"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/02/2024

Jurisprudência 2023 (107)


Dano moral;
quantificação


1. O sumário de STJ 9/5/2023 (7509/19.0T8PRT.P1.S1) é o seguinte:

I. A afectação da pessoa do ponto de vista funcional, qualificado como “dano biológico”, determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial futuro, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.

II. Para a quantificação do “dano biológico”, na vertente de dano patrimonial futuro, são convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do CC, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita,  pois o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico”, na ponderação casuística.

III. Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de modo a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se, assim,  um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua dignidade e liberdade, correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, com consequências extrapatrimoniais. Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.

IV. Por isso, os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.7.- Os danos não patrimoniais

O acórdão recorrido estimou os danos não patrimoniais em € 27.500,00, e a Ré/recorrente reclama apenas a quantia de € 24.000,00, enquanto o Autor/recorrente preconiza o montante fixado na sentença, ou seja, € 40.000,00.

Para a valoração equitativa dos danos não patrimoniais, relevam os factos provados descritos nos pontos 15 a 40, 43, 51 a 64, 73.

Comprova-se que em consequência do acidente, o Autor teve as seguintes lesões: Fractura cominutiva da rótula direita, exposta de grau I; Escoriações no nariz, no sobrolho e na zona do queixo; Ferimentos no cotovelo direito, com ferida corto-contusa; Escoriações no joelho esquerdo, no ombro do ombro direito; Corte no cotovelo direito.

E ficou com as seguintes sequelas: a) - Uma cicatriz cirúrgica na linha média da face anterior do joelho direito de 13 cm; b) - Um aumento do diâmetro da rótula direita (dta- 8 cm; esq – 6 cm);c)- Uma atrofia da coxa de 2 cm – 51/53; d) - Dor à palpação da rotula – Zoeller positivo; plaina positivo; e) - Flexão/extensão do joelho completa, mas dor no extremo arco de movimento da flexão; f) - Exigência de esforços acrescidos na atividade profissional do Autor.

Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas ( 4/6/2015 e 30/9/2016), a um total de 60 sessões de fisioterapia, de forma dolorosa. Gozava de boa saúde e participava em provas oficiais de BTT.

O Autor, que tinha 33 anos e 6 meses na data do acidente, é portador de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 6 pontos; Quantum doloris fixável no grau 4/7; Dano estético Permanente fixável no grau 3/7; Repercussão Permanente na Actividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7.

A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante (natureza mista).

A doutrina e a jurisprudência têm teorizado sobre os modos de expressão do dano não patrimonial, distinguindo-se, como mais significativos, o chamado "quantum doloris”, ou seja, as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária; o “dano estético”, o “prejuízo de afirmação pessoal”, dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes, o prejuízo da “saúde geral e longevidade, que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar, o “pretium juventutis”.

Porém, como já em 2005 escreveu o aqui Relator em “Notas Sobre Responsabilidade Civil e Acidentes de Viação”, Revista do CEJ 2º Semestre 2005, Número 3, pág.58 e segs, a propósito das várias vertentes do dano não patrimonial:

“Embora sem rigor sistemático, é patente uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento.

Na doutrina e jurisprudência italianas começou a emergir na década de setenta a noção de “dano pessoal”, incorporando todos os danos que lesam a estrutura psicossomática do ser humano, e mais recentemente com a definição conceitual de “dano existencial”, visando abarcar os danos que não sendo estritamente morais originam consequências não patrimoniais (…).

Pretende-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais.

Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”.

Partindo desta concepção e como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial ( arts.496 nº 3 e 494 do CC ), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, sendo certo que o seguro de responsabilidade civil é também um elemento a ter em conta, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.

Desde alguns anos que a jurisprudência vem afirmando que os padrões de indemnização têm de evoluir, acompanhando os tempos modernos, chegando-se a enfatizar que não se poderia manter uma tradição miserabilista, sob pena dos tribunais não estarem a acompanhar a evolução da vida, causando prejuízos irreparáveis aos lesados em acidentes de viação.

Neste contexto, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados em aplicação da Directiva do Conselho, 84/5 de 30/12/83 (Segunda Directiva-Seguros), aos seus constantes aumentos e dos respectivos prémios, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação.

Considerando os factos provados, seguindo este critério de orientação e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados, em juízo de equidade, o valor de € 40.000,00, actualizado nesta data, mostra-se adequado e proporcional.

Em resumo, improcede a revista da Ré e procede a do Autor, fixando-se o valor global da indemnização em € 135.171,83, sendo:

- € 15.171,83 a título de dano patrimonial pela perda de rendimento entre a data do acidente (03 de Junho de 2015) e o momento da cura/consolidação das lesões (25 de Novembro de 2016), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

- € 80.000,00, a título dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, com juros de mora à taxa legal, desde a presente data.

- € 40.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, com juros de mora, à taxa legal, desde a presente data.

Importa referir que, uma vez actualizada nesta data a indemnização quanto ao dano patrimonial futuro e dano não patrimonial, os juros de mora só podem vencer-se a partir do presente acórdão, por força do AUJ nº4/202 de 9/5/2002 (“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”).

Daqui resulta, como tem sublinhado a jurisprudência (cf., por todos, Ac STJ de 152/2022, proc nº 899/19), em www dgsi.) ser incompatível a fixação de taxa de juros de mora desde a citação em cumulação com atualização da indemnização em função da taxa de inflação (correção monetária)."

[MTS]