"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/11/2023

Jurisprudência 2023 (53)


Advogado;
sigilo profissional; prova ilícita


1. O sumário de RC 8/3/2023 (392/19.8T9ACB.C1) é o seguinte: 

I – O Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece que a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca, princípio este que exige e impõe um dever de sigilo que encontra expressão no EOA e também em diversas normas de direito codificado, nomeadamente no Código de Processo Penal, com vista a acautelar as condições necessárias ao regular exercício daquelas funções.

II – O artigo 92.º, n.º 1, do EOA densifica as vertentes do dever de sigilo, estipulando que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

III – A comunicação electrónica entre cliente e advogado, através da qual aquele exerce o direito de aconselhamento em privado com o seu advogado e em que lhe presta as informações que considere úteis para a defesa dos seus interesses, beneficia de uma dupla tutela, pois está abrangida pelo dever de sigilo que recai sobre o advogado e respectivos colaboradores, previsto no artigo 92.º referido, e, além disso, beneficia da tutela do artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal

IV – As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular são nulas, como resulta, em primeira linha, do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa

V – A valoração, para efeitos de prova, de um email que traduz comunicação escrita entre arguida e o seu advogado, sem que a sua revelação a terceiros tenha sido autorizada pelos titulares do interesse juridicamente protegido, ou sem que tenha sido desenvolvido qualquer procedimento tendente ao levantamento do sigilo, é lesiva da privacidade da arguida enquanto autora daquela comunicação, respeita a questões com relevo jurídico, com implicações legais.

VI – A decisão que se funde, de modo essencial, na valoração de prova nula fica inquinada por nulidade que, nos termos do artigo 122.º do Código de Processo Penal, dá causa à invalidade do acto em que se verificar, bem como dos que dele dependerem e que a nulidade cometida possa afectar, salvando-se apenas os actos que possam ser aproveitados.

VII – A circunstância de aquela comunicação ter sido conhecida por inadvertido procedimento não tem a virtualidade de suprir as irregularidades resultantes da sua ilícita divulgação.

VIII – Compete ao tribunal conhecer oficiosamente as questões atinentes à prova proibida e obstar à sua produção.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A primeira questão a conhecer, posto que dela depende a apreciação de todas as demais, é a que se prende com a determinação da validade e eficácia da utilização, para efeitos de prova, do email a que alude o ponto 6 da matéria de facto, referido também na fundamentação do provado.

Numa primeira aproximação ao tema importa ter presente que os advogados são profissionais do foro que, para além do mais, têm por função aconselhar juridicamente os seus clientes e exercer o mandato forense, actuando em nome e por conta dos seus representados. Acautelando as condições necessárias ao regular exercício das suas funções, o Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, adiante designado por EOA) estabelece, no nº 1 do respetivo art. 97º, que a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca.

Esse princípio de confiança exige e impõe um dever de sigilo que encontra expressão no EOA e também em diversas normas de direito codificado, nomeadamente, no Código de Processo Penal. De resto, como vem sendo apontado pela jurisprudência dos tribunais superiores, o dever de sigilo que impende sobre os advogados decorre de razões de interesse e ordem pública porquanto subjazem ao exercício do respectivo múnus, além do interesse individual de cada um dos cidadãos que se socorre dos serviços de um advogado (garantia de confiança do cidadão na confidencialidade das informações que lhe transmite), interesses sociais e colectivos no exercício de uma advocacia livre, independente e responsável, enquanto vector fundamental da garantia de acesso ao direito e aos tribunais.

O art. 92º, nº 1, do EOA, densifica essas vertentes do dever de sigilo, estipulando que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, especificando depois, nas diversas alíneas, que esse dever de sigilo se estende:

 a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

 b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

 c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

 d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

 e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

 f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

Os números subsequentes delimitam de modo abrangente situações de onde decorre dever de sigilo, as condições em que este pode ser derrogado com recurso a mecanismos internos da Ordem dos Advogados e o âmbito da extensão do regime de sigilo aos colaboradores dos advogados, bem como a consequência da prática de actos com violação do segredo profissional, nos termos seguintes:

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

 3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

 4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

 5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

 6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

 7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

 8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

Como resulta do seu próprio teor, o email referido no facto nº 6 constitui comunicação electrónica entre cliente e advogado, estando em causa o direito do cliente a aconselhar-se em privado com o seu advogado e a prestar-lhe todas as informações que considere úteis para a defesa dos seus interesses. Essa comunicação está abrangida pelo dever de sigilo que recai sobre o advogado e respectivos colaboradores, para além de beneficiar da tutela do art. 126º, nº 3, do Código de Processo Penal, em cujos termos, ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. A nulidade prevista nesta norma decorre, aliás, em primeira linha, da própria Constituição da República Portuguesa, que no art. 32º, nº 8, dispõe expressamente que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

De acordo com o que resulta da sentença recorrida, aquele email chegou ao conhecimento da assistente por actuação da funcionária do escritório do advogado CC, que lho terá reencaminhado por lapso, posto que tal não deveria ter sucedido, não se destinando aquela comunicação a ser levada ao conhecimento da assistente.

Ora, a valoração, para efeitos de prova, de um email que traduz comunicação escrita entre a ora arguida e o seu advogado sem que a sua revelação a terceiros tenha sido autorizada pelos titulares do interesse juridicamente protegido ou sem que tenha sido desenvolvido qualquer procedimento tendente ao levantamento do sigilo, é lesivo da privacidade da arguida enquanto autora daquela comunicação, respeitante a questões com relevo jurídico, com implicações legais, e estabelecida no âmbito da relação cliente / advogado.

Por outro lado, o inadvertido procedimento que permitiu o conhecimento pela assistente daquela comunicação electrónica, de teor reservado, não tem a virtualidade de suprir qualquer das irregularidades resultantes da sua ilícita divulgação, sendo certo que nenhum procedimento processual foi desenvolvido para permitir a utilização daquela comunicação como meio de prova e não houve autorização para a sua divulgação por parte da ora arguida ou pelo seu advogado.

A comunicação electrónica em causa beneficia de uma dupla tutela. Desde logo, o modo de divulgação obriga à equiparação da obtenção do teor daquela comunicação a prova obtida mediante intromissão na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular, daí resultando nulidade, impossibilitando a sua utilização, conforme previsto no art. 126º, nº 3, do Código de Processo Penal. Concomitantemente, estando em causa factos referentes a assuntos profissionais transmitidos pelo cliente ao seu advogado, a situação cai na alçada da previsão do art. 92º, nº 1, al. a), do EOA, ficando a coberto do sigilo profissional que recai sobre o advogado e que vincula também os seus colaboradores (nº 7), não podendo fazer prova em juízo por força do previsto no nº 5 do mesmo artigo.

De resto, o problema poderá colocar-se também relativamente ao depoimento do advogado, na parte em que se reportar a comunicações transmitidas pela sua cliente.

Competia ao tribunal recorrido ter tomado oficioso conhecimento das questões atinentes à prova proibida, obstando à sua produção; mas não só não o fez como a decisão que veio a proferir se fundou de modo essencial na valoração dessa prova, ficando assim inquinada por nulidade que, nos termos do art. 122º do CPP, dá causa à invalidade do acto em que se verificar, bem como dos que dele dependerem e que a nulidade cometida possa afectar, salvando-se apenas os actos que possam ser aproveitados. Consequentemente, é inválida a sentença proferida pelo tribunal a quo, devendo esse mesmo tribunal proferir nova sentença em que desconsidere a prova proibida."

[MTS]