"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/02/2024

Jurisprudência 2023 (100)


Acção de revindicação; acção de demarcação
excepção de caso julgado*


1. O sumário de RC 20/4/2023 (204/21.2T8MMV.C1) é o seguinte:

i) A demarcação não visa a declaração do direito real, antes visa a determinação dos confins de um prédio: pressupõe uma incerteza, objectiva ou subjectiva, quanto aos limites materiais de determinado prédio, e pressupõe, igualmente, a contiguidade dos prédios;

ii) A incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios, pelo menos subjectivamente, pode resultar do insucesso de antecedente acção de reivindicação;

iii) A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito;

iv) No caso, a primeira decisão proferida pelo Julgado de Paz, em típica acção de reivindicação, não funciona como pressuposto necessário e indiscutível da segunda decisão a proferir nos presentes autos, como acção de demarcação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Verificação da excepção/autoridade de caso julgado.

2.1. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Sobre a excepção do caso julgado versa o artigo 581.º, do Código de Processo Civil [...]. 

O caso julgado constitui uma excepção dilatória, isto é, constitui um impedimento ao conhecimento do mérito da causa e dita a absolvição da instância – artigos 576.º, n.os 1 e 2, e 577.º, alínea i), do Código de Processo Civil.

A verificação do caso julgado passa pelo preenchimento cumulativo de três pressupostos, tal como decorre do acima transcrito artigo 581.º, do Código de Processo Civil: a identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir. Daqui resulta, em termos práticos, que a excepção de caso julgado tem lugar quando os sujeitos e o objecto de uma acção já definitivamente decidida se repetem em nova acção. [...]

Embora comungue da mesma finalidade, a saber a segurança jurídica, a excepção de caso julgado distingue-se da chamada autoridade de caso julgado.

A autoridade de caso julgado visa evitar que uma relação jurídica objecto de uma decisão transitada em julgado seja novamente apreciada, quiçá de modo diferente, o que conduziria a uma ofensa à segurança e estabilidade jurídicas. Todavia, diferentemente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado não depende da tríplice identidade entre sujeitos e objecto das acções em causa. [...]

Vertendo ao caso em apreço.

Lida a petição inicial que deu origem aos presentes autos, o requerimento inicial e a sentença proferida no âmbito do processo n.º 46/20..., verifica-se que há uma coincidência entre os sujeitos, a causa de pedir e parte dos pedidos:

  . a acção n.º 46/20... foi proposta por quem se arrogava proprietário do prédio misto inscrito na Conservatória do Registo Predial [...] contra os herdeiros (e mulher de um dos herdeiros) do proprietário do prédio urbano inscrito na matriz predial da Freguesia [...]. Por seu turno, a presente acção foi proposta pelo mesmo Autor enquanto proprietário do prédio misto inscrito na Conservatória do Registo Predial [...], tendo a acção sido proposta contra os actuais proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial da Freguesia [...]. Independentemente da coincidência entre as pessoas físicas (que, em parte, há), o que releva é que a acção foi proposta por e contra os proprietários dos mesmos prédios.

  . os pedidos, ainda que em parte elaborados de forma diferente, reconduzem-se, na maioria, aos mesmos. Com efeito, confrontando as pretensões do Autor em cada uma das acções conclui-se que estas são, em parte, idênticas, a saber:

1) reconhecimento da propriedade sobre o prédio melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial, com inclusão da parcela alegadamente usurpada;

2) consolidação das obras no telhado do anexo;

3) consolidação do muro, das ligações dos blocos de cimento às vigas, para impedir a saída de água para o prédio do Autor;

4) remoção da rede metálica de «malha-sol», que impede a limpeza e manutenção do aceiro/valeiro e provoca a acumulação de detritos;

5) remoção da vedação;

6) o pagamento de uma indemnização ao Autor.

Assim, os únicos novos pedidos feitos pelo Autor prendem-se com a restituição da parcela ocupada, o reconhecimento da linha de estrema por parte dos Réus e a demarcação por ambas as partes daquela estrema. [...]

  . De igual forma, a causa de pedir, ou seja, o fundamento da pretensão do Autor, é o mesmo nas duas acções. [...]

Verificada que está a identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedidos quanto à maioria dos pedidos apresentados pelo Autor em ambas as acções, tem-se por verificada, quanto a esses pedidos, a excepção de caso julgado, determinante da absolvição dos Réus da instância quanto aos mesmos.”.

