Causa de pedir;
excesso de pronúncia; nulidade da sentença*
I. O sumário de RG 25/5/2023 (58327/21.4YIPRT.G1) é o seguinte:
1. Sendo a causa de pedir na ação o fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, titulados pelas faturas juntas aos autos e não pago integralmente pela ré, não pode considerar-se facto instrumental que parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos.
2. Tem-se por instrumental um facto que permite ao tribunal motivar a decisão sobre os demais factos a saber, no caso sub judice e atenta a causa de pedir,o fornecimento de produtos no valor de € 46.288,82 e o seu não integral pagamento.
3. Será [Serão] complemento [do] que as partes hajam alegado aqueles [factos] que se mostram constitutivos do direito ou integrantes da exceção e concretizadores os que “concretizam” anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Em sede de despacho saneador foi fixado, como objeto do litígio:
“Nos presentes autos cumpre apreciar se o negócio jurídico invocado pela autora foi de facto acordado entre as partes e se os produtos invocados pela autora foram fornecidos e não pagos pelo réu. Trata-se de uma ação de condenação que tem por base a responsabilidade contratual da ré”.
Diga-se ainda que, naquele mesmo despacho se fixou, como temas de prova:
“- Acordo celebrado entre as partes: forma e conteúdo.- Preço acordado entre as partes.- Produtos fornecidos pela autora.- Emissão de facturas relativas aos trabalhos desenvolvidos.- Pagamentos.- Interpelação da ré para pagamento.- Apuramento da quantia em dívida”.
Assim sendo, dos factos alegados pela autora/recorrida resulta como causa de pedir o fornecimento ao réu/recorrente de produtos da sua atividade comercial, no valor de € 46.288,82 e o seu não pagamento integral.
Por seu lado, em sede de contestação, o réu aceitou parcialmente a dívida, invocou o pagamento das faturas emitidas até dezembro de 2008 e impugnou os demais factos e faturas, designadamente, que lhe tenham sido fornecidos, produtos por parte da autora, desde dezembro de 2008 com exceção da correspondente à fatura nº ...98 datada de 31 de maio de 2012.
Daqui resulta incumbir à autora/recorrida a prova dos factos relativos aos fornecimentos espelhados nas faturas, após dezembro de 2008 e ao réu/recorrido o pagamento dos fornecimentos espelhados nas faturas até dezembro de 2008.
Ou seja, em nenhuma altura foi invocado, pela autora/recorrida um contrato de conta corrente, nem encargos com letras não pagas e sucessivas reformas.
Diga-se que os encargos com letras não pagas e com as sucessivas reformas configuram factos novos, não alegados pelas partes.
Mas será que, como pretende a sentença em crise, configuram os mesmos factos instrumentais?
Apreciemos pois os factos, tendo-se sempre em atenção que, conforme resulta dos nºs 3 e 4 do artº 607º do Código de Processo Civil, na sentença deve o juiz discriminar os factos que considere provados e os não provados.
Ora, em tal enunciação cabem os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções e outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda e sendo necessária, far-se-á ainda a enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa.
Na sentença pode fazer-se ainda referência a factos instrumentais, factos que, para além de não carecerem de alegação, podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final, sendo factos que visam apenas justificar a prova de factos essenciais, relevando pois para a motivação da decisão sobre os restantes factos (neste sentido os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, 2ª edição, pág 744).
Ora, como já atrás se questionou, atendendo à causa de pedir – fornecimento ao réu/recorrente de produtos da sua atividade comercial, no valor de € 46.288,82 e o seu não pagamento integral – [não] será de entender como instrumental o facto dado como provado sob o nº 6.
“Parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos”.
Ora, salvo o devido respeito por contrária opinião, atendendo ao conjunto dos factos dados como provados resulta que este facto (a ser provado) configura um facto essencial. Na verdade, a não se atender ao mesmo, em sede de sentença, a quantia peticionada pela autora e que a mesma reporta a fornecimentos de produtos do seu comércio, no valor de € 46.288,82 e não paga integralmente pelo réu, teria de ser totalmente demonstrada pela mesma, sob pena de improceder na totalidade ou, pelo menos parcialmente o pedido.
A atender-se a tal facto, o valor peticionado pela autora – de € 46.288,82 - já não diria apenas respeito aos fornecimentos pela mesma alegados, mas sim a outras vertentes do seu relacionamento comercial, quais seja letras aceites, não pagas e reformadas e consequentes despesas.
