I. A afectação da pessoa do ponto de vista funcional, qualificado como “dano biológico”, determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial futuro, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.
II. Para a quantificação do “dano biológico”, na vertente de dano patrimonial futuro, são convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do CC, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita, pois o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico”, na ponderação casuística.
III. Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de modo a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se, assim, um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua dignidade e liberdade, correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, com consequências extrapatrimoniais. Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.
IV. Por isso, os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados.
O acórdão recorrido estimou os danos não patrimoniais em € 27.500,00, e a Ré/recorrente reclama apenas a quantia de € 24.000,00, enquanto o Autor/recorrente preconiza o montante fixado na sentença, ou seja, € 40.000,00.
Para a valoração equitativa dos danos não patrimoniais, relevam os factos provados descritos nos pontos 15 a 40, 43, 51 a 64, 73.
Comprova-se que em consequência do acidente, o Autor teve as seguintes lesões: Fractura cominutiva da rótula direita, exposta de grau I; Escoriações no nariz, no sobrolho e na zona do queixo; Ferimentos no cotovelo direito, com ferida corto-contusa; Escoriações no joelho esquerdo, no ombro do ombro direito; Corte no cotovelo direito.
E ficou com as seguintes sequelas: a) - Uma cicatriz cirúrgica na linha média da face anterior do joelho direito de 13 cm; b) - Um aumento do diâmetro da rótula direita (dta- 8 cm; esq – 6 cm);c)- Uma atrofia da coxa de 2 cm – 51/53; d) - Dor à palpação da rotula – Zoeller positivo; plaina positivo; e) - Flexão/extensão do joelho completa, mas dor no extremo arco de movimento da flexão; f) - Exigência de esforços acrescidos na atividade profissional do Autor.
Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas ( 4/6/2015 e 30/9/2016), a um total de 60 sessões de fisioterapia, de forma dolorosa. Gozava de boa saúde e participava em provas oficiais de BTT.
O Autor, que tinha 33 anos e 6 meses na data do acidente, é portador de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 6 pontos; Quantum doloris fixável no grau 4/7; Dano estético Permanente fixável no grau 3/7; Repercussão Permanente na Actividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7.
A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante (natureza mista).
A doutrina e a jurisprudência têm teorizado sobre os modos de expressão do dano não patrimonial, distinguindo-se, como mais significativos, o chamado "quantum doloris”, ou seja, as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária; o “dano estético”, o “prejuízo de afirmação pessoal”, dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes, o prejuízo da “saúde geral e longevidade, que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar, o “pretium juventutis”.
Porém, como já em 2005 escreveu o aqui Relator em “Notas Sobre Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação”, Revista do CEJ 2º Semestre 2005, Número 3, pág.58 e segs, a propósito das várias vertentes do dano não patrimonial:
“Embora sem rigor sistemático, é patente uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento.
Na doutrina e jurisprudência italianas começou a emergir na década de setenta a noção de “dano pessoal”, incorporando todos os danos que lesam a estrutura psicossomática do ser humano, e mais recentemente com a definição conceitual de “dano existencial”, visando abarcar os danos que não sendo estritamente morais originam consequências não patrimoniais (…).
Pretende-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais.
Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”.
Partindo desta concepção e como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial ( arts.496 nº 3 e 494 do CC ), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, sendo certo que o seguro de responsabilidade civil é também um elemento a ter em conta, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.
Desde alguns anos que a jurisprudência vem afirmando que os padrões de indemnização têm de evoluir, acompanhando os tempos modernos, chegando-se a enfatizar que não se poderia manter uma tradição miserabilista, sob pena dos tribunais não estarem a acompanhar a evolução da vida, causando prejuízos irreparáveis aos lesados em acidentes de viação.
Neste contexto, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados em aplicação da Directiva do Conselho, 84/5 de 30/12/83 (Segunda Directiva-Seguros), aos seus constantes aumentos e dos respectivos prémios, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação.
Considerando os factos provados, seguindo este critério de orientação e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados, em juízo de equidade, o valor de € 40.000,00, actualizado nesta data, mostra-se adequado e proporcional.
Em resumo, improcede a revista da Ré e procede a do Autor, fixando-se o valor global da indemnização em € 135.171,83, sendo:
- € 15.171,83 a título de dano patrimonial pela perda de rendimento entre a data do acidente (03 de Junho de 2015) e o momento da cura/consolidação das lesões (25 de Novembro de 2016), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
- € 80.000,00, a título dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, com juros de mora à taxa legal, desde a presente data.
- € 40.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, com juros de mora, à taxa legal, desde a presente data.
Importa referir que, uma vez actualizada nesta data a indemnização quanto ao dano patrimonial futuro e dano não patrimonial, os juros de mora só podem vencer-se a partir do presente acórdão, por força do AUJ nº4/202 de 9/5/2002 (“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”).
Daqui resulta, como tem sublinhado a jurisprudência (cf., por todos, Ac STJ de 152/2022, proc nº 899/19), em www dgsi.) ser incompatível a fixação de taxa de juros de mora desde a citação em cumulação com atualização da indemnização em função da taxa de inflação (correção monetária)."
[MTS]