O A. discorda, defendendo que a exigência cumulativa dos três indicados pressupostos (sujeitos, pedido e causa de pedir), no caso em apreço não coincidem com os do Proc.46/20... (que correu termos no Julgado de Paz ...), pois embora possa considerar-se que são os mesmos os sujeitos processuais, no que tange à sua “qualidade jurídica”, que é a mesma a causa de pedir, subjacente ao direito de propriedade do A., já quanto aos pedidos formulados, os mesmos são díspares em ambos os processos, porque no processo do Julgado de Paz formula um concreto e específico pedido do reconhecimento desse seu direito, mas incluindo nesse pedido o reconhecimento pelos RR da parcela que considera usurpada, nos presentes autos cinge-se específica e concretamente, ao reconhecimento pelos RR, excluindo desse concreto pedido o reconhecimento pelos RR da propriedade, do A. sobre a referida parcela, sendo os pedidos autónomos entre si (cfr. conclusões de recurso 1. a 18.).

Ou seja, das conclusões de recurso resulta que o recorrente não questiona a verificação de dois dos pressupostos legais atinentes à trilogia que integra o caso julgado, designadamente sujeitos e causa de pedir, residindo a sua divergência apenas quanto ao pressuposto respeitante ao pedido. E mesmo aqui, cinge a não verificação de tal pressuposto em relação aos pedidos mencionados no primeiro e segundo travessão da p.i.

Mas sem razão. Vejamos então.

No indicado processo que correu termos no Julgado de Paz o A. peticionou que fosse julgada procedente a acção e por via dela, serem os ora demandados condenados a:

- reconhecerem o demandante como único dono e legítimo possuidor do prédio descrito no artigo 1.º, incluindo a parcela de terreno usurpada, aludida e descrita na alínea f) do art. o 12º desta petição; [..]

- restituírem a   parte ilegitimamente ocupada.

- a pagarem ao demandante uma indemnização por danos não patrimoniais num montante nunca inferior a 5.000 €.

Como se constata, por comparação entre os pedidos, e como a 1ª instância justamente considerou e depois decidiu, os pedidos do 1º travessão a 6º, bem como o 10º, da p.i., são idênticos aos formulados na acção interposta no Julgado de Paz.

Incluindo o pedido do 7º travessão do presente processo, que corresponde ao 8º pedido da acção que correu termos no dito Julgado de Paz, e que assim fica coberto pela excepção do caso julgado e não, como se sentenciou na decisão recorrida, pela figura da autoridade do caso julgado.

O recorrente arrima-se na sua argumentação especificamente a uma diferença entre o seu 1º pedido formulado na acção do Julgado de Paz e o que peticionou nos 1º e 2º travessão da presente acção - porque no processo do Julgado de Paz formula um concreto e específico pedido do reconhecimento desse seu direito, mas incluindo nesse pedido o reconhecimento pelos RR da parcela que considera usurpada, nos presentes autos cinge-se específica e concretamente, ao reconhecimento pelos RR, excluindo desse concreto pedido o reconhecimento pelos RR da propriedade do A. sobre a referida parcela.

É de notar, desde logo, que está em jogo quer numa quer noutra acção o mesmo prédio e a mesma parcela de terreno alegadamente usurpada.

Torna-se, por isso, evidente que a construção jurídica do recorrente não passa de uma especiosidade argumentativa nebulosa - assente na ausência de um suposto pedido de reconhecimento pelos RR da propriedade do A. sobre a referida parcela - já que pedir que os RR sejam condenados a reconhecerem o A. como único dono e legítimo possuidor do prédio que identificaram, bem como a reconhecerem como parte integrante do referido prédio a parcela de terreno alegadamente usurpada, e descrita nos apontados artigos da p.i., pedidos formulados na presente acção, é a mesma coisa que pedir que os ora demandados fossem condenados a reconhecerem o demandante, ora A., como único dono e legítimo possuidor do mesmo prédio, descrito no art. 1º da p.i. da acção do Julgado de Paz,, incluindo a parcela de terreno usurpada, descrita na f) do art. 12º desta última petição apresentada no Julgado de Paz.  

Dado o exposto, só resta chancelar o discurso de direito da 1ª instância e confirmar o decido nesta parte, a ele se estendendo a excepção de caso julgado quanto ao pedido formulado na p.i. do presente processo sob o 7º travessão. 

E consequentemente julgar improcedente a apelação nesta parte. 

