figurará uma quota-parte superior pois que o prédio da R. fará parte da herança do dissolvido casal. Ao invés, prevalecendo a tese da decisão recorrida temos que o direito da A. ficará sempre prejudicado na medida em que se vê privada de partilhar o bem que lhe pertence por o ter adquirido por usucapião, conjuntamente com o seu falecido marido. Aqui se centra a questão basilar do presente recurso que assenta em determinar qual o património do dissolvido casal que deverá fazer parte da herança por óbito do falecido A. É que procedendo a presente ação a quota parte da A. é manifestamente superior à da R. que terá apenas direito ao quinhão hereditário em representação de seu pai, pré-falecido.”

Não pode haver impossibilidade ou inutilidade da lide quando a ação continua a ter interesse para uma co-demandante, por ser ainda possível satisfazer-se à pretensão que esta quer fazer valer no processo.

Daí que a jurisprudência venha a afirmar que só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes – nesse sentido o Acórdão do STJ de 17-11-2021 (Nuno Pinto de Oliveira), proc. n.º 391/17.4T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.

Entendimento que tem a nossa concordância.

Assim, tendo presente que a Ré (…) surge habilitada do lado ativo apenas como representante da herança indivisa por morte de seu pai, não como titular do direito subjetivo de que este se arroga, e que a ação continua a ter interesse para a co-demandante (…), não se verifica qualquer confusão de interesses nem impossibilidade que obste ao prosseguimento da lide.

Devendo a ação prosseguir."

*3. [Comentário] Compreende-se a solução, embora a mesma implique que a herança indivisa que resulta da morte do Co-Autor passe a ser representada pela Co-Autora e pela Ré.

A circunstância de haver mais do que um representante nunca exclui que possam existir discordâncias entre os representantes quanto ao modo de prosseguir os interesses do representado. Isso é ainda mais provável quando um dos representantes é simultaneamente Ré na acção.

Assim, embora nada haja a objectar a que a acção continue depois do falecimento do Co-autor, talvez se deva entender que a Ré se encontra, natura rerum, impossibilitada de assumir quaisquer poderes de representação da herança indivisa agora co-demandante. O princípio da dualidade das partes e o que talvez possa ser designado como a proibição do "processo consigo mesmo" justificam esta solução.

MTS