"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/11/2023

Jurisprudência 2023 (41)


Execução;
perda de benefício do prazo; fiador


1. O sumário de RP 9/2/2023 (3544/10.2TBVNG-B.P1) é o seguinte:

I - Na dívida liquidável em prestações, a perda do benefício do prazo prevista no art.º 781º do Código Civil quanto ao devedor não se estende ao fiador e demais garantes ou coobrigados do devedor, exceto se tiver sido convencionada pelas partes contratantes.

II -Com a perda do benefício do prazo não se confunde a constituição do fiador como principal pagador, nem a renúncia ao benefício da excussão prévia do património do devedor.

III - Se, na execução, a exequente liquida a responsabilidade do mutuário devedor alegando que o fiador responde na mesma medida daquele obrigado principal, mas vem a verificar-se, em sede de embargos de executado, que a medida responsabilidade deste é (significativamente) inferior à daquele, podendo mesmo não existir no momento da instauração da execução, e não tendo sido essa responsabilidade quantificada na fase introdutória da execução, não pode esta execução prosseguir contra ele, por iliquidez e inexigibilidade da obrigação exequenda.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A ação executiva para pagamento de quantia certa foi instaurada em 8.4.2010, contra o embargante, entre outros, designadamente o mutuário, peticionando-se a cobrança coerciva da quantia de €82.498,89, titulada pelos contratos de compra e venda e mútuo outorgados no dia 25.6.1999, conforme resulta dos factos provados. [...]

A fiança concretiza-se no facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respetivo credor (art.º 627º, n.º 1, do Código Civil).

A acessoriedade da fiança (ao contrário da subsidiariedade) faz parte da sua natureza; não pode ser afastada pelas partes. Como tal, a fiança fica subordinada e acompanha a obrigação afiançada, não podendo exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas (art.º 631º do Código Civil).

Dada a acessoriedade, nos casos típicos em que a obrigação do devedor principal é uma obrigação a termo certo e sabendo o fiador desde o início qual o momento de vencimento da obrigação principal, torna-se desnecessária a interpelação do fiador pelo credor para despoletar a aplicação plena do artigo 634º do Código Civil.

A figura da perda do benefício do prazo, que no art.º 779º do Código Civil aprioristicamente se tem por estabelecida a favor do devedor, está prevista no art.º 781º para o caso de dívida liquidável em duas ou mais prestações, posto que «a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas».

No entanto, nos termos do art.º 782º, tal perda não se estende aos coobrigados nem aos terceiros garantes do pagamento da dívida. Esta norma tem natureza supletiva. Vigora nesta matéria o princípio da liberdade contratual genericamente enunciado no art.º 405º do Código Civil. A inaplicabilidade aos fiadores da perda do benefício do prazo é afastada sempre que as partes convencionem de modo diverso. O mesmo é dizer que, não sendo convencionado o contrário, não vigora entre o credor e o fiador (como não vigora entre o credor e outros garantes ou coobrigados do devedor) a perda do benefício do prazo.

Vem sendo jurisprudência largamente maioritária que, mesmo quando contratualmente se estipule a perda a que alude o artigo 781º do Código Civil (relativa ao devedor), a mesma não é extensível aos garantes da obrigação que nesse contrato se vinculem, e ainda que, não obstante o regime do art.º 782º tenha natureza supletiva, podendo ser afastado pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º do Código Civil, tal não se deve inferir da simples declaração do fiador de que se constitui principal pagador das obrigações emergentes do contrato de mútuo para o mutuário. Nem, por outro lado, se deve dar um tal alcance à renúncia ao benefício de excussão prévia, a qual, bem diferente do benefício do prazo, significa tão só que o fiador se vinculou afastando convencionalmente aquele benefício previsto na lei. Daí que não é defensável a pretensão de que daquela renúncia se deduza a intenção de também afastar o benefício do prazo. [Nesse sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2007 e da Relação do Porto de 23.6.2015, 14.6.2016, 19.6. 2015, 21.2.2017 e 27.4.2017, todos in www.dgsi.pt.] [...]

Mesmo nas situações em que as partes tenham afastado, por convenção, o benefício do prazo pelo fiador (ou de outros garantes ou coobrigados), sempre se impõe que o credor que não queira ter a desvantagem de não ter cobertura da garantia para todo o crédito -- ou seja, a desvantagem resultante da ineficácia, quanto ao fiador, do vencimento da totalidade da dívida resultante do incumprimento de alguma prestação -- terá o ónus de informar o fiador da interpelação ao devedor. A interpelação consiste, como é sabido, no “acto pelo qual o credor comunica ao devedor a sua vontade de receber a prestação. É a reclamação do cumprimento dirigida pelo primeiro ao segundo” [Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, pág. 218.].

Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 7.6.2016 [Proc. 783/13.8TBLMG-A.C1, in www.dgsi.pt, seguindo, designadamente, na doutrina, a posição de Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, pág.s 946, 961 e 962 e jurisprudência citada, que aqui nós seguimos de perto.], o art.º 782º, sendo interpretado pela doutrina como um desvio à regra do artigo 634º, constitui, no que à fiança se refere, manifestação de um princípio geral: o de que não são extensivas ao fiador as modificações de prazo com que ele não conte ou com que não possa razoavelmente contar: “Daqui não resulta, releve-se, uma beneficiação do fiador, já que o que se pretende evitar é que seja responsável para além da medida do risco que assumiu. Assim sendo, se o fiador não for informado pelo credor do vencimento da obrigação, isto é, se não for colocado em condições de poder cumprir nos mesmos termos em que o pode fazer o devedor, daí não poderá resultar um aumento do risco do fiador, ou seja: o fiador, quando for, mais tarde, intimado para cumprir, não estará vinculado a mais do que aquilo que estaria se fosse esse o momento do vencimento da obrigação tornado possível pela interpelação”.

No caso sub judice, as partes (incluindo o fiador) não convencionaram o afastamento da aplicação do art.º 782º do Código Civil, ou seja, o benefício do prazo de que o embargante beneficia nos termos supletivos da lei. E assim, como muito bem se explicita na sentença recorrida, com alargada citação doutrinal e jurisprudencial, “(…) a perda do benefício do prazo operada quanto ao mutuário não é extensível aos fiadores, de tal forma que à exequente apenas assiste o direito de exigir dos mesmos o pagamento das prestações contratuais que se venceram (até à data do requerimento executivo), de acordo com os prazos de pagamento acordados, ainda que acrescidas dos juros de mora (a responsabilidade dos fiadores pela mora do mutuário não depende de interpelação, bastando-se com a mora dos mutuários).»

Deste modo, a liquidação da quantia exequenda poderá não ser a mesma para o mutuário e para os fiadores. Uma vez que a dívida é liquidável em prestações, faltando ao cumprimento de uma delas, aquele responde pela totalidade do capital mutuado, respetivos juros e outros encargos (ainda não pagos), assim se incluindo, por vencimento antecipado, tudo quanto deveria ser pago nas prestações futuras previstas no contrato. Já quanto aos fiadores, como não perdem o benefício do prazo, apenas são responsáveis pelo pagamento das prestações que se encontrarem vencidas e não pagas no momento da instauração da execução; não lhes é exigível o pagamento das prestações futuras, ainda não vencidas quanto a eles.

Resulta dos artigos 10º a 13º do requerimento executivo a liquidação pela exequente do capital em dívida, pelo que seja a quantia exequenda no valor de €53.469.65, como sendo respeitante ao primeiro contrato, e no valor €10.752,34 relativo ao segundo contrato, no total de €64.221,99, acrescidos de juros. Estes valores foram obtidos por aplicação do critério da perda do benefício do prazo, dado que ali se remete para as cláusulas 11ª e 7ª do primeiro contrato e do segundo contrato, respetivamente, onde consta o direito de o credor considerar vencido o empréstimo e imediatamente exigível toda a dívida, verificado que seja, entre outras situações alternativa, o incumprimento de prestações pecuniárias ou outra obrigação contratual.

A alegada responsabilidade dos fiadores pelo pagamento destes valores é reforçada ainda nos artigos 17º e 18º do requerimento executivo:

«17.º
Os executados BB e mulher CC constituíram-se fiadores de todas as obrigações emergentes dos contratos de mútuo com hipoteca que ora se executam, tendo renunciado expressamente ao benefício da excussão prévia – cf. Escrituras Públicas aludidas nos antecedentes n.ºs 1 e 2 e artigo 640.º alínea a) do Código Civil.

18.º
Os executados BB e mulher CC são, assim, igualmente responsáveis pela satisfação da quantia exequenda na mesma medida que o executado AA.»

Porém, já vimos que não é assim, que a responsabilidade dos fiadores está limitada ao capital, juros e despesas vencidos à data do requerimento executivo, sem contabilização do efeito da perda do benefício do prazo (vencimento das prestações futuras), aplicável apenas ao devedor, resultante daquele incumprimento de prestações nas datas contratualmente previstas.

Deveria, pois, reduzir-se a quantia exequenda da responsabilidade do embargante /fiador contabilizando as prestações regulares do mútuo vencidas e não pagas à data do requerimento executivo e os juros de mora relativos a cada uma delas, sem prejuízo de posterior ampliação em função do vencimento regular de novas prestações que não sejam pagas na respetiva data.

Acontece que, conforme alegado pela própria exequente, foi dado como provado (sem impugnação recursiva) que, no âmbito da execução (processo principal), foram vendidos/adjudicados, pelos preços de €45.000,00 e €4.000,00, os imóveis hipotecados em garantia dos créditos exequendos, conforme título de transmissão junto na execução em 21.2.2012, tendo sido liquidada provisoriamente a quantia exequenda remanescente em €46.258,22, conforme nota de 1.3.2012.

Entendeu o tribunal recorrido que, caso se imputasse aquele pagamento parcial no valor das prestações devidas até à data do requerimento inicial executivo, com a ficção da vigência do contrato, previsivelmente, não existiria naquela data do início da execução (8.4.2010), qualquer valor em dívida exigível ao embargante, enquanto fiador, sendo os valores já pagos suficientes para liquidar as prestações vencidas até abril de 2010, incluindo os juros de mora relativos a cada uma das prestações, devendo até admitir-se que o valor já recebido foi suficiente para liquidar algumas das prestações que se venceram depois da própria venda dos prédios.

É pacífico na doutrina e na jurisprudência que, a par de requisitos formais ou extrínsecos de exequibilidade, relacionados com o título executivo enquanto documento conferente de um grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva, existem requisitos, ditos intrínsecos, materiais ou substanciais, que também condicionam a exequibilidade do direito, inviabilizando, na sua falta, a satisfação coativa da obrigação. Tal ocorre, por exemplo, quando a prestação não seja certa, exigível e líquida ou ainda quando ocorre ato extintivo ou modificativo da obrigação. A falta, não suprida, de qualquer destas condições materiais da prestação --- tal como a ausência de outros requisitos do mesmo género --- obsta à exequibilidade e constitui fundamento legal de oposição à execução, nos termos do art.º 729º, nº 1, al. e) e 731º, como meio processual próprio e adequado de discussão e decisão.

Sem a verificação daqueles requisitos intrínsecos não é admissível a satisfação coativa da pretensão, como decorre, expressamente, do citado art.º 713º que, tendo como epígrafe requisitos da obrigação exequenda, refere que “a execução principia pelas diligências, a requerer pelo exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo”.

Quando não constem do título os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda, devem ser preenchidos pelo exequente através dos procedimentos previstos nos art.ºs 714º a 716º.

A regra é a de que a obrigação é exigível quando se encontre vencida.

Ora, os títulos executivos expressam a exequibilidade extrínseca da obrigação, sendo através da verificação dos seus requisitos que se afere a idoneidade do objeto da pretensão executiva. Por isso mesmo, o título executivo, assume a natureza de um pressuposto processual específico da ação executiva, constituindo um dos requisitos de admissibilidade da mesma.

A ocorrência da situação de incumprimento dos contratos que servem de título executivo não se encontra abrangida pelo âmbito de exequibilidade do título apresentado, tornando-o insuficiente para a execução. Traduz-se em factos ocorridos na fase de execução daqueles negócios jurídicos, os quais são, portanto, posteriores à própria formação dos dois títulos em causa e carece de ser devidamente alegada no requerimento executivo e submetida ao escrutínio dos executados, em obediência ao disposto no art.º 716º, nº 1, do Código de Processo Civil.

A exequente não liquidou, no requerimento executivo, a obrigação do embargante fiador, mas apenas a obrigação do mutuário, considerando indevidamente que o pagamento desta é também exigível àquele, pelo mesmo montante.

Os fundamentos das alegações da recorrente em nada afastam a probabilidade justificativa da decidida procedência dos embargos; ou seja, a exequente não negou e não deixou de admitir que a imputação na dívida exequenda dos quantitativos já obtidos na execução pela adjudicação dos dois imóveis hipotecados é suficiente para liquidar as prestações em dívida à data da instauração da execução. E optou por defender, no recurso, que a responsabilidade do fiador é igual à responsabilidade do devedor mutuário e que a execução prossiga quanto àquele pelo valor liquidado no requerimento inicial da execução, que inclui o vencimento antecipado das prestações futuras.

Com efeito, a exequente não só não liquidou a responsabilidade do embargante/fiador, como, nos termos do requerimento inicial da execução, lhe atribuiu um âmbito que está longe de corresponder à sua real responsabilidade, dado que não perdeu o benefício do prazo no cumprimento dos dois contratos cujo termo apenas terminaria com o pagamento da totalidade das prestações, no ano de 2029.

A forte probabilidade de se encontrarem liquidadas as prestações pelas quais o fiador poderia ser responsabilizado e o desajustamento, quanto às responsabilidades dos fiadores, dos fundamentos do requerimento executivo aos títulos dados à execução, geram manifesta inviabilidade da presente execução relativamente ao embargante, designadamente por iliquidez da obrigação do fiador e inexigibilidade, não supridas na fase introdutória da execução (art.ºs 713º, 729º, al. e) e 731º do Código de Processo Civil)."

[MTS]