2.2. E na mesma sentença disse-se ainda que:

“Relativamente aos demais, surge, então, a questão de saber se estão, ou não, abrangidos pela autoridade de caso julgado.

O primeiro ponto a ter presente é o de que a autoridade de caso julgado não constitui uma excepção dilatória. Como explica o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-10-2021, processo n.º 511/20.1T8PDL-A.L1-7, «Verificada a autoridade do caso julgado de uma decisão de mérito que seja incompatível com o objeto a decidir posteriormente noutra ação, o seu alcance não pode deixar de se repercutir no próprio mérito desta, importando, nessa medida, a sua improcedência com a consequente absolvição do réu do pedido, diferentemente do que sucede no domínio da exceção dilatória de caso julgado, como tal incluída no artigo 577.º, alínea f), do C.P.C., cuja procedência determina a absolvição do réu da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), e 576.º, n.º 2, do mesmo Código».

Posto isto, considerando a configuração que o Autor dá à presente acção, entende-se que os três pedidos não abrangidos pela excepção de caso julgado, acabam por o ser pela autoridade de caso julgado.

Concretamente, estão em causa os pedidos de condenação dos Réus:

«A restituírem ao A. a parcela do seu terreno ilegitimamente ocupada pelos RR;

- A Reconhecerem que a linha da estrema entre o prédio rústico do A. e o prédio rústico dos RR. é definida por uma linha recta que acompanhando, sempre, a linha exterior Norte do muro de blocos e vigotas dos RR, ao longo de toda a extensão deste e segue após o fim do muro, prolongando-se para Poente, sempre em linha recta, até à Vala Nacional;

- A participarem e contribuírem para a Demarcação entre ambos os prédios, colocando-se, por acção conjunta de A. e RR, e fixando-se um marco em cimento, de tamanho acima dos três metros, na sequência da referida linha recta proveniente da face externa Norte do muro de blocos dos RR. e por sobre esta, numa localização o mais aproximada possível da margem da Vala Nacional, de modo a que não fique sujeito aos aluviões que poderão alterar a sua posição/verticalidade».

Em primeiro lugar, a restituição da parcela alegadamente ocupada pelos Réus e onde se encontra a vedação, é uma decorrência do segundo pedido feito pelo Autor na presente acção e que, como já se viu, por coincidir com o primeiro pedido feito no processo n.º 46/20..., está abrangido pela força de caso julgado. Uma vez que a restituição de determinado bem é uma consequência do reconhecimento da propriedade e de que outra pessoa o ocupou (artigo 1311.º, do Código Civil), verifica-se uma dependência lógica entre o pedido de restituição e o pedido de reconhecimento da propriedade.

Em segundo lugar, os pedidos de reconhecimento da propriedade e de demarcação, além da repetição daquele relativamente ao primeiro pedido, estão intrinsecamente ligados à colocação pelos Réus de uma vedação de rede metálica de «malha-sol» desde o final do muro de blocos em cimento até à ... (artigos 21.º a 26.º, da petição inicial), sendo que um dos pedidos do Autor, recorde-se, era, precisamente, a retirada daquela vedação. Este pedido de retirada da vedação, em relação ao qual os Réus terão de ser absolvidos por força da excepção do caso julgado, assenta na alegação de que os Réus ao colocarem aquela vedação invadiram o terreno do Autor.

Ora, os pedidos de reconhecimento da propriedade, de restituição da parcela ocupada pelos Réus e da colocação de marcos, na medida em que dizem respeito, precisamente, à parcela em que está colocada a vedação cujo pedido de retirada já foi julgado, são uma decorrência daquilo que já foi analisado no processo n.º 46/20..., estando, necessariamente, este Tribunal vinculado à decisão ali tomada.

Veja-se: a procedência dos pedidos de reconhecimento da propriedade e de restituição pressuporia que o Tribunal, antes de mais, considerasse que a vedação havia invadido o terreno do Autor e, por conseguinte, que, por violação do respectivo direito de propriedade, havia de ser retirada, tendo os Réus de reconhecer que a parcela em que a vedação estava, afinal, pertencia ao Autor (artigo 1311.º, do Código Civil).

Por seu turno, tendo em conta o concreto local em que o Autor pretende que seja feita a demarcação, a ser o seu pedido procedente, o mesmo colidiria com a existência da vedação colocada pelos Réus, já que, na versão dos factos do Autor, esta está no seu terreno. Ou seja, o Julgado de Paz teria julgado improcedente o pedido de retirada da vedação, por não se ter provado que está no terreno do Autor, e agora este Tribunal, caso apreciasse o pedido de demarcação, a julgá-lo procedente, poderia vir a definir a estrema num local do qual decorreria que, afinal, a vedação, efectivamente, estava na propriedade do Autor.

Tendo em conta o encadeamento destes pedidos de reconhecimento da propriedade, de restituição e de demarcação com a relação jurídica já apreciada, em termos definitivos, pelo Julgado de Paz, fica este Tribunal vinculado ao resultado do processo n.º 46/20..., razão pela qual os Réus terão de ser absolvidos do pedido quanto aos mesmos.”.

O A. dissente, defendendo que nada obsta a que seja apreciado o pedido de reconhecimento do direito de propriedade do A. fundado nos títulos que exibe e no contexto dos mesmos considerar-se que o pedido do A. de reconhecimento pelo RR do direito de propriedade daquele e o do seu direito à demarcação, não estão, de nenhum modo, dependentes da autoridade do caso julgado (cfr. conclusões de recurso 19. a 29.).

Concordamos com o apelante.

Os pedidos formulados no 8º e 9º travessão da p.i., da presente acção, são atinentes à peticionada demarcação entre ambos os prédios, que é realidade jurídica diferente de um típico pedido de reivindicação. Lembre-se o que caracteriza a acção de reivindicação de propriedade e a acção de demarcação.

Na acção de reivindicação o proprietário exige de qualquer possuidor o reconhecimento do seu direito e a consequente entrega do que lhe pertence (art. 1311º, nº 1 do CC). È uma acção real, condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respectiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta). O pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.

A acção de demarcação é uma acção pessoal e não real, porque não tem como objectivo a declaração do direito real, mas apenas definir as estremas entre dois prédios contíguos, propriedade de donos distintos, perante o estado de indefinição/incerteza das respectivas estremas. O direito de propriedade do autor e réu sobre os respectivos prédios, a demarcar, não integra a causa de pedir da acção de demarcação, mas funciona como mera condição de legitimidade activa (autor) e passiva (réu) para a acção de demarcação (nas palavras do Ac. do STJ de 29.6.00, BMJ 499º, pág. 294, “a qualidade de proprietário de (um dado terreno ou prédio) invocada pelo autor, é apenas condição da sua legitimatio ad causam”).

Como é entendimento comum, a causa de pedir na acção de demarcação é complexa, e desdobra-se na existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são duvidosas ou se tornaram duvidosas, não integrando a causa de pedir o facto que originou o invocado direito de propriedade. O pedido na acção de demarcação é a fixação da linha divisória entre os prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos. [...]

Assentando o pedido em causa nos arts. 1353º e 1354º do CC, que dispõem que o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles, a demarcação é feita de conformidade com os títulos, pela posse, por outro meio de prova, ou, se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

Por consequência, na acção de demarcação, as partes sujeitam-se a que a linha divisória seja a que defende uma ou outra, designadamente a defendida pelo autor mais ou menos em seu favor ou mais ou menos a favor do réu (vide Ac. Rel. Coimbra, de 14.3.2023, Proc.106/21.2T8OLR-A, no indicado sítio). [...]

Do exposto, resulta que não haja, nesta parte, razão jurídica para se falar em excepção de caso julgado (faltam os requisitos da identidade de causa de pedir e pedido).

Quanto à autoridade de caso julgado, propugnada pela decisão recorrida, também entendemos que tal figura não se verifica. [...]

No nosso caso, isso não se verifica, pois a decisão proferida pelo Julgado de Paz, a primeira decisão, não funciona como pressuposto necessário e indiscutível da decisão a proferir nos presentes autos, a segunda decisão. Nada nos autoriza a concluir que naquele processo houve pronúncia e decisão sobre demarcação entre os 2 prédios em jogo, demarcação que é o objecto do presente processo."


*3. [Comentário] a) A situação apreciada pelo acórdão da RC apresenta-se algo confusa, mas, segundo se percebe, o problema é o seguinte:

-- Numa anterior acção proposta num Julgado de Paz, foi formulado, entre outros, "um concreto e específico pedido do reconhecimento desse seu direito [de propriedade sobre o prédio], mas incluindo nesse pedido o reconhecimento pelos RR. da propriedade da parcela terreno que considera usurpada";

-- Na actual acção pede-se, além do mais, que os Réus sejam condenados a 

"-- reconhecerem que a linha da estrema entre o prédio rústico do A. e o prédio rústico dos RR é definida por uma linha recta que acompanhando, sempre, a linha exterior Norte do muro de blocos e vigotas dos RR, ao longo de toda a extensão deste e segue após o fim do muro, prolongando-se para Poente, sempre em linha recta, até à Vala Nacional;

-- participarem e contribuírem para a Demarcação entre ambos os prédios, colocando-se, por acção conjunta de A. e RR, e fixando-se um marco em cimento, de tamanho acima dos três metros, na sequência da referida linha recta proveniente da face externa Norte do muro de blocos dos RR e por sobre esta, numa localização o mais aproximada possível da margem da Vala Nacional, de modo a que não fique sujeito aos aluviões que poderão alterar a sua posição/verticalidade".

Em acrescento, cabe referir que o autor recorrente alega o seguinte:

"6. Enquanto no Processo do Julgado de Paz formula um concreto e específico pedido do reconhecimento desse seu direito, mas incluindo nesse pedido o reconhecimento pelos RR. da propriedade da parcela terreno que considera usurpada;

7. No primeiro Pedido que formula nos presentes autos, cinge-se específica e concretamente, ao reconhecimento pelos RR. do seu direito de propriedade, (do A.), sobre o prédio, apresentando os competentes títulos dos quais resulta a presunção da existência desse direito na sua esfera jurídica;

8. Excluindo, desse, concreto pedido – o primeiro – o reconhecimento pelos RR. da propriedade, (do A.) sobre a referida parcela".

E que a própria RC afirmou que:

"É de notar, desde logo, que está em jogo quer numa quer noutra acção o mesmo prédio e a mesma parcela de terreno alegadamente usurpada."

Tudo isto dá a entender que o autor "trocou" o "reconhecimento pelos RR. da propriedade da parcela terreno que considera usurpada" por uma demarcação do seu prédio que comporta essa mesma parcela(ou, pelo menos, parte dela).  A segunda acção foi proposta -- como se afirma no n.º ii) do sumário -- depois do "insucesso de antecedente acção de reivindicação"

 b) Posto isto, não se percebe -- aliás, qualquer que tivesse sido o sentido da decisão proferida pelo Julgado de Paz -- o que se pode discutir, em termos de demarcação das estremas dos prédios, na presente acção. Das duas, uma:

-- Ou essa sentença terminou com o reconhecimento da propriedade do autor, incluindo a "propriedade da parcela de terreno que [o autor] considera usurpada"; 

-- Ou essa sentença não reconheceu a propriedade do autor sobre a "parcela de terreno que [o autor] considera usurpada"

Em nenhum dos casos é fácil aceitar uma posterior acção de demarcação: no primeiro caso, porque isso significa admitir uma sentença proferida numa acção de reivindicação de conteúdo indeterminado; no segundo, porque não tem sentido discutir a demarcação entre dois prédios (ou entre parcelas de dois prédios) depois de a reivindicação sobre um deles (ou sobre a parcela de um deles) ter sido considerada improcedente.

c) Por fim cabe referir o que no próprio acórdão se transcreve como sendo a posição de Antunes Varela sobre a acção de demarcação:

"Nesta matéria de distinção entre a acção de reivindicação e a de demarcação, ensina Antunes Varela (em Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Ed., pág. 199), que, essencialmente, na primeira estarmos perante um “conflito acerca do título” e na segunda estarmos perante um “conflito de prédios”. Assim, se “as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que a medição é feita, ou, mesmo em relação à usucapião, se não se discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação”.

Posto isto, a dificuldade consiste mesmo em admitir que a segunda acção possa ser qualificada como uma acção de demarcação. Depois de na primeira acção não se ter reconhecido ao Autor nenhum "título de aquisição" sobre a parcela de terreno "usurpada", como admitir que se possa qualificar como sendo uma acção de demarcação algo que pressupõe esse mesmo título? Como resulta com clareza do trecho de Antunes Varela (e ao contrário de uma orientação difusa de que o acórdão parece partilhar), a acção de demarcação não é aquela em que não se discute o título de aquisição por o mesmo ser irrelevante, mas antes aquela em que não se discute esse título porque se pressupõe a sua existência. 

MTS


Corrigenda: na terceira linha a contar do fim substituiu-se "reivindicação" por "demarcação".