Ou seja, aquele facto que se deu como provado não é um facto que permitisse ao tribunal motivar a decisão sobre os demais factos, a saber, o fornecimento de produtos no valor de € 46.288,82 e o seu não integral pagamento. À autora importava sim demonstrar, como factos essenciais, tais fornecimentos e o preço dos mesmos, sendo certo que da prova da despesa com o não pagamento de letras e reforma das mesmas não poderia concluir-se por aqueles factos essenciais.
E não sendo facto instrumental, entendemos também não ser o mesmo complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado.
Efetivamente, como referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, na obra já atrás citada, pág. 31 e ss, são factos complementares os factos que se mostram constitutivos do direito ou integrantes da exceção, embora não identificadores dos mesmos e concretizadores os que “concretizam” anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas.
Efetivamente, da petição inicial resulta apenas o fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, titulados pelas faturas juntas aos autos e não pago integralmente pela ré.
Por outro lado, da contestação apresentada pela ré resulta o pagamento em numerário dos fornecimentos faturados até final de 2008 e a aceitação do não pagamento da quantia de € 3.256,04, relativa à fatura ...98.
Ou seja, em nenhuma altura foi alegada dívida resultante do não pagamento de letras e reforma das mesmas, sendo certo que, da leitura das faturas juntas aos autos nada resulta a este propósito.
E a assim ser, alegando a autora dívida no valor de € 46.288,82, resultante do fornecimento de produtos do seu comércio, não pode considerar-se o faco dado como provado sob o nº 6, complemento, porque não se mostra constitutivo do direito invocado pela autora/recorrida nem da exceção de pagamento invocada pelo réu/recorrente nem concretiza anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas pelas partes.
Diga-se ainda que a assim ser, a autora não terá alegado, em sede de petição inicial, factos que correspondessem à verdade, sendo certo que, a ser verdade o [facto] dado como provado sob o nº 6, não poderia a mesma desconhecer que não fornecera produtos no valor peticionado, mas sim produtos de valor inferior ao peticionado e isto porque, parte daquele se reportava a despesas com letras não pagas e reformadas.
Em conclusão, tal facto, como facto novo que é, deveria, face ao ónus da alegação, ter sido, no mínimo invocado na petição inicial, a fim de se saber o que era peticionado pelo fornecimento de produtos titulado pelas faturas apresentadas e o que resultava de letras não pagas e reformadas, sendo pois facto essencial e não tendo ali sido invocado pela autora, nem tendo sido alegado o seu conhecimento posterior (não basta a junção de um documento titulado conta corrente para cumprir o ónus da alegação), não pode ter-se o mesmo em atenção para efeitos de decisão.
Não se mostrando o facto provado vertido sob o nº 6, instrumental, complementar ou concretizador e dele conhecendo a sentença, é a mesma nula, nesta parte, nos termos do disposto na parte final da al. d), do nº 1 do artº 615º do Código de Processo Civil, eliminando-se tal facto do elenco dos factos provados.
E que consequência se deve extrair daqui?
Aos autos importava o conhecimento do fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, sendo certo que, tal prova cabia à autora, cabendo à ré a prova dos pagamentos efetuados.
Ora, compulsada a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e os factos dados como provados e não provados, importa a anulação da sentença, incumbindo ao tribunal a quo, proceder às diligências que repute convenientes, designadamente, nova produção de prova, a fim de ser possível aferir quais os fornecimentos titulados por faturas e o montante relativo aos mesmos (que não do não pagamento de letras e sua reforma), ainda por pagar pelo réu."
*III. [Comentário] O acórdão em análise suscita as seguintes observações:
*III. [Comentário] O acórdão em análise suscita as seguintes observações:
-- Os factos instrumentais (ou probatórios) são os factos que constituem a base de presunções (legais ou judiciais); portanto, o facto de que parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas efectivamente nunca pode ser qualificado como um facto instrumental;
-- Se a RG considerou que a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia (segundo parece, por ter dado como provado um facto que nem sequer foi alegado na petição inicial), não deveria ter ordenado a baixa do processo à 1.ª instância, mas antes ter conhecido do mérito do recurso (art. 665.º, n.º 1, CPC).
